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Racionalidade técnica versus racionalidade prática: qual o modelo

Finalizada a análise, pontuamos o confronto entre duas formas de compreender a formação do professor: de um lado, evidenciou-se a concepção já estabelecida historicamente, segundo a qual a formação docente se circunscreve à aquisição dos conhecimentos específicos da área; de outro, a concepção que confere à formação do professor identidade própria, reconhecendo que o exercício dessa profissão exige conhecimentos que incluem os conteúdos específicos, mas nesses não se esgotam.

Para a primeira concepção, a formação para a docência se dá com ênfase no conteúdo da área de ensino, sem integrá-lo às demais disciplinas do curso e sem compor com elas uma totalidade. E, nas universidades, a prioridade é formar o bacharel, ao qual se dá a possibilidade de se tornar professor acrescida a respectiva complementação. Tal cultura bacharelesca sustenta-se no entendimento de que o domínio do conteúdo é suficiente para a formação do professor; ignoram-se, então, a complexidade e as especificidades da profissão docente. Essa concepção ainda é muito presente nos cursos de licenciatura. Vejam-se por exemplo, alguns autores que tratam do assunto: Krahe (2000), Guimarães (2004), Passos (2006), Melo (2006), entre outros.

Nos seus estudos, os referidos autores evidenciaram que, sem formação adequada e sem preparação para o enfrentamento das questões pedagógicas inerentes ao exercício da profissão, o professor a exerce, tomando por base a própria experiência como estudante. O resultado, não raro, é a reprodução de prática tradicional centrada na exposição, incentivando no aluno a atitude de

mero espectador, ouvinte e reprodutor das informações apresentadas. A função do professor, portanto, reduz-se à apresentação de conteúdos sem a preocupação com a aprendizagem do aluno, sem contextualização: faz-se uma prática estática, não-criativa, geradora de algumas dificuldades. Segundo Melo (2006), a prática docente se torna repetitiva, desmotivante. A metodologia utilizada baseia-se na exposição-assimilação de conteúdo; não há espaço para participação mais ativa do aluno nem para o desenvolvimento de capacidades mentais, habilidades, competências, valores, reflexões e outras aprendizagens importantes na formação de cidadão crítico e participativo. As relações professor- aluno tendem a ser difíceis, hierarquizadas, marcadas pela ausência de diálogo, elemento fundamental no processo formativo. A avaliação limita-se ao processo de atribuição de notas.

Reduzindo o processo de ensino-aprendizagem à mera transmissão de conteúdos, o professor deixa de perceber seu papel e o do conhecimento trabalhado na totalidade da formação do educando, assim como a relação de tal conhecimento com o contexto social. A esse respeito, Freire nos alerta o seguinte:

Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem considero o objeto, que ele é o sujeito que me forma e eu, o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e que são a mim transferidos (FREIRE, 1997, p. 25).

Nesse sentido, ser professor exige aprofundamento nos conhecimentos a serem trabalhados com os alunos, mas deve superar a mera apropriação passiva de informações. Na perspectiva apontada por Freire (1997), o professor deve atuar como mediador entre o aluno e os conhecimentos, questionando seu significado no contexto da contemporaneidade e abordando-os na perspectiva da produção e da criatividade. Para assim agir, ele precisa de formação pedagógica.

Outra dificuldade possível decorrente da falta de formação profissional adequada para o exercício da docência é desconsiderar os aspectos afetivo e ético como partes integrantes do processo. O professor não toma consciência de que sua ação não se limita à apresentação dos conteúdos da disciplina; parece ignorar que a postura, a forma de se relacionar com a docência e com os

estudantes, seus valores, seus interesses e gostos constituem também elementos formadores. O trabalho docente assim abordado, de forma estática, não é visto em sua dinamicidade, em permanente transformação, em interação com as diversas instâncias, sempre inédito e imprevisível. Daí, a necessidade de um processo de reflexão para se tomar consciência de sua complexidade e peculiaridades para se buscar superação de possíveis entraves.

A realidade do exercício da profissão exige muito mais do que o conhecimento de conteúdo específico. As atividades inerentes à docência envolvem relação professor-aluno, questões metodológicas, planejamento (de aulas, de curso, curricular), utilização de novas tecnologias no ensino, elaboração de instrumentos de avaliação, participação em discussões sobre o projeto político-pedagógico da escola, atualização curricular, articulação da disciplina com a totalidade da formação do educando e com a realidade social, processos avaliativos internos e externos, entre outras presentes na dimensão pedagógica. Essas exigências já tornam problemático o desempenho docente sem a devida fundamentação pedagógica.

Com base na reflexão sobre os modelos de formação presentes na prática pedagógica das instituições formadoras, podemos perceber a necessidade de que a formação do futuro professor da Educação Básica lhe possibilite compreender o contexto social contemporâneo e seu papel nessa realidade, assim como o habilite para prática pedagógica crítica e reflexiva.

A discussão até o momento vem pautando-se na formação do professor da Educação Básica – tendo em vista a necessidade de situá-la e contextualizá-la do ponto de vista histórico, normativo e epistemológico – com a finalidade de compreendermos os processos que estão na base da formação inicial docente e as condições sociais nas quais se geram as representações sociais dessa formação.

Então, indagamos: quais representações sociais estão sendo construídas nos cursos de Licenciatura em Matemática, tendo em vista que aquelas guiam as práticas e, ao mesmo tempo, por esta são transformadas. No dizer de Abric (1998), “as representações sociais devem ser vistas como uma condição das

práticas e as práticas como um agente de transformação das representações” (p.

45, grifos no original). Ainda, no intuito de situar o contexto onde se constroem as representações, segundo o referido autor, as representações sociais são

manifestações do pensamento social. Todo pensamento social precisa, para garantir a identidade e a continuidade do grupo social a que se refere, de certo número de crenças coletivamente engendradas e historicamente determinadas.

Discutiremos, a seguir, a formação do professor de Matemática nos cursos de Licenciatura, mesmo considerando que toda discussão até aqui exposta se reportou também a esse curso. No entanto, observamos, o lócus de formação tem características próprias, por isso se faz necessária análise mais aprofundada, no sentido de se focalizar o olhar na prática educativa dos aludidos cursos, de acordo com as considerações de Abric (1994).

A análise de toda prática social supõe que sejam levados em conta pelo menos dois fatores essenciais: de um lado, as condições sociais, históricos e materiais nas quais ela se inscreve, e de outro, seu modo de apropriação pelo indivíduo ou grupo a que ela se refere, modo de apropriação onde os fatores cognitivos, simbólicos, representacionais desempenham um papel igualmente determinante (p. 237).

2 A MATEMÁTICA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR: UMA REFLEXÃO SOBRE