• Nenhum resultado encontrado

Feito o périplo pela cidade, para conhecer os equipamentos e suas experiências diversas, foram escolhidos duas localidades para a próxima parte deste estudo. A imagem a seguir ilustra, portanto, no mapa do município onde estão localizados os CRAS, o Ceprosom e o Banco de alimentos do município (marcadores azuis), os respectivos centros comunitários escolhidos (marcadores roxos) e a localidade do acampamento Elizabeth Teixeira (marcador laranja), de onde saiam os alimentos.

Imagem 1 – Distribuição espacial dos principais equipamentos públicos estudados.

1 Fonte: Google My Maps - elaboração própria.

O primeiro momento descrito acima, no qual foi apresentada a pesquisa às pessoas envolvidas, foi mais raso, de olhares curiosos difusos, mas com inquietações que ajudaram na escolha e justificativa. Ao retornar nos lugares escolhidos a experiência adensou-se. A falta também pode ajudar a compor uma rede? O bairro Odécio Degan pode parecer discrepante com o resto da cidade, como disseram várias pessoas da rede de assistência social, no entanto, o estranhamento maior é no conflito de referenciais de bairros vulneráveis. As casas são de alvenaria, com algumas apenas sem acabamento, nada prejudicial. Tem muitos comércios de bairro, como lojas de roupas, cabeleireiro, bares, mas equipamentos públicos são mais escassos e

presentes em pontos chave. Via de regra, nas periferias o Estado mínimo já existe.

O caminho de ônibus é diferente: os passageiros são, na maioria, negros e pardos, as rotas levam para longe dos condomínios de luxo avistados quando se toma as vias sugeridas pelo Google Maps. Algumas poucas habitações de madeira, em estado precário foram avistadas. O bairro Aeroporto, próximo ao Centro Comunitário, tem esse nome porque existia um antigo aeroporto na cidade; hoje, no terreno do Ministério da Aeronáutica já é possível avistar uma ocupaçãozinha tímida, uns barracos e um cachorro viviam depois do arame farpado, no meio do mato.

O centro comunitário parece uma antiga escola, ou pelo menos construída de forma similar para atender crianças no contra tempo escolar. Nos outros lugares visitados, havia uma placa de fundação da década de 1980; muito provavelmente no ensejo da descentralização do poder depois da CF de 1988. Parece um centro de distribuição: algumas doações são feitas, como carrinhos de bebê. Ao final das atividades um lanche padrão é distribuído: pão com salsicha e molho, uma fruta (no dia, maçã) e um suco de caixinha.

Até que ponto vai a circunscrição aqui? A quantidade de lixo gerada é enorme, linha de fuga, nova rede. A presença de papéis na gestão, “na ponta do lápis”, (talvez uma deficiência em contraposição a uma almejada eficiência, uma defasagem, ou uma fixação com modos antigos do saber fazer da profissão). A não utilização ou pouco uso de computadores no trabalho de gestão e execução no dia-a-dia também caracteriza essa rede? Linha de fuga, nova rede.

Já o bairro em que está o Centro Comunitário Morro Branco, do CRAS Nossa Senhora das Dores, tem uma configuração diferente. Caminhar a pé por ele é perceber menos casas sem acabamento, comércios locais, mas também grandes empresas que querem estar perto da Rodovia dos Bandeirantes. Como ressaltou a assistente social que trabalha nesse bairro, não se vê criança na rua, é um bairro de idosos.

Por isso, a “cesta da mandioca”, como ela relatou, trazia mais do que a mistura, mas também um desafio. Os alimentos das cestas, de acordo com ela, são mais trabalhosos e mais caros se comparados aos alimentos ultraprocessados vendidos nos mercados.

Então o que acontecia, a gente acabou vendo a necessidade de atender essas famílias, porque com a idade, vai ficando mais idoso, ele já perde um pouco o paladar, ele já perde a vontade de cozinhar, né, acaba comendo só pão, pão, bolacha porque é mais fácil, vai lá, abre o pacotinho. (CRAS Dores, Gestora M., 2017).

Foi fechada uma parceria com o SESI para ensinar novos usos dos elementos das cestas e para incentivar o consumo da mandioca de maneiras diferentes, tendo em vista a qualidade dos alimentos, bastante exaltada:

Às vezes quando a gente tava trabalhando lá na separação, às vezes o pessoal pegava uma fruta, a gente comia, era totalmente diferente o sabor, porque é orgânico, né, quase a maior parte é tudo orgânico. (CRAS Dores, Gestora M., 2017).

Essas parcerias foram vistas também por outra gestora como essencial para ensinar a população tanto a utilizar os alimentos, como para passar os hábitos saudáveis de alimentação:

(...) a população ficou muito feliz com o atendimento, porque melhorou muito a qualidade de alimentação deles, né... Todos os cursos que foram feitos também com o Sesi, pra capacitação dessas famílias, com relação ao uso desses alimentos, porque a população não é acostumada, né, a comer mandioca, alface, jiló... (...) Eles não são muito acostumados a comer, então tinha toda a capacitação do SESI também com relação à orientação alimentar. (Ceprosom, Gestora L., 2017).

Com o intuito de promover a SAN das famílias e de conseguir desenvolver certa autonomia com relação aos preparos dos alimentos, sobretudo de maneira considerada saudável, essas parcerias foram essenciais, mas é sempre necessário o cuidado para não reforçar o mito da ignorância nessas tentativas de mostrar o caminho da saúde, tão presentes nas primeiras políticas públicas voltadas ao combate à fome e desnutrição (PINHEIRO & CARVALHO, 2010).

Como já apontamos acima, trabalhar com o tema de SAN é muito difícil e oferece desafios diários para essas profissionais, consideradas a ponta final da política pública. E foi em um dos relatos que conseguimos captar essa dimensão, a ação isolada do PAA com a Assistência Social não poderia garantir uma melhoria do quadro de IAN no município, as equipes deveriam ser interdisciplinares e o trabalho intersetorial, como ocorre nas instâncias federais do governo. Essa foi a opinião de uma das gestoras, a tal ponto de não conseguir afirmar se o programa cumpriu seu intuito. Inclusive, ela relatou achar muito difícil afirmar que foi exatamente assim que ocorreu o PAA, pois a

sua versão é apenas uma visão dos fatos. Sua entrevista foi uma das mais longas, marcada de muita certeza em alguns dados, mas com essa oscilação entre a assertividade e a humildade de reconhecer que o PAA pode ter sido muito mais do que ela conta. Partilhamos do mesmo sentimento. Quanto mais alto o cargo das trabalhadoras com quem conversei, mais dificuldades pareciam apontar, desde o cenário nacional, até essas questões de aporte teórico. As assistentes sociais tinham a postura de arregaçar as mangas e chamar parceiros, cada dia superando o desafio que aparecia.

Uma das assistentes sociais apontou que, apesar de ter ocorrido uma melhoria com relação à responsabilidade dos beneficiários de ir buscar os alimentos e entender sua importância para o quadro de saúde da família ao final do projeto, seria necessário fazer uma “conscientização”, nas palavras da gestora, desde o começo, seja com as funcionárias envolvidas, seja com as pessoas elencadas para receber. O que ela ressalta é que seu trabalho também precisa ser valorizado, o planejamento feito às vezes caia por terra quando não aparecia gente para receber as cestas e ela precisava distribuir de alguma forma o alimento ali parado, mas as condições que estavam por trás de cada não comparecimento precisam também ser entendidas. Como é preciso rearranjar a rotina em busca mesmo daquilo que sabemos que vai ajudar, que está como um direito nosso.

A gestora encarregada no Ceprosom apontou como dificuldade a parte financeira. Não estando diretamente envolvida nem com a coleta dos alimentos, nem com a distribuição, ela compreendia todo o jogo político e as diferentes instituições que articulam o PAA e, apesar do prefeito, apesar do INCRA, apesar do governo federal e apesar da crise econômica, seria esse o desafio que ela poderia apontar. Uma vez que a sua fala reverbera em todas as outras entrevistas, é um discurso coletivo e comunitário, no sentido de ação em conjunto em prol de quem precisa. Tendo esse time alinhado para cumprir com o projeto do PAA e das “Cestas Verdes”, o dinheiro é o único empecilho.

Todas as funcionárias que puderam participar da pesquisa contribuíram para rememorar o PAA em Limeira; as informações que estavam difusas em cada fala e em cada documento compuseram este capítulo. As articulações entre estas pessoas classificadas como gestão com as pessoas do acampamento, bem como com as famílias, foram únicas nesta experiência do

PAA. E também a forma como trabalharam, como puderam articular seus conhecimentos com outras áreas não previstas de início no projeto, como as parcerias feitas com Educação e Saúde.

A Distribuição

O presente capítulo visa fazer uma análise a respeito do alimento em seu ponto de chegada desta rede sociotécnica, ou seja, a distribuição às famílias que receberam as “Cestas Verdes”. Para tanto, a situação de SAN no Brasil e em Limeira será o contexto para a discussão. Em seguida, serão apresentados os dados coletados nos dois grupos focais realizados com os beneficiários.