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Inicialmente, no desenho da amostra para essa parte da coleta de dados, foi escolhida a entrevista semiestruturada. Para tanto, a partir dos dados apresentados acima, cinco agricultores foi o número acordado para as entrevistas, visando captar distintas experiências. Foram escolhidos como participantes o vice-presidente da cooperativa, que foi o elo de comunicação com os cooperados, uma vez que sempre esteve presente nos dias de coleta do PAA; bem como duas agricultoras, uma que atingiu e outra que não atingiu a cota de vendas; e dois homens, seguindo os mesmos critérios.

Ao realizar os contatos e tentar chegar à melhor data para entrevistar todos os agricultores e agricultoras selecionados, contudo, o vice-presidente propôs que conversássemos todos juntos, de maneira que a data não fosse mais um problema, tanto para a pesquisadora, quanto para os participantes, que tem seus afazeres próprios também. Assim, na mudança feita de última hora, o que seria uma coleta por meio de entrevistas semiestruturadas acabou sendo um grupo focal improvisado, sem a presença de outro pesquisador como o observador da dinâmica.

A gravação dos áudios, consentida por todos os presentes, ajudou a remontar este momento que acabou fugindo do planejamento prévio necessário por parte da pesquisadora, como sugere a bibliografia a respeito dessa metodologia.

Além da sugestão com relação a metodologia de coleta de dados, o vice-presidente também demonstrou descontentamento com os nomes selecionados para participar da pesquisa. Ao informar os nomes escolhidos que eu gostaria de entrevistar, ele manifestou certa hesitação e sugeriu outras pessoas para participar, que na sua visão seriam mais colaborativas e tinham contribuído mais com o PAA. De certa maneira, ao sugerir tal modificação, demonstrou também as desavenças existentes dentro do acampamento, que como já apontamos, não é um lugar de homogeneidade. Como a presença dos agricultores dependia do contato que o vice-presidente estabelecia, também não fui capaz de questionar essa decisão dele.

Assim, a entrevista coletiva, ou grupo focal improvisado, ocorreu no barracão da cooperativa, dentro do acampamento, com a presença de sete agricultores, três casais mais uma senhora, número considerado adequado para a realização de um grupo focal, permitindo que todos pudessem se expressar a respeito dos tópicos abordados. A conversa teve duração de 39 minutos.

O primeiro assunto que conversamos, e que sempre está em pauta quando fazia contato com o vice-presidente, foi a questão da regularização da DAP (Declaração de Aptidão ao PRONAF). Não possuir esse documento inviabiliza a participação do acampamento e, por extensão, a cooperativa de participar dos programas de compras públicas, como o PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Tal documento tem uma validade de dois anos e o da Cooperativa Maranata já está vencido. Ao relatarem as dificuldades que encontram para resolver essa questão e a frustação de como gostariam de estar trabalhando (“a ver navio”, “com a produção parada”), também depositam de certa forma na pesquisadora, enquanto uma possível interlocutora com o alcance de outras esferas de poder, uma esperança de conseguirem solucionar esse entrave. Conforme conta Zangelmi (2016) sobre um estudo seu realizado em assentamentos rurais desvinculados ao MST, a situação que o pesquisador pode encontrar de “abandono” e de condições de vida precárias pode gerar expectativas por parte dos entrevistados, o que facilmente pode acarretar frustação e impotência por parte do pesquisador (p. 132).

Com este trabalho de campo o sentimento não foi diferente. No entanto, de maneira distinta da que o autor encontrou em seus estudos, com assentamentos mais politizados e consolidados, no caso dos cooperados ouvidos não foi possível notar uma atitude de desconfiança: “ninguém tem nada pra esconder, estamos falando a verdade”, por isso mesmo não tiveram nenhuma objeção com a gravação do áudio, não se sentiram intimidados.

Como já descrito, o acampamento como um todo sofre de algumas privações de infraestrutura, como falta de água encanada, energia elétrica (os próprios agricultores compraram postes pré-fabricados de energia elétrica, mas nunca foram ligados) e saneamento básico. Cada lote foi se adaptando, com placas de energia solar, fossas sépticas, poços artesianos, e todos vão se ajudando. Apesar dessas condições, quando perguntados se encontravam dificuldades tanto para viver quanto o reflexo de suas condições de vida na produção vendida para o PAA, a resposta nunca apontava para essa direção. Afirmaram todas as vezes que perguntei sobre dificuldades que não tinham nenhuma, ainda que esse discurso começasse pela fala do vice-presidente, ao ser o primeiro a responder as perguntas colocadas para todos. Depois, em outros momentos ao longo da conversa, outros participantes colocaram o problema da água como uma grande dificuldade, tanto para consumo próprio, (mesmo com o caminhão pipa que a prefeitura manda semanalmente) como para o plantio e a criação presente no acampamento. O gado é tanto de leite quanto de corte, os porcos e galinhas são todos para consumo, ou como afirmou uma das participantes “não é pra vender não, é pra gasto mesmo”.

Mesmo não tendo acompanhado mais sistematicamente a vida dos agricultores no acampamento e mesmo não sendo tão próxima da vida no campo e da lida na roça, para além da falta de acesso à água, outras dificuldades ficaram evidentes, como por exemplo, a falta de acompanhamento ou de instrução da assistência técnica de extensão rural para o planejamento dos plantios. Chegaram a relatar desperdício de frutas como manga e banana devido a grande produção e não conseguirem vender ou escoar de alguma forma, o que poderia ter sido diferente se alguém os tivesse ajudado ainda na etapa de elaboração da política pública. De maneira mais abrangente, as políticas de assistência técnica em extensão rural sofreram desmontes por todo

o Brasil (KAWAKAMI, SOUZA, 2015), e assim, não apenas o acampamento em questão não o recebeu, mas vários pesquisadores apontam para as descontinuidades que essa assistência tem sofrido por todos os estados brasileiros.

O fato de terem sido escolhidos pelo vice-presidente, com a presença também da presidenta (esposo e esposa), agricultores que conseguiram alcançar a cota e de afirmarem que não foi difícil a participação no projeto diz muito sobre a autoimagem que o grupo quer pra si. “Quem não trabalhou direitinho é quem não atingiu as cotas, né?”, afirma uma agricultora presente; “a maior parte teve que parar de entregar porque ultrapassou o permitido para certos produtos”, relata outro entrevistado; “com toda a luta, Deus ajudou”. Falar de dificuldade seria falar de fracasso, seria afirmar uma incapacidade de produzir a qual rejeitam fortemente.

A autoimagem que querem para o grupo é de trabalhadores sérios. Apesar de dizerem ter uma boa relação com a prefeitura, percebem da mesma forma que são considerados de maneira homogênea como sendo todos integrantes do MST, como se tivessem ouvido o funcionário dentro do carro do Ceprosom declarando certo nível de preocupação com os ânimos do “pessoal do acampamento”. E serem considerados do MST é uma imagem que o funcionário e os cooperados compartilham de um mesmo estereótipo que a mídia cria e perpetua. A “satanização” que esses trabalhadores rurais sofrem (AYOUB, 2006) prejudica de maneira sutil até aqueles que não sofrem diretamente da ação. Sua imagem de grupo é danificada e vão buscando assim novos caminhos de atuação e sobrevivência.

Parte das estratégias para se viver ali depende de condições para o escoamento dos produtos. O que essa parcela de agricultores relatou é que desde que acabou o projeto estão com tudo parado. Ao lado mesmo de onde conversávamos tinha uma roça de milho seca, perdida também pela escassez de chuva, já dando um mês de seca. Se houve semanas em que a coleta do PAA saiu com três toneladas de alimentos, é possível imaginar a capacidade de produção e o volume que se perde hoje. Um dos participantes relatou da seguinte maneira essa questão do escoamento:

Aqui em Limeira, os comerciantes já vão tudo no CEASA e já traz né. Porque lá no Mato Grosso, no norte, onde estão meus irmãos lá, os mercadinho tudo compra do cara da roça, vai lá fazer pedido, não, pode levar que nós compra. E lá não tem CEASA. E aqui não, você vai nesses mercadinho tudo aqui, que eu já fui desde o começo, e não, nós já traz tudo do CEASA. Então, eles faz um pouco caso da gente porque já traz do CEASA. Se tivesse um representante, ai sim, pra ir lá na cidade. Mas a gente mesmo, plantar, irrigar, cuidar, colher e levar, não dá.

As funções cumulativas ao plantio acabam tirando os agricultores da lida com o que gostam. Ao perguntar sobre suas histórias de vida e como chegaram ao Elizabeth Teixeira, as respostas sempre colocavam o trabalho com a terra como central, sempre buscaram seu quinhão para trabalhar e viver. A identificação com o meio rural mostrou-se muito presente em todos os participantes, sejam os cinco que vieram do Paraná e no casal que veio da Bahia. Acabaram numa cidade da região Metropolitana de Campinas, num estado que possui histórias de violência contra os movimentos sociais, num embate entre projetos políticos conflitantes (TAUFIC, 2014).

Estar com a produção parada implica diretamente na alimentação dessas pessoas. Com a diversificação da produção que a CONAB em certa medida exigia da cooperativa, por sua vez, a produção para o autoconsumo dos agricultores era beneficiada. Após o final do projeto, uma agricultora chegou a afirmar que atualmente “nós compra mais do que nós planta. Por causa dessa DAP, nós tava usufruindo dos produtos que nós tava plantando, mas acabou, parou”. Uma vez que não conseguem se regularizar e assim participar das compras públicas, ou mesmo atingir um mercado consumidor fora da esfera estatal, a alimentação deles parece ficar comprometida, implicando em um potencial problema de Insegurança Alimentar e Nutricional.

No estudo feito sobre produção para autoconsumo em assentamentos rurais do Estado de São Paulo, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) e o Centro Universitário de Araraquara (Uniara) trouxeram informações importantes e que mesmo após 15 anos ainda são significativas. Das comunidades observadas em várias regiões do estado, o que eles puderam ver na alimentação da população de assentados é a presença crescente de produtos mais comumente vistos na alimentação urbana, como processados e ultraprocessados (bolachas, iogurtes, doces e refrigerantes), uma tendência da

globalização e da modernidade, como afirmam. Alguns alimentos que requerem processamento industrial mínimo, como café e alguns derivados do leite são produzidos em algumas localidades. A dependência encontrada na compra de gêneros alimentícios como óleo, açúcar e sal é unânime.

Já a produção que têm para autoconsumo, com alimentos in natura e derivados animais, é muito importante para a noção de fartura entre eles e consegue melhor assegurar aos agricultores de que não irão faltar alimentos em momentos de incerteza (SANTOS, FERRANTE, 2003). O tripé observado pelos pesquisadores relaciona o desempenho econômico dos assentamentos em escoar a produção comercial, que beneficiará o autoconsumo quanto melhor e maior for o desempenho. Em outras palavras, a insegurança relacionada à falta de alimentos é amenizada nessa parcela da população quando se tem condições para plantar o sustento. Situação essa similar ao que encontramos no Elizabeth Teixeira.

Assim, entre os outros objetivos, avaliar se está sendo assegurada a SAN para estes trabalhadores através do PAA é também de suma importância. Pudemos notar pelas falas acima que, desde o fim do projeto, esse grupo de pessoas tem menos certezas com relação sua alimentação, podendo apoiar-se cada vez menos em seu trabalho para geração de renda e autoconsumo, comprometido tendo em vista a situação fundiária do acampamento e dependendo cada vez mais de compras de produtos externos. Conforme a conceituação jurídica apresentada acima, a SAN é baliza em muitos estudos a cerca do PAA.

Apenas para ressoar junto com o que pudemos ouvir do caso de Limeira e tecer coletivamente melhorias sobre o PAA, segue alguns exemplos entre a vasta bibliografia produzida sobre essa política pública. Um caso é do estudo feito em Ubá, MG, para entender a percepção dos agricultores sobre sua própria participação no programa (BATISTA et al., 2016). No frigir dos ovos, o incremento na renda melhora a qualidade de vida dos agricultores e, por conseguinte, sua alimentação também. Assim como em Limeira, a produção gerada é capaz de ter em qualidade e quantidade alimentos para o autoconsumo e para a comercialização. Os autores apontam no final do artigo

a necessidade de se continuar os estudos com a categoria de agricultores familiares para que se possam compreender suas necessidades, que podem diferir com relação à modalidade do programa, com relação às especificidades locais, entre outros motivos. É compreensível que a preocupação ministerial seja com as toneladas entregues de alimentos, números que ajudam a todos na cadeia alimentar, no entanto, são precisos ajustes para que todos os objetivos do PAA sejam alcançados com excelência.

Outro estudo, esse realizado em algumas cidades gaúchas, Becker, dos Anjos e Bezerra (2009) concluíram, entre outros resultados, que o mercado institucional promove uma maior diversificação da produção, o que incide no autoconsumo e práticas alimentares, bem como os dados aqui coletados puderam demonstrar. Um alto grau de satisfação das famílias agricultoras com o futuro da atividade agrícola também foi um ótimo resultado encontrado, uma vez que possuíam a garantia de comercialização através do programa. Um dos agricultores do Elizabeth Teixeira pintou a cena: “Quando tinha a DAP, eu sinto comigo assim, era tão gostoso, o povo alegre, cantando, cantando assobiando, [...] todo mundo alegre, né, todo mundo plantando a sua horta [...]”.

O fortalecimento tanto dos agricultores ouvidos no caso de Limeira, quanto em outras localidades do Brasil, está cada vez mais prejudicado através do PAA. Conjuntamente com o PNAE, são os maiores programas de compras públicas, contudo, seguem sobre duros regimes de cortes4 que prejudicam um seguimento do Brasil rural historicamente invisibilizado. Os embates mencionados anteriormente nunca cessaram. No momento em que a maior parte do Brasil segue com incertezas, a classe dirigente, um amálgama entre a classe política e econômica, perpetua as suas próprias certezas. Os cortes realizados de até 96% são de fato a extinção de programas que representaram avanços sociais para a parte da nossa população que alimenta nossa mesa.

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Programas sociais têm cortes de até 96% em quatro anos: http://www.valor.com.br/brasil/5149370/programas-sociais-tem-corte-de-ate-96-em-quatro- anos. Fonte: Jornal Valor Econômico, 09/10/2017. Acessado dia: 20/10/2017.