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Formação de professores e o modelo da racionalidade prática

1.2. Os cursos de Licenciatura e os modelos de formação inicial de

1.2.2. Formação de professores e o modelo da racionalidade prática

A docência compreendida como prática reflexiva ganha visibilidade no contexto brasileiro; entretanto, são diversificados os enfoques teóricos e metodológicos de análise e discussão em relação à docência e à formação de professores.

Um dos principais representantes dessa dimensão, Donald Schön – tido como o formulador do conceito de “professor reflexivo” – propõe que a formação de professores deixe de realizar-se nos moldes de currículo normativo. Na sua análise, tal tipo de formação não leva em conta os indeterminantes da prática, como, por exemplo, a incerteza, a singularidade e o conflito de valores (SCHÖN, 1992).

A proposta do referido autor consiste em formar um profissional capaz de refletir sobre sua experiência, a fim de compreender e melhorar o seu ensino. Propõe a formação profissional baseada na epistemologia da prática, sustentada em três conceitos fundamentais: conhecimento na ação, reflexão na ação e reflexão sobre a reflexão na ação (SCHÖN, 1992).

Tal princípio tem como pressuposto básico o conceito de Schön (1992, p. 39), que defende um processo permanente de “reflexão-sobre-a-ação” e “reflexão-na-ação”:

O que distingue a reflexão-na-ação de outros tipos de reflexão é a sua imediata relevância para a ação. Na reflexão-na-ação, o fato de voltar a pensar sobre alguma parte do nosso conhecimento na ação nos leva a experimentação in situ, e a pensar mais além, e

isso afeta o que fazemos, tanto na ação imediata, como quem sabe também em outras que julguemos similares. (SCHÖN,1992, p. 39).

As pesquisas sobre a formação de professores na perspectiva da racionalidade prática também têm apresentado expressivo aumento nas produções nacionais e internacionais na área. Os conceitos de professor reflexivo, professor pesquisador e saberes docentes são amplamente divulgados na literatura disponível, inclusive, com muitas abordagens teóricas e metodológicas. Convém destacar que os referidos conceitos não são excludentes e permitem muitas possibilidades de interface.

No caso de professor reflexivo, identificam-se alguns equívocos e contradições, em especial, no contexto das reformas. Segundo Contreras (2002), o termo “professor reflexivo” tem perdido o sentido formulado por Schön, uma vez que foi apropriado pelas reformas e programas de formação baseada na racionalidade técnica, quando, na verdade, ele surgiu contra tal modelo.

Recentemente, Pimenta (2002) fez uma revisão crítica do conceito de professor reflexivo na qual analisa a “origem, os pressupostos, os fundamentos e as características do conceito professor reflexivo” (p. 17). Na sua crítica, tal como ressalta a autora, além das contribuições teóricas dos autores que ela analisa, fica evidente a necessidade de se superar a visão reducionista sobre os processos da formação docente que se apropriam do conceito de professor reflexivo, sem considerar a análise do conjunto de teorias que o sustentam e, principalmente, dos contextos nos quais foram produzidas.

No entanto, ressalta Pimenta (2002), a massificação do termo tem dificultado o engajamento de professores em práticas mais críticas, reduzidas a um fazer técnico. Autores como Pérez-Goméz (1998), Contreras (2002) e Giroux (1997) vêem, na atividade de teorização, a possibilidade de se superar a visão reducionista do conceito de professor reflexivo e defendem que a crítica coletiva que vai além das situações da sala de aula e da escola evidencia o caráter político da atividade docente.

Giroux (1997), ao considerar o professor como intelectual transformador, elucida que toda atividade humana envolve alguma forma de pensamento; portanto, não se pode considerar a atividade docente estritamente técnica. Para ele, é

importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando (GIROUX, 1997, p. 161).

Nessa direção, vale ressaltar, um dos desafios que acompanha a história da educação tem sido superar o uso da reflexão como prática exclusivamente individual e restrita à própria prática. Isso porque se supõe que a reflexão na prática profissional, suas bases de sustentação são a teoria, e a reflexão coletiva poderá oportunizar ao professor a tomada de consciência dos sentidos da própria profissão e, assim, ressignificar a sua prática, levá-lo a refletir sobre sua cultura, as experiências pessoais e profissionais, o que lhe possibilitará o exercício da autonomia.

Para Santos (2005), antes de chegar aos cursos de formação, os alunos têm oportunidade de vivenciar experiências que lhes dão ensejo de refletir sobre os professores e a escola, suas tarefas e funções. Assim, eles chegam aos cursos de formação profissional com conceitos e representações sobre o papel do professor, os quais vão permear-lhe a formação docente. Além disso, durante o exercício da profissão, o professor vai adquirindo novas competências sobre seu ofício provenientes da própria prática em que está imerso.

Segundo Alarcão (2001), as preocupações hoje manifestadas em relação à profissionalização docente não podem separar-se de teorias, modelos e práticas da formação. Contudo, a formação dos professores deve visar ao desenvolvimento das potencialidades profissionais de cada um, a que não é alheio o desenvolvimento de si próprio como pessoa.

Nóvoa (1991) alerta que, para haver bom desenvolvimento do professor, é importante também investir na pessoa e em sua experiência. A formação não se constrói por acumulação de cursos ou técnicas, mas pelo trabalho de reflexão crítica sobre a prática de (re)construção permanente de identidade pessoal.

Considerando a vida cotidiana como objeto de conhecimento, a racionalidade prática aborda a integração das dimensões pessoal e profissional. Essa orientação deu origem a estudos de caráter “holista” (HUBERMAN, 2000; GOODSON, 2000) que identificam, no profissional, as dimensões do saber, do fazer, do ser e do conviver.

Na mesma linha da prática reflexiva, alerta Zeichner (1993), ela é necessariamente dialógica, logo, deve ocorrer como dimensão do trabalho pedagógico, considerando as condições econômicas, sociais, políticas e culturais em que tal trabalho é produzido. A racionalidade prática, então, produz-se no contexto de diálogo entre diferentes interlocutores: famílias dos alunos, o sistema de ensino, a categoria docente, a instituição escolar, cujas relações hierárquicas estão vinculadas aos papéis institucionais além da sala de aula. Esse conjunto de relações, que se mesclam e se conformam mutuamente, resultam na dinâmica do processo de realização do trabalho pedagógico.

Ainda na mesma perspectiva epistemológica, em recentes reflexões, Therrien (2004) conceituou a docência como ato instrutivo e educativo permeado por autonomia relativa, envolvendo uma dimensão moral e ética. Reitera o trabalho docente como a práxis de interação situada entre os sujeitos professor e aluno. A produção de saberes e significados caracteriza o processo de comunicação e entendimento intersubjetivo.

Considerando a racionalidade pedagógica fruto da intersubjetividade dos sujeitos em dimensão transformadora, sua potencialidade reside na possibilidade de romper com a racionalidade técnica e construir outra racionalidade. Qual seria essa outra? A questão formulada aqui nos remete a discutir de que forma a racionalidade pedagógica se produz.

Segundo Popkewitz (1997), a racionalidade pedagógica é produzida por epistemologia socialmente construída com regras, estilos de raciocínios e ações institucionais. Ela está imbricada nas relações de poder que produz a prática educativa no contexto das pedagogias institucionais. Nesse caso, a mudança de racionalidade pedagógica significa “mudança de regras e modelos subjacente ao conhecimento de escolarização e a forma como este conhecimento é produzido e aceito como práticas sociais dentro de acordos institucionais” (POPKEWITZ, 1997, p. 23). Portanto, ela passa a ser tácita, cultural, heterogênea, controlada e regionalizada.

Compreendendo que o novo modelo de formação de professores – racionalidade prática –, pautado no princípio da competência, gera às instituições escolares novas regulações, novas formas de pensar a prática docente, novas formas de o docente se ver, sentir-se e ver o mundo, convém analisar se a nova racionalidade produzida pelo discurso legal na reforma educacional, desde a

década de 1990, no Brasil, possibilitará, no interior das instituições de ensino, a produção de racionalidade pedagógica emancipatória.

Nesse cenário de redefinição do papel e da prática do professor, passou- se a reconhecer e a valorizar o saber da experiência. Nóvoa (1995) defende a idéia de que as tradições da prática enfatizam uma lógica que exclui os professores como produtores dos conhecimentos gerados no interior da profissão docente. Para ele, impõe-se admitir e reconhecer a profissão como locus de produção de conhecimento e o educador como sujeito histórico capaz de produzir novos conhecimentos.

As idéias aqui apresentadas fundamentam-se nos escritos de Schön (1992) e se resumem a duas concepções básicas para se entender a atividade docente as quais determinam duas imagens de professor: como técnico- especialista, que aplica com rigor as regras do conhecimento científico, e como prático-autônomo, que reflete e cria sua própria ação.

Entendida assim a profissão docente, resultante de nova epistemologia da prática, a construção dos saberes próprios do professor se desenvolve durante o seu processo de formação e no exercício da profissão, ou seja, os saberes se produzem na práxis cotidiana do docente.

A propósito disso, Dias-da-Silva (2005) chama a atenção para o fato de que a nova legislação, ao incentivar a construção de projetos pedagógicos fundamentados na racionalidade prática, refutando a imposição de padronização de currículos mínimos e defendendo um modelo que supervaloriza "competências" e "práticas", tenha reforçado a ausência de conhecimento legítimo da área educacional, como rotulavam os bacharéis. Assim, ao impor práticas e atividades e valorizar “saberes” experienciais em vez de conhecimentos legitimados pela ciência, a legislação reforça o desprestígio que o campo educacional já amargava. As chamadas "disciplinas pedagógicas", consideradas saber "de segunda categoria", ficaram relegadas sob o título de saberes pedagógicos, sem conteúdo científico legítimo.

Em nome do enfrentamento da dicotomia teoria-prática, talvez a própria área de educação possa estar contribuindo para a desprofissionalização dos professores apostando que sua formação seja essencialmente "prática", permitindo que sua formação seja “extracurricular”. Seja em decorrência do discurso pós-moderno ou da crítica ao “conteudismo” da escola brasileira,

seja em nome da valorização dos processos contínuos implicados na aprendizagem da docência, estou convencida de que estamos enfrentando uma cilada perigosíssima... É preciso reconhecer que não são raros os projetos e discursos que, justificados pelo argumento da formação de um professor "prático reflexivo", que deve “refletir sobre seu trabalho e suas concepções”, estão transformando a formação de professores em feiras de vivências pessoais partilhadas (DIAS-DA-SILVA, 2005, p. 390).

Na mesma linha de preocupação, Zeichner (1993) alerta que as limitações do conceito de “professor reflexivo” fomenta atitude narcisista, que pode conduzir à perpetuação de um modelo conhecido de mudança segundo o qual tudo continua na mesma e, portanto, as reformas servem para legitimar as práticas que deveriam ser transformadas.

Nesse sentido, Pimenta (2002) entende que Contreras (2002), Giroux (1997), Pérez-Goméz (1998) e Zeichner (1993), ao criticarem o conceito de “professor reflexivo”, indicam a fertilidade do mencionado conceito ao compreendê-lo com base em dois enfoques: o da teoria e o da reflexão coletiva. Eles percebem em tais enfoques a possibilidade de superar o praticismo no qual a teoria tem o papel de “oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como profissionais, nos quais se dá sua atividade docente, para neles intervir, transformando-os” (PIMENTA, 2002, p. 26).

A reflexão coletiva faz-se necessária e contribui para a comunidade educativa tornar-se mais resistente às pressões exercidas pelos contextos social e institucional. Assim, as preocupações e perspectivas de análise não devem restringir-se aos problemas internos da aula.

Um dos desafios que acompanha a história da educação tem sido superar o uso da reflexão como prática exclusivamente individual e restrita à própria prática, pois, supõe-se, a reflexão na prática profissional – cujas bases de sustentação estão na teoria e na reflexão coletiva – poderá oportunizar ao professor a tomada de consciência do sentido de sua profissão e, assim, ressignificar-lhe a prática, levá-lo a refletir sua cultura, experiências pessoais e profissionais, o que lhe possibilitará o exercício da autonomia. Desse modo, quando refletir com seus pares, o professor exercerá a dimensão crítica, política e social da atividade docente.

Determinantes na construção da identidade, as representações sociais constituem-se como motivos no movimento de “ação-reflexão-ação”. Sua leitura contribui para o rompimento da dicotomia teoria-prática, desde que se entenda o seguinte: entre determinada teoria que se quer assumir e a prática que se quer ressignificar existe a teoria do sujeito, a qual se constrói com base nas indagações daquilo que faz.

Segundo Gauthier (1998), os indivíduos são o resultado das suas trajetórias e nelas estão contidos os conhecimentos, as experiências, os sucessos, as opções vividas etc.. São também portadores de representações construídas sob a influência da comunicação de saberes e da interação com outros indivíduos. O indivíduo é um ser de histórias; constrói suas representações do mundo, interagindo com os outros. Assim se constrói o significado, pela interação e pela reflexão ao mesmo tempo. O significado nunca é definitivo, ele se modifica em função do contexto e da ação. Por isso, para compreendermos os significados construídos pelos indivíduos, é indispensável conhecer o contexto em que eles interagem.

Tais pressupostos abrem espaço para a formação inicial dos professores ser abordada na dinâmica das relações a qual a origina e sustenta. Ao mesmo tempo, a análise visa a captar a organização, o contexto e as articulações que a determinam, pois a representação de um objeto tanto é a síntese possível a certo indivíduo, em determinado tempo e espaço, de um processo no qual ele, em sua totalidade, está envolvido, quanto leva as marcas da inserção do mesmo indivíduo na totalidade social (ALLOUFA; MADEIRA, 1990 p. 15).

Desse modo e no intuito de conhecer a realidade, entendemos que necessário se faz buscar referenciais que permitam ampliar nosso olhar para as diferentes faces do objeto pesquisado.

Assim, estudos em torno do professor como profissional reflexivo e investigador bem como a valorização da experiência docente também têm como enfoque de interesse os saberes docentes. Hoje é profícua a discussão sobre os saberes que estão na base da profissão docente, sobretudo acerca da natureza deles.

Esse campo de pesquisa complementa nossa análise, uma vez que as representações sociais de um objeto constituem a síntese possível a certo indivíduo, em determinado tempo e espaço, de um processo no qual ele, em sua

totalidade, está envolvido. Assim, a discussão dos saberes enriquece nossa análise, por possibilitar compreender se os saberes fazem parte das representações dos alunos e professores dos cursos de Licenciatura em Matemática.