• Nenhum resultado encontrado

Formas de controle de constitucionalidade

No documento anacristinacostasoares (páginas 116-123)

3 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS CONTRIBUIÇÕES DA SUPREMA CORTE ESTADUNIDENSE E DOS TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS

3.4 Formas de controle de constitucionalidade

Sendo a função precípua de uma corte constitucional o controle da constitucionalidade das leis, importa conhecer como nasceu esse instituto e como ele é exercido por cada sistema jurídico, seja o modelo estadunidense, seja o modelo europeu. As Constituições rígidas são aquelas que exigem um processo especial de revisão e assentam numa distinção entre o poder constituinte e o poder constituído. A obra do poder constituinte é a superioridade da Constituição frente à lei ordinária, ato comum do poder constituído, este, inferior e limitado pela existência da Constituição (BONAVIDES, 1996, p. 267), trata-se de uma hierarquia normativa, que reconhece a “superlegalidade constitucional” como a mais alta expressão jurídica da soberania. O órgão legislativo obtém sua competência da Constituição, não podendo, portanto, “introduzir no sistema jurídico leis contrárias às disposições constitucionais” (BONAVIDES, 1996, p. 268). A questão que surge se refere aos meios de retirar do sistema normativo as leis inconstitucionais e, o mais grave, qual o órgão legitimado para essa tarefa, pois dependendo de quem possuir esse privilégio poderá ser afetado o equilíbrio entre os poderes constitucionais:

O controle acarreta dificuldades consideráveis, em razão de conferir ao órgão incumbido de seu desempenho lugar que muito tem por privilegiado, um lugar de verdadeira preeminência e supremacia, capaz de afetar o equilíbrio e a igualdade constitucional dos poderes (BONAVIDES, 1996, p. 268).

O controle, ademais, pode ser formal e material, o primeiro é, por excelência, um controle estritamente jurídico, cabendo ao órgão incumbido da análise verificar se

116

foram observadas as regularidades formais na elaboração da norma, tais como: a conformidade com a Constituição; a observância das regras nelas prescrita; a competência do poder emissor da norma. Mas, como o que se pretende em países de Constituição rígida “é instituir um controle em proveito dos cidadãos” (BONAVIDES, 1996, p. 269), o relevo volta-se para a segunda forma de controle, o material. Voltando- se a existência das Constituições “para o homem e não para o Estado; para a Sociedade e não para o Poder” (1996, p. 269), esse controle possui um elevado teor de “politicidade”, pois incide sobre o conteúdo da norma (1996, p. 269). Outorga a quem exerce o controle “competência com que decidir sobre o teor e a matéria da regra jurídica, busca acomodá-la aos cânones da Constituição, ao seu espírito, à sua filosofia, aos seus princípios políticos fundamentais” (1996, p. 270).

Podemos ver que nesse ponto a hermenêutica clássica não consegue responder às novas exigências que carecem de uma interpretação com maior amplitude, necessária para concretizar os novos valores que foram inscritos na Constituição. Esse é um poder até então desconhecido para o clássico equilíbrio entre os poderes:

fazendo assim apreensivo o ânimo de quantos suspeitam que através dessa via a vontade do juiz constitucional se substitui à vontade do Parlamento e do Governo, gerando um superpoder, cuja consequência mais grave seria a anulação ou paralisia do princípio da separação de poderes, com aquele juiz julgando de legibus e não secundum legem, como acontece no controle meramente formal (BONAVIDES, 1996, p. 270).

Ao se reconhecer que o controle de constitucionalidade acarreta efeitos políticos e preeminência ao exercente, determinados sistemas constitucionais, tendo em conta a sua trajetória histórica, optam por conferir o exercício do controle a um corpo político distinto do Legislativo, do Executivo e do Judiciário (BONAVIDES, 1996, p. 272), como vimos em linhas anteriores, na maioria dos sistemas que seguem o modelo europeu kelseniano: Áustria, Alemanha, Itália e Espanha, para usar a taxonomia de Ferejohn e Pasquino (2001).

Outra possibilidade de exercício de controle é aquela que confere a competência a um órgão jurisdicional, esta, como alerta Paulo Bonavides (1996), enfrenta “o grave problema teórico, decorrente de o juiz ou tribunal investido nas faculdades desse controle assumir uma posição eminencialmente política” (1996, p. 272), ressaltando que:

117 ao adquirir supremacia decisória tocante à verificação de constitucionalidade de atos executivos e legislativos, o órgão judiciário estaria tutelando o próprio Estado. Graves objeções relativas pois à preservação de princípios básicos como os da separação e igualdade de poderes acompanham de perto a fórmula do controle judiciário, sem contudo lograr uma quebra da extraordinária importância que se tem atribuído ao seu emprego desde a célebre sentença do juiz Marshall na questão constitucional Marbury v. Madison (BONAVIDES, 1996, p. 272).

O controle da constitucionalidade das leis realizado por um órgão jurisdicional abarca duas formas: o controle por via de exceção e o controle por via de ação.

O controle da constitucionalidade das leis por via de exceção, também denominado de controle em concreto, ocorre quando durante um litígio judicial “uma das partes levanta, em defesa de sua causa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar” (BONAVIDES, 1996, p. 272). De forma que essa modalidade de controle pressupõe um caso, um litígio em concreto e a provocação de uma das partes. A decisão judicial que reconhece a inconstitucionalidade só será estendida às partes em juízo e não “conduz à anulação da lei, mas tão somente à sua não aplicação ao caso particular, objeto da demanda” (1996, p. 273). É também denominada de controle por via incidental, porque constitui um incidente do julgamento principal (1996, p. 273).

A lei não tendo sido anulada não desaparece do ordenamento jurídico, podendo ter aplicação em outro feito (BONAVIDES, 1996), a não ser que o poder competente, no caso, o Legislativo, a revogue. Dessa forma, a decisão “não ataca a lei em tese ou in

abstracto” (1996, p. 274). Essa forma de controle pode acarretar insegurança jurídica,

pois a validade da lei fica sujeita a interpretações “subjetivas de inconstitucionalidade, em ordem a gerar contradições e perplexidades” (BONAVIDES, 1996, p. 275). Ressalta Bonavides (1996), entretanto, que no sistema de controle estadunidense tal perigo fica afastado “quando a declaração é feita por um aresto da Corte Suprema” (1996, p. 275), tendo o mais alto órgão de justiça estadunidense decidido pela inconstitucionalidade, nenhum juiz ou tribunal decidiria em sentido contrário.

Essa forma de controle jurisdicional teve seu nascedouro nos Estados Unidos, em face da supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias, argumento afirmado pelo justice John Marshall, tendo ele construído o seu raciocínio com base nas fontes constitucionais e nos Federalistas, já que a Constituição Federal dos Estados Unidos, não se referia expressamente à possibilidade desse controle por parte dos tribunais,

118

como também não menciona a separação de poderes (BONAVIDES, 1996). O aresto proferido por Marshall no caso Marbury v. Madison, julgado em 1803, sustenta que “o princípio das Constituições rígidas impõe necessariamente aquela supremacia” (1996, p. 276), que coloca um enorme poder nas mãos do juiz. Descreve Paulo Bonavides (1996) fragmentos da sentença:

Os poderes do legislativo são definidos e limitados, sendo essa limitação a causa das Constituições escritas. Se não fossem eles definidos e limitados, por que reduzi-los à forma escrita, se a cada passo poderiam esses poderes ser alterados por aqueles cuja competência se pretende restringir?

[...] ou a Constituição controla todo ato legislativo que a contrarie, ou o legislativo, por um ato ordinário, poderá modificar a Constituição. Não há meio termo entre tais alternativas. [...] ou a Constituição é lei superior e suprema, que se não pode alterar por vias ordinárias, ou entra na mesma esfera e categoria dos atos legislativos ordinários, sendo como tais suscetível também de modificar-se ao arbítrio da legislatura.

[...] é dever do Poder Judiciário declarar o direito. De modo que se uma lei colide com a Constituição, se ambas, a lei e a Constituição, se aplicam a uma determinada causa, o tribunal há de decidir essa causa, ou de conformidade com a lei, desrespeitando a Constituição, ou de acordo com a Constituição ignorando a lei; em suma, à Corte compete determinar qual dessas regras antagônicas se aplica à espécie litigiosa, pois nisso consiste a essência mesma do dever judiciário (MARSHALL apud BONAVIDES, 1996, p. 276-277).

Esse aresto, que principiou o judicial review no direito estadunidense, declarou que “todo ato do Congresso contrário à Constituição federal deveria ser tido por nulo, inválido e ineficaz” (BONAVIDES, 1996, p. 281) e todo o tribunal norte-americano federal ou estadual, por via de exceção, pode exercê-lo. As possibilidades de recurso se “exaurem no aresto final da Suprema Corte” (1996, p. 281), atividade com função unificadora da jurisprudência, que põe fim às dúvidas ocorridas na função interpretativa sobre a validade da lei. Salienta Bonavides (1996, p. 281) que existe nos Estados Unidos uma tendência de “só conferir-se força de lei aos textos mais importantes, após um pronunciamento da Suprema Corte”, considerando todo esse poder judicial, mais o aresto sobre a validade da lei, tem-se afirmado que: “o status do juiz americano não tem paralelo no mundo” (1996, 281) e que a história constitucional dos Estados Unidos tem sido a história da Suprema Corte e seus arestos (1996, p. 282).

A Suprema Corte estadunidense em alguns momentos de sua história se revelou conservadora, chegando mesmo a ser reacionária, ao espelhar “as posições

119

individualistas da ideologia liberal” (BONAVIDES, 1996, p. 282), em razão de seus

justices alterarem o sentido esperado para o controle por via de exceção, transformando-

o “num instrumento de resistência às leis que refletiam o progresso social ou amparavam os interesses das classes obreiras contra a violência econômica e as exorbitâncias patronais” (1996, p. 282). O que foi destacado por Paulo Bonavides (1996) em relação a esse posicionamento judicial é para nós relevante, em virtude da metodologia que foi utilizada pelos juízes, como maneira de impor suas vontades, pois sem distanciarem dos valores constitucionais, com base neles, decidiam contra os mesmos e de certa maneira acabavam por outro lado por ratificar seus poderes:

A interpretação extensiva da Constituição, o apelo frequente ao seu espírito e aos “princípios gerais” que a animavam, a utilização da chamada “teoria dos poderes implícitos” que alargava consideravelmente a noção de inconstitucionalidade, eis a ladeira por onde os juízes desceram para chegar com suas sentenças a uma jurisprudência desatualizada em face de conceitos que a doutrina ia irresistivelmente reformulando acerca da propriedade e da liberalidade contratual (BONAVIDES, 1996, p. 282).

Tal como foi observado por Ely (2010), em momentos mais recentes da história do constitucionalismo estadunidense, do mesmo modo se apresenta a narrativa de Bonavides (1996) sobre a conduta dos juízes, que serve para comprovar que era possível e a um só tempo, ser a decisão da Suprema Corte, conservadora e ativista:

Logo ficará claro para o leitor que “ativismo” e “automoderação” são categorias que existem tanto no interpretacionismo quanto no não interpretacionismo. O “interpretacionismo estrito” (strict

constructivism) é um termo que certamente pode ser usado para

designar algo parecido com o interpretacionismo simples (interpretativism); infelizmente, ele tem sido mais utilizado (talvez de modo mais notável, nos últimos anos, pelo presidente Nixon) para designar algo bastante diferente: uma tendência para tomar decisões constitucionais que irão agradar os políticos conservadores (ELY, 2010, p. 3).

Esses registros servem para desconstruir a imagem geral de um judiciário imparcial e, também, como salienta Bonavides (1996), que esta forma de decidir “apagava aquela imagem concebida por Wilson de uma Suprema Corte elevada a fórum apolítico e imparcial, espelho e modelo de independência ideológica” (1996, p. 283). Por essa conduta, a Corte era extremamente criticada por retardar as conquistas sociais da legislação estadunidense e por embargar através do “veto interpretativo”

120

intransigente, a política reformista (1996, p. 283). Bonavides (1996) destaca que a Suprema Corte representaria um “terceiro poder”, o mais elevado do Congresso, em muito semelhante ao “poder constituinte”:

Tem-se dito que ao ditar sua jurisprudência, interpretando leis e fulminando de inconstitucionalidades, aquele órgão tomava as dimensões de uma terceira Casa do Congresso com poderes que nenhuma das duas ultrapassava ou – o que é mais significativo – de uma “Constituinte em sessão permanente”, ao mesmo passo que emprestava ao sistema político do País a feição de verdadeiro “governo de juízes” (BONAVIDES, 1996, p. 283).

A semelhança atribuída à Suprema Corte ao “poder constituinte”, como podemos observar na narrativa de Bonavides (1996), deve-se ao veto sobre as leis promulgadas pelo Congresso a favor da política social do Executivo, no caso em tela, (1996, p. 283), apesar de, em nota de rodapé, citando Laski, afirmar que a dimensão de uma “terceira casa legislativa” manifesta-se pelo simples exercício do judicial review, ou seja, pelo exercício do controle de constitucionalidade, independentemente, portanto, do voluntarismo político judicial. Com a política implantada por Roosevelt, o comportamento anterior da Suprema Corte, no período compreendido entre os anos 1880 e 1936, sofreu uma reviravolta, exercendo enorme pressão sobre os justices, renovando sua composição, a Corte passou a adotar um “controle de constitucionalidade mais sóbrio e moderado, ao mesmo passo que se apartava da vetusta orientação anti- social, anti-sindical e anti-intervencionista de seus arestos” (apud BONAVIDES, 1996, p. 283).

As causas apontadas por Paulo Bonavides (1996) que contribuíram com o estabelecimento do judicial review nos Estados Unidos são de três ordens: i) a natureza do sistema federativo e os ordenamentos estatais que produzem conflito de competência; ii) a arraigada “consciência nacional de defesa dos direitos fundamentais, no caráter liberal da sociedade estadunidense; iii) a tradição política dos três poderes, com “um Legislativo sempre refreado e limitado, até mesmo pela lembrança de suas antecedências coloniais; um Legislativo que dificilmente poderia acolher ambições pertinentes ao exercício de um monopólio de poder” (BONAVIDES, 1996, p. 286).

A outra modalidade de controle é por via de ação que possibilita o controle in

abstracto por intermédio de uma ação de inconstitucionalidade prevista textualmente na

121

modalidade de controle é diretamente exercida em um tribunal, objetivando a impugnação de uma lei, que poderá perder sua validade e, caso decida-se pela sua anulação, seus efeitos são erga omnes, ou seja, em relação a todas as pessoas (BONAVIDES, 1996). Salienta Paulo Bonavides (1996) que a ação direta é mais agressiva e radical, porque uma vez declarada a inconstitucionalidade, a lei é removida da ordem jurídica por ser com a Constituição incompatível (1996, p. 277). O órgão competente para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, normalmente são os tribunais constitucionais, sendo que em sistemas mais democráticos de controle de constitucionalidade tende a apresentar uma abertura maior dos possíveis legitimados para propor a ação (1996, p. 278). Como vimos acima, a ideia de enfeixar em um único órgão jurisdicional a competência para julgamento, ou seja, o sistema de jurisdição “concentrado” em um único órgão partiu de Kelsen, sendo, por isso, denominado de kelseniano. Esse sistema de julgamento concentrado em um único órgão contrasta com o sistema estadunidense, por via de exceção, pois o controle de constitucionalidade pode ocorrer de maneira “difusa”, ou seja, qualquer juiz ou tribunal pode apreciar a inconstitucionalidade da lei, tornando definitiva a decisão somente a partir de um aresto da Suprema Corte (BONAVIDES, 1996).

A jurisdição concentrada em um único órgão está presente no sistema de controle de constitucionalidade alemão, tendo surgido naquele país na “Lei Fundamental de Bonn (art. 92), de 23 de maio de 1949, que serve de Constituição à República da Alemanha” (BONAVIDES, 1996, p. 279). O órgão competente para exercer o controle é “o Tribunal Constitucional de Karlsruhe, composto de duas Câmaras. Cada Câmara se compõe de 12 juízes, eleitos metade pelo Bundestag e metade pelo Bundesrat” (1996, p. 280). A função exercida por cada Câmara divide-se em:

Uma das Câmaras conhece dos recursos constitucionais que importam atentados aos direitos fundamentais, ou seja, recursos impetrados por particulares, ao passo que a outra Câmara se especializa em questões de constitucionalidade pertinentes à salvaguarda do sistema federativo. As decisões dessa Corte, tendo força de lei, podem dar aos textos legais, que ao sejam anulados, uma interpretação eficaz

conforme à Constituição (BONAVIDES, 1996, p. 280, grifo nosso).

O grande problema do controle de constitucionalidade apontado por Bonavides (1996) é a natureza política que assume a declaração emitida pela Corte no controle

122

abstrato, tendo em vista a “competência revogatória e paralisante” sobre a lei emitida pelo poder competente, qual seja, o Legislativo, que levanta a discussão sobre o sacrifício imposto ao princípio da separação de poderes (1996, p. 286). Pela via de exceção, não ocorre a revogação da lei, tão somente suspende seus efeitos naquele caso em concreto, retirando o viés político que caracterizaria aquela decisão. Esses argumentos, nos parece, apontam para uma concepção estritamente liberal de Estado, muito discutida por teóricos estadunidenses como Dworkin e Rawls. Mas, lembra Bonavides (1996) que o constitucionalismo contemporâneo adequado a diretrizes sociais tende a não adotar essa separação estrita entre conduta política e/ou jurídica, os argumentos do autor, por outro lado, servem para demonstrar a relativização da separação clássica entre os poderes do Estado:

A dificuldade em caracterizar o que seja questão política para fazê-la defesa ao exame de constitucionalidade dos juízes e tribunais é tanto maior quanto se politizaram no Estado social contemporâneo os direitos individuais, com a perda consequente daqueles traços que na época do liberalismo tão nítida fizeram a fronteira entre o indivíduo e o Estado. As regras de distinção se afrouxaram. As questões políticas, que classicamente poderiam com toda a clareza ser demarcadas numa esfera autônoma, ganharam tal latitude, que sua catalogação [...] já não exaure a matéria, para efeito de determinação dos limites de controle de constitucionalidade (BONAVIDES, 1996, p. 290).

No documento anacristinacostasoares (páginas 116-123)