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De qualquer forma, todos que estão vivendo no Elizabeth Teixeira têm o mesmo propósito: que é viver da terra, ter seu sustento na agricultura. A categoria de agricultores familiares, à qual cooperados e não cooperados pertencem, lutou e ainda luta por reconhecimento e igualdade de condições frente à concentração fundiária no Brasil. Segundo Cátia Grisa e Sérgio Schneider (2015), foi durante o processo de fortalecimento da própria democracia brasileira, com o marco na Constituição Federal de 1988, que os agricultores familiares, até então chamados de pequenos agricultores, começaram a ganhar notoriedade e fortaleceram-se para exigir políticas públicas voltadas à sua realidade. O que os autores pontuam ser de grande importância é uma sociedade civil participativa, imprescindível para a existência da possibilidade de colocar suas questões próprias em debate e para a formulação de algum tipo de ação do Estado. Por mais que a permeabilidade do Estado brasileiro começasse a indicar uma maior participação de outros atores que não os grupos de influência já presentes desde sempre no poder, sempre ocorreu e ocorrerá embate.

A categoria dos agricultores familiares já passou por muitas lutas e hoje mais do que nunca precisa perseverar para não perder os direitos conquistados. Afinal, foi por meio de conquistas nos âmbitos institucionais e jurídicos que conseguiram a base da criação do PAA, entre outas políticas públicas que favorecem esses atores. Primeiramente, com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) em 1995, depois com a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 1999, e da Secretaria da Agricultura Familiar (Saf) em 2001, dentro dele. Outro marco importante, posterior à criação do PAA é a Lei de Agricultura Familiar em 2006 (GRISA, SCHNEIDER, 2015).

A agenda para essa questão foi bastante conflituosa. As conquistas em termos institucionais apontadas acima foram ganhos paulatinos que ajudaram a inserir as pautas do campo, mas não sem conflitos e disputas de poder. O próprio marco de 2006 só foi possível no primeiro governo de Luis Inácio Lula

da Silva (2003 - 2006), antes o debate era mais difícil de conseguir alcançar a própria agenda para então ser discutido (CAMARGO, BACCARIN, SILVA, 2013). A formulação da operacionalização das modalidades do PAA contou com a participação de diversos atores: enquanto uma política interssetorial, com a participação do MDA e do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS)3, e apoiada na descentralização dos poderes desde 1988, a ideia é que a política seja gerida pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) ou pelos Estados e municípios conveniados, dispensando o uso de processos burocráticos e demorados de licitação.

Os cooperados não cessam de desejar a continuidade do programa. No entanto, uma característica marcante da política para muitas pessoas envolvidas é a burocracia, que parece emaranhar os caminhos que deveriam ser de fácil acesso e compreensão (vide a quantidade de siglas envolvidas, de esferas de poder, de canais de acesso). Em algumas falas, a esperança dos agricultores parecia repousar na figura do prefeito, por vezes no Ceprosom, ou ainda personificada em certas figuras da gestão na assistência social municipal.

Todos os eixos tem isso em comum: tanto as assistentes sociais, ou burocratas de nível de rua se as consideramos como a ponta final de execução da máquina estatal em contato direto com os cidadãos (LIPSKY, 1980, apud LIMA, D’ASCENZI, 2013, p. 104), diretamente envolvidas com a distribuição das cestas e repasse das informações aos beneficiários, quanto os agricultores demonstraram desconhecer alguns condicionantes essenciais do PAA. Como veremos no capítulo sobre a distribuição, os beneficiários também acreditavam em uma solução simples que uma canetada poderia resolver.

A partir do que reitera o agricultor e vice-presidente da cooperativa entrevistado, as dificuldades da comunidade da qual ele fala para conseguirem resolver a situação junto ao INCRA é o maior obstáculo. Enquanto durou, o PAA foi de grande importância para todas as famílias no acampamento que

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Desde 2016, com o golpe que a presidenta Dilma Rousseff sofreu, o Ministério em questão teve seu nome alterado para Ministério do Desenvolvimento Social, agregando também o Ministério do Desenvolvimento Agrário, conforme o site oficial (Disponível em: http://mds.gov.br/acesso-a-informacao/institucional, acessado dia 22/01/2018). Como tratamos aqui de programas que foram criados antes dessa alteração, todas as vezes que a sigla MDS for utilizada estará em referência à antiga nomenclatura e sua designação, bem como na lista de abreviaturas.

participaram e o recurso do Governo Federal era uma das principais fontes de renda. Estar inserido na lógica de operação da máquina estatal é de suma importância, bem como saber seu funcionamento e tê-lo a seu favor, assim, consegue-se transpor barreiras. Quando se vive a situação contrária, as barreiras formam labirintos que nos encerram em perspectivas perversas de desigualdades.

Desde a segunda Revolução Verde, após a década de 1950, a produção agrícola de maneira geral passou por grandes transformações. No mote de produzir uma quantidade de alimentos que atendesse a demanda da população crescente, o setor agrícola foi incorporando “inovações tecnológicas” que deixassem mais produtivas e eficazes as plantações, como a substituição da mão-de-obra humana pelo maquinário em larga escala, o uso extensivo de agrotóxicos e engenharia genética para “melhorar” a qualidade das plantas e sua resistência a intempéries naturais (MAZZALA NETO, BERGAMASCO, 2017). O Brasil, entre outros países periféricos, tem uma economia fortemente embasada no setor agrícola, voltado à produção em massa de commodities, principalmente no modelo de produção exportador. Já para o mercado interno, a maioria dos principais produtos consumidos advém dos agricultores familiares (IBGE, 2006). Na relação de forças entre esses dois modos distintos e heterogêneos entre si de produção, o que temos é uma lógica especulativa de má distribuição que força um cenário de superabundância em produção de commodities (alimento?), na qual um polo é mais forte que outro, política e financeiramente.

Esse modelo de produção, altamente lucrativo para poucos, está consensualmente posto como uma das principais causas de degradação ambiental. Parte das ações para melhoria desse cenário cabe ao Estado e suas políticas públicas voltadas à cadeia alimentar. O desafio está posto então: “os governos podem atuar tanto para corrigir as falhas de produção, buscando um processo produtivo mais sustentável, quanto no consumo, ao optar por adquirir, nas compras públicas, produtos com menor impacto no meio ambiente” (SAMBUICHI, 2014, p. 75). O papel das Compras Públicas Sustentáveis (CPS), como o próprio PAA, revela-se assim de suma importância. Na extensa bibliografia existente acerca do PAA, podemos ver

diversas contribuições que essa modalidade trouxe tanto para os agricultores, quanto para os beneficiários finais (HESPANHOL, 2009; BECKER, DOS ANJOS, BEZERRA, 2010; CAMARGO, BACCARIN, SILVA, 2013; BATISTA et al, 2016; entre tantos outros).

Para este capítulo especificamente, o que vamos observar é a percepção do impacto do programa na vida dos agricultores e agricultoras, em seu autoconsumo e se ao longo do projeto foi possível uma melhora na SAN dessas pessoas. Algumas das contribuições dos estudos aqui apontados encontram convergência nos dados que serão apresentados na última sessão do capítulo.