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CAPÍTULO 3 – FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES, DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL E QUALIDADE

3.3 Formação continuada de professores: um sentido ressignificado

A utilização de algumas terminologias como reciclagem, treinamento, capacitação, aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional, profissionalização, tem remetido a questão da formação continuada a discussões que ocupam espaços cada vez mais polêmicos, nos encontros acadêmicos e nos cenários educacionais, em geral. Vale lembrar que esses termos assumem conceitos etimologicamente diferentes, gerando distintas orientações quanto à essência do processo.

A diferença entre os termos utilizados nos discursos, além de evidenciar diferenças semânticas, comporta diferentes conceitos de escola e de profissão e até diferentes visões de mundo (ESTRELA, 2003), podendo esconder matrizes consideráveis no que se refere à tomada de posição e que muitas vezes tendem a ser esquecidas quando se equacionam os problemas de formação (essência/existência, cultura/natureza, sociedade/indivíduo, ter/ser, determinismo/liberdade, uno/múltiplo, identidade/alteridade). Um alerta para a problemática indica que a formação continuada constitui um tema de particular atualidade, de natureza complexa, e que pode ser abordado e analisado a partir de diferentes enfoques e dimensões.

Recorrendo ao sentido etimológico, “Formação” provém do latim formare, que significa dar o ser e a forma, criar, organizar, estabelecer. Analisando a questão, Fabre (1995) indica que formar é para além de instruir ou educar. Para ele, é o próprio ser que está em causa na sua forma. Alguns cognatos como informar, enformar, formar, forma, fôrma, remetem a uma concepção depreciativa de formação que poderia até mesmo designar desenformar (ALARCÃO, 2005).

Num sentido artístico, Ferreira (2001, p. 355) entende que formação significa ato, efeito ou modo de formar; constituição. E formar, dar a forma a (algo); conceber; constituir. Assim, a formação docente diz respeito ao movimento de formar (dar forma), de constituir o professor de torná-lo profissional, dotado de saberes inerentes ao desenvolvimento da sua

profissão. Essa constituição docente liga-se à ideia de inacabamento; tem início e nunca tem fim, é inconcluso.

Em Veiga (2012) formar professores significa propiciar aprofundamento científico- pedagógico que ajude o profissional docente a enfrentar questões fundamentais da escola enquanto instituição social. Implica compreender a importância do papel da docência sob uma ótica reflexiva e crítica. A formação indica, pois, na visão dessa autora, um ato de formar o docente, envolvendo uma ação a ser desenvolvida (2012, p. 15) “[...] com alguém que vai desempenhar a tarefa de educar, de ensinar, de aprender, de pesquisar e de avaliar”.

Essa barafunda terminológica e etimológica de sentido instiga-nos a definir que o conceito de formação assim como o de educação é polissêmico e remete a dois polos distintos: do saber e do saber fazer. Um integrado à exigência de saberes e competências especializadas; o outro enfatiza a dimensão global do sujeito, redimensiona o saber, o saber fazer e o saber ser numa construção integrada, privilegiando a reflexão e a análise, no sentido de uma desconstrução-reestruturação contínua do sujeito em sua multidimensionalidade e em sua multireferencialidade. O processo de formação de professores pode ser inicial ou continuado. A primeira etapa é condição para que o sujeito possa ingressar em uma profissão; a segunda ocorre quando o sujeito já possui a certificação que lhe permitiu o acesso ao campo profissional e encontra-se na condição de prático, pesquisador, investigador dos fundamentos que subsidiam a sua prática.

A construção do sentido da formação continuada nas concepções que definem o professor enquanto sujeito das reformas e dos processos formativos, tende a defini-lo como um todo constituído de corpo, mente, sentimento e espírito, sujeito histórico e social, inconcluso e em crescimento permanente, que necessita educar-se ao longo da vida. Neste sentido, se a formação continuada pode contribuir para o crescimento social, político e profissional, deve contribuir para o enfrentamento dos problemas cotidianos dos mais simples aos mais conflitantes e em contextos de permanente mudança.

No universo das políticas públicas educacionais, a formação continuada hoje em curso, em grande parte dos sistemas de ensino, parece querer controlar, estabelecer normas, dar formas, cores e formatos e até colocar em fôrma a formação do professor com a pretensão de modelá-lo (GARCIA, 2002).

Assim, Garcia (2002, p. 136) nos convida a tomar uma atitude

[...] de sair das grandes estradas retas, claras, já mapeadas antes de serem construídas, para entrarmos por atalhos labirínticos onde não se pode ver

antecipadamente aonde nos levam. Lugares que aparecem e desaparecem reaparecendo em outro lugar, como rizomas, cheio de surpresas, onde a única bússola é a busca permanente e obstinada.

Nóvoa (1997) também defende a formação continuada de professores como uma importante dimensão para se atingir mudança, mas aponta que o professor deve ser valorizado e tomado no contexto das suas práticas, possibilitando sua participação em todos os momentos do processo de formação, desde o planejamento até a avaliação. Como sujeitos, os professores podem tomar a palavra, participar das decisões e comprometer-se, mostrar-se. E acrescenta que (1997, p. 28)

Não basta mudar o profissional, é preciso mudar também os contextos em que ele intervém. As escolas não podem mudar sem o empenho dos professores, e estes não podem mudar sem uma transformação das instituições que trabalham. O desenvolvimento profissional tem de estar articulado com as escolas e seus projetos.

Assim, o professor assume a condição de sujeito concreto, protagonista do seu próprio cenário. E a formação continuada, um espaço entendido como lugar onde se distribuem elementos de coexistência, onde os elementos se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar próprio (CERTEAU, 2007). A formação continuada de professores pode ser definida como espaço/tempo, onde podem coexistir elementos distintos e singulares. Espaços de inscrições e de autorias, onde o sujeito protagoniza suas ações e inscreve suas marcas.

Aproximando às definições de cotidiano de Michel de Certeau, pode-se conceber a ideia de formação continuada como espaço/tempo de interações, partilhas e representações, onde a disposição dos sujeitos é colocada num sentido horizontal e marcada pela dinâmica da cooperação e de trocas, compartilhamentos de experiências, de sentimentos, tensões e embates. Uma paisagem de um estudo que indica os pontos de referência entre os quais se desenrola uma ação, um lugar com um clima de um terreno habitado há muito tempo, onde as práticas cotidianas são articuladas e que marcam as dúvidas e também as diferenças que possibilitam um trabalho com o outro e no encontro com o outro (CERTEAU, 2007).

Nesses espaços/tempos de formação pensados a partir da ideia de cotidiano, por Certeau, professores executam ações, desenvolvem sua criatividade, trocam saberes e fazeres juntos, tornam-se autores de um lugar coletivamente ocupado e praticado, constroem uma cultura instituinte. Nesse sentido, a formação continuada assume contornos próprios, onde

professores e demais especialistas em educação inserem suas marcas, autorias e criações, resignificando tanto o lugar quanto as suas práticas, através das variadas formas de fazer de cada sujeito. Nessa perspectiva, pode-se conceber a formação continuada, a partir do que Santos (2005) chama de comunidades interpretativas, ao denunciar um mundo cada vez mais intolerável e ao anunciar a necessidade de criação de um “novo mundo”, construído política, ética e esteticamente.

Essa nova realidade representa, na ótica de Santos (2005), um novo conhecimento, para uma vida decente, que ajude a dar respostas aos problemas que afetam a vida em todas as suas dimensões, e, também, que ajude aproximar sujeitos e contextos dos conhecimentos científicos e tecnológicos e pedagógicos. Pensar em educação e em formação continuada de educadores exige uma compreensão do sujeito e da educação enquanto processo e como realidade cíclica e dinâmica e, de igual modo, considerar a escola como espaço/tempo de valorização, de inclusão, de cooperação, de respeito, de desenvolvimento do sujeito aprendiz. Isso exige um novo olhar, mais amplo, mais abrangente, que compreenda melhor a realidade educacional.

Nesse sentido, os processos de formação continuada precisam atender a uma transposição das bases cognitivas baseadas na pedagogia das competências e dos resultados comumente expressas nos programas oficiais. Deve exercer um olhar no humano, no interrelacional, no político, no social, no “ser” professor enquanto sujeito protagonista, tanto da sua prática quanto do seu processo de formação. Essa postura tem repercussões não apenas no plano epistemológico, mas também, no plano da multidimensionalidade social e educacional, com implicações políticas, econômicas, culturais e éticas. Essa dinâmica, esse conhecimento e essa “nova” visão de ser humano, de professor e de formação continuada conduzem à busca de saberes que ajudem a perceber e compreender práticas sociais em diferentes contextos, em diferentes espaços e tempos e como esse novo conhecimento contribui para o que Santos (2005) chama de emancipação social, o que, a meu ver, caracteriza a autonomia do conhecimento e de indivíduos em contextos de interação social e de atuação profissional.

A formação continuada, nessa perspectiva, deve se constituir num espaço/tempo de conhecimento-emancipação, assumindo-o como incompleto e, ao mesmo tempo, local e abrangente que favoreça a proximidade e a interlocução, e que integre diversos saberes e contemple os olhares e pensares dos diversos sujeitos. Uma formação entendida, portanto, como espaço/tempo de diálogo, que permita a abertura, que promova o encontro/confronto

entre as diversas formas de interpretar a realidade, que dê ênfase à solidariedade e construa uma comunidade num espaço privilegiado de conhecimento emancipatório (SANTOS, 2005). O professor, no dizer de Tardif (2007), deve ser considerado um ator social, sujeito que desempenha um papel importante enquanto agente de mudança, ao mesmo tempo em que é detentor de valores emancipadores em relação às diversas lógicas dos saberes escolares. Alinhado essa visão, Imbernón (20010) observa que a formação de professores, além de atingir aspectos cognitivos e comportamentais, deve potencializar os aspectos afetivos e ajudar no desenvolvimento pessoal dos professores, considerando que na profissão docente a fronteira entre o profissional e o pessoal está difusa, o que favorece uma melhoria das relações entre os professores e deles com os alunos.

Nos encontros de formação continuada professores podem efetivar trocas, discussões, movimentos de encontro ao outro e com o outro, expressar seus conflitos, oferecer sugestões, apontar caminhos, manifestar sentimentos, interpretar contextos e resignificar seu espaço de atuação. Percebe-se, recorrendo a Certeau e a Santos, a necessidade da formação continuada se converter num projeto instituinte, num espaço concebido e praticado, numa necessidade nutrida no interior de cada sujeito/ator educacional. Uma concepção de formação continuada refletindo o desejo de mudar, de reconstruir, de reinventar a escola, de transformá-la num lugar de luz, de ampliação de horizontes, de cumplicidade, de trocas, de formação de cidadania.

Carvalho (2003) vem trabalhando com o princípio da “comunidade compartilhada”, entendida como solidária e coletiva que caminha rumo à construção de um projeto instituinte, que vincule conhecimento teórico às práticas cotidianas. Práticas que estabeleçam relações entre representado (objeto) – representação (objeto mental e/ou seu equivalente simbólico) – representante (conceito, teoria), ou seja, que desvelem as teorias-linguagem que, sendo produções sociais e envolvendo transmissão cultural, comportem visões de mundo que contribuam para a reprodução do instituído ou para a produção do instituinte. Enfim, uma formação continuada edificada pela compreensão de que a realidade educacional é complexa, polivalente, interativa, construtiva, transcendente, e que se constitui numa materialidade histórica, marcada notadamente pelas tensões entre o instituído e o instituinte.

3.4 A não-diretividade dos processos de formação continuada: a necessidade do

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