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O Supremo Tribunal Federal após o golpe de

No documento anacristinacostasoares (páginas 61-69)

O Supremo Tribunal Federal com o golpe de 1964 teve que enfrentar muitos problemas. Emília Viotti da Costa (2006) assim descreve esse período:

No Brasil, há uma distância grande que medeia entre o povo e o seu Poder Judiciário. Esta falta de entrosamento do Poder Judiciário com a soberania popular faz com que ele também não se apresente seguro, com força bastante para pronunciar aquelas decisões que possam efetivamente coibir os desmandos do Executivo, sempre inclinado a ser arbitrário e caprichoso, como todo detentor do poder (apud COSTA, 2006, p. 159).

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Seguidamente ao golpe de 1964, foi o poder assumido pelos militares que alteraram significativamente os poderes Legislativo e Judiciário; os poderes do Executivo, de forma contrária, foram aumentados, tal como ocorreu no Estado Novo. Novamente, o Supremo Tribunal foi “atingido por várias medidas que interferiram em sua composição e limitaram seus poderes” (COSTA, 2006, p. 159), impedindo que os atos do Executivo fossem apreciados pelo Tribunal. Vários direitos e garantias dos cidadãos ficaram subordinados “ao conceito de segurança nacional” (2006, p. 159). A Constituição de 1946 vigorou até 1967, “quando uma nova Carta Constitucional foi submetida à aprovação da Câmara” (2006, p. 159), apesar de ambas terem sofrido mudanças em seu conteúdo em razão dos Atos Adicionais e das inúmeras Emendas Constitucionais (2006, p. 159).

Estando na posse da presidência da República, Humberto Alencar Castelo Branco, em visita ao Supremo, foi recebido pelo ministro Ribeiro da Costa, o qual pronunciou um discurso afirmando que seria natural o “sacrifício de alguns princípios e garantias constitucionais”, conforme podemos depreender da citação de Emília Viotti da Costa (2006), que narra:

que o ministro, depois de afirmar que a sobrevivência da democracia nos momentos de crise se havia de fazer com o sacrifício transitório de alguns de seus princípios e garantias constitucionais, acusou o governo deposto de ser responsável pela situação em que se encontrava o país (o que era também opinião dos militares e dos que os apoiavam), mas ressalvou que a Justiça, quaisquer que fossem as circunstâncias políticas, não tomava partido, não era a favor ou contra, não aplaudia nem censurava. Mantinha-se equidistante, acima das paixões políticas (COSTA, 2006, p. 161).

Argumentou Emília Viotti da Costa (2006) que a fala do ministro na prática era impossível de se materializar, pois como seria possível a “um Judiciário que se queria independente e acima das paixões políticas sacrificar princípios e garantias constitucionais que deveria defender?” (2006, p. 162), e mais: “Como poderia o Tribunal cooperar com o Executivo, mantendo sua neutralidade, autonomia e independência? Como exerceria a sua função de defensor da Constituição, se esta a cada passo sofria alterações que modificavam o seu texto” (2006, p. 162)?

Um habeas corpus impetrado na Corte a favor da liberdade de pensamento e de cátedra, garantida pela Constituição, a pedido do professor Sérgio Cidade de Resende, preso preventivamente, como incurso nas penas da Lei 1.802, de janeiro de 1953, que

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definia os crimes contra o Estado e a ordem política e social; teve seu julgamento ocorrido no dia 24 de agosto de 1964, sendo relator o ministro Hahnemann Guimarães. O julgamento levantou a questão da liberdade de expressão, que foi “defendida galhardamente pelos ministros” (COSTA, 2006, p. 162). Acompanharam o relator os ministros Evandro Lins e Silva e Hermes de Lima, em defesa da tese da liberdade de expressão e de cátedra. O ministro Pedro Chaves, apenas “acompanhou o relator no terreno legal, mas ressalvou que divergia no terreno político-ideológico” (COSTA, 2006, p. 162).

Muitos habeas corpus chegaram ao Supremo nessa época, contudo, o Tribunal se viu privado de sua competência para julgá-los, sendo essa deslocada para a atribuição exclusiva da Justiça Militar. Durante o governo de Castelo Branco, que se julgava um legalista, cresceu a hostilidade dos militares em relação ao Supremo (COSTA, 2006, p. 163).

Um pedido de habeas corpus a favor do governador do Estado de Goiás, Mauro Borges Teixeira entrou no Supremo Tribunal Federal, em novembro de 1964, “submetido a inquérito policial militar, quando tinha prerrogativas de foro de acordo com a Constituição estadual” (COSTA, 2006, p. 163). Respondendo o pedido de informações formulado pelo Supremo, Milton Campos, ministro da Justiça, justificou o processo com base no “Ato Institucional, de 9 de abril de 1964 e pela portaria n. 1, que criara a abertura de inquérito policial militar para ‘todos aqueles que, no País, tivessem desenvolvido ou ainda estejam desenvolvendo atividades capituláveis nas leis que definem os crimes militares e os crimes contra o Estado e a ordem política e social’” (COSTA, 2006, p. 164). A ordem concedida foi “acatada pelo auditor em exercício da 4ª Região Militar” (2006, p. 164). O ministro relator Gonçalves Oliveira fez um discurso sobre a independência do Supremo em tempos de crise, citado por Emília Viotti da Costa (2006):

A Constituição é o escudo de todos os cidadãos, na legítima interpretação desta Suprema Corte. É necessário, na hora grave da história nacional, que os violentos, os obstinados, os que têm ódio no coração, abram os ouvidos para um dos guias da nacionalidade, o maior dos advogados brasileiros, seu maior tribuno e parlamentar, que foi Rui Barbosa: Quando as leis cessam de proteger nossos adversários, virtualmente, cessam de nos proteger (apud COSTA, 2006, p. 164).

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Concedido o habeas corpus por unanimidade seu efeito não foi alcançado, pois “Castelo Branco decretou intervenção em Goiás e Mauro Borges foi deposto” (COSTA, 2006, p. 164). Passou o governo militar a ignorar as ordens proferidas pela Suprema Corte brasileira, pondo fim à independência dos julgados da Corte.

O governador de Pernambuco Miguel Arraes de Alencar, sob a acusação crime de “tentativa de mudança da ordem política e social mediante ajuda de Estado Estrangeiro” (COSTA, 2006, p. 164), foi deposto e preso, em 31 de março de 1964, correndo o processo perante a Justiça Militar. Em 19 de abril de 1965, quase um ano depois, continuava Miguel Arraes preso. Foi impetrado, então, um habeas corpus, no Supremo Tribunal, para que o paciente fosse posto solto, sendo nele alegado a incompetência da Justiça Militar. O habeas corpus que havia sido negado pelo Superior Tribunal Militar foi concedido por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, que antes pedira informações ao Superior Tribunal Militar, tendo este informado que o paciente: “figurava como cabeça da subversão no Nordeste, sendo apontado como ‘ativista da linha comunista, orientação chinesa, juntamente com o ex-deputado Francisco Julião, Gregório Bezerra’” (COSTA, 2006, p. 165).

Outras decisões do Supremo Tribunal tentaram impedir os abusos cometidos pelos militares, sendo concedido, nessas sentenças, o habeas corpus requerido aos presos políticos, que respondiam a crimes supostamente cometidos. Essas decisões “acabaram por levar o governo a interferir no STF em flagrante violação aos dispositivos constitucionais” (COSTA, 2006, p. 165), pois suas sentenças além de desagradarem o comando militar intencionavam, ao garantir liberdades, limitar as ações do Executivo.

Uma entrevista do ministro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo, em 20 de outubro de 1965, sobre a intenção do governo de aumentar os ministros da Corte, serviu para agravar a crise já existente entre esses poderes e a justificar a intervenção na Corte. Nessa entrevista, o ministro “condenava a interferência do Executivo e do Legislativo no Judiciário e observava que o aumento de seus membros só poderia ocorrer por recomendação do Supremo e votação do Senado”; por fim, “repudiava o envolvimento dos militares, equiparando-os aos agitadores do período de Goulart” (COSTA, 2006, p. 166), tendo salientado, ainda, Ribeiro da Costa, a independência da Corte: “os militares que se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da Nação” (2006, p. 166). Não deixou de salientar, citou Emília Viotti da Costa (2006) sobre a distinta independência da Corte:

64 A atividade civil pertence aos civis, declarou o ministro. Lembrou aos militares que eles tinham jurado fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição, e que ao Supremo cabia o controle da legalidade e da constitucionalidade dos atos dos outros poderes, sendo por isso

investido de excepcional independência (COSTA, 2006, p. 166, grifo

nosso).

A opinião da imprensa sobre esse conflito foi destacada por Emília Viotti da Costa (2006): “o Correio da Manhã denunciou a gravidade da situação e a indisciplina do ministro da Guerra [que teceu críticas ao ministro Ribeiro da Costa]. Acusou o governo de atentar contra o princípio da independência e harmonia dos poderes” (2006, p. 166). Outro jornal, o Jornal do Brasil não tomou partido sobre o incidente. O jornal

O Globo, por sua vez, “apoiou o governo, afirmando que a continuidade da revolução

estava em jogo. Para atingir os seus fins, ela tinha que ser uma, não podendo existir um Executivo pró-revolucionário, um Legislativo ambivalente e um Judiciário neutro” (COSTA, 2006, p. 166).

Em 27 de outubro de 1965, Castelo Branco emitiu o Ato Institucional n. 2. Este atingiu o Supremo ao alterar a sua composição que passou de onze ministros para dezesseis, os cinco novos ministros pertenciam a UDN, mais adequados ao governo (COSTA, 2006, p. 167). As garantias constitucionais dos juízes, tais como vitaliciedade e estabilidade foram suspensas. Foram retiradas do Supremo a apreciação da suspensão dos direitos políticos, a cassação de mandatos legislativos federais, estaduais e municipais. Conforme destacou Emília Viotti da Costa (2006, p. 167), “o AI-2 institucionalizava o arbítrio sob a fachada de legalidade”.

Uma grande inovação nesse período em relação à atuação do Supremo Tribunal, foi a aprovação da:

Emenda Constitucional n. 16, de 1965, que introduziu cláusula no artigo 101, parágrafo 1º, da Constituição de 1946, pela qual ficava permitido ao Supremo Tribunal julgar, em tese, as leis e os atos normativos federais mediante representação do procurador-geral da República. Por meio dessa emenda, depois incorporada à Carta de 1967, o controle de constitucionalidade ganhou plenitude total (COSTA, 2006, p. 167).

A declaração de inconstitucionalidade em tese que passou com a Emenda a ser concedida ao Supremo Tribunal Federal destinava-se “à defesa geral da Constituição contra as leis inconstitucionais” (MENDES, 1996, p. 65), cabendo ao Procurador-Geral

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da República, nesses casos, um “papel especial de advogado da Constituição” (MENDES, 1996, p. 65). Foi positivada na Constituição a “instituição de um advogado da Constituição (Verfassungsanwalt) que deveria deflagrar o controle de normas ex

officio sempre que uma lei se lhe afigurasse incompatível com a Constituição”

(MENDES, 1996, p. 65), sendo dispensado, para o exercício desse controle, qualquer interesse específico; o Procurador-Geral, atuava como um representante do interesse geral.

Foi promulgada, em 24 de janeiro de 1967, uma nova Constituição para o país, que entrou em vigor, em 15 de março de 1967, quando assumiu a Presidência o Marechal Costa e Silva. Esta Constituição teve por preocupação a segurança nacional e concedeu maiores poderes à União e ao Presidente da República, mas acima de tudo, reduziu a “autonomia individual, permitindo suspensão de direitos e de garantias constitucionais, no que se revela mais autoritária do que as anteriores, salvo a de 1937” (SILVA, 2002, p. 87). Ao conceder maior poder ao Executivo para governar por decretos-leis justificados por “expressões vagas como urgência, interesse público ou matéria de segurança nacional” (COSTA, 2006, p. 169), diminuiu, quando não retirou as atribuições do Legislativo e do Judiciário. Como salientou Emília Viotti da Costa (2006), com a Constituição de 1967, se constatou uma significativa distância entre o seu texto e a realidade:

Novamente se repetiria a discrepância, tantas vezes denunciada na história do país, entre o que afirmava o texto constitucional e o que sucedia na prática. O artigo 150 da Constituição assegurava o recurso ao Poder Judiciário em casos de lesão de direito individual, a plena liberdade de consciência, a liberdade de manifestação de pensamento, de convicção política e filosófica. No entanto, muitos cidadãos foram presos e submetidos a inquéritos militares por suas convicções políticas e filosóficas, em nome da segurança nacional, sendo-lhes vedado o recurso ao Judiciário. [...] A partir do aparecimento da guerrilha, no entanto, não só a tortura foi usada contra presos políticos como a pena de morte foi instituída e vários presos foram mortos ou desapareceram sem deixar traços. A lei assegurava ao acusado plena defesa. Concedia habeas corpus sempre que alguém sofresse ou se achasse na iminência de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Mas os habeas

corpus ficariam suspensos em casos de “crime contra a segurança

nacional” (COSTA, 2006, p. 169-170).

Apesar do crescente e arbitrário poder do Executivo, o Tribunal, mesmo tendo suas funções extremamente limitadas “continuava a tomar decisões, que desagradavam

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a setores de linha dura das Forças Armadas. No dia 10 de dezembro de 1968, o Supremo ordenou a libertação de 81 estudantes, detidos desde junho” (COSTA, 2006, p. 171). Novo ato do governo atingiria o Supremo. Em 13 de dezembro de 1968, o presidente Costa e Silva “baixou o Ato Institucional n. 5, outorgando ao presidente da República poderes excepcionais que lhe permitiriam atuar na ordem institucional sem apreciação do Judiciário. Dessa forma, o Ato se sobrepôs mais uma vez à Constituição vigente” (COSTA, 2006, p. 171). Foi determinada a suspensão da garantia constitucional do habeas corpus nos casos de crimes políticos, sendo excluído, ainda da apreciação judicial qualquer conduta descrita no Ato Institucional n. 5 (2006, p. 172). Por intermédio do Ato Complementar n. 38, de 13 de dezembro de 1968, foi declarado o “recesso por tempo indeterminado do Congresso Nacional, ficando o Poder Executivo incumbido de legislar por decreto” (2006, p. 172).

Outro Ato Institucional, de n. 6 afetou o Supremo Tribunal. Através dele reduziu-se de dezesseis para onze o número de ministros, restringiu-se a sua competência, pois, mais uma vez, foi estendida “a jurisdição da Justiça Militar aos civis nos casos expressos em lei, para repressão de crimes contra a segurança nacional ou instituições militares” (COSTA, 2006, p. 173), mantendo-se excluídos de apreciação judicial civil as condutas que infringissem o novo ato. Novamente ocorreram desligamentos involuntários de ministros, foram compulsoriamente aposentados três ministros do Supremo: Evandro Lins e Silva, Hermes de Lima e Vitor Nunes Leal. Outros dois ministros, Gonçalves de Oliveira renunciou e Lafayette de Andrada aposentou-se, ambos em solidariedade aos colegas. Em 1969, o Supremo encontrava-se quase totalmente renovado e as vagas estavam preenchidas por ministros da confiança do regime (COSTA, 2006, p. 173).

Com base nesse levantamento histórico, evidencia-se a nossa primeira grande hipótese, pois a partir do estudo sobre o Supremo, que se inicia com a Constituição de 1891, podemos estabelecer uma nítida distinção entre o Supremo Tribunal Federal, antes de 1968 e o mesmo Supremo Tribunal Federal, depois da Constituição de 1988. Podemos observar que a fase republicana pré-68 não se caracterizou por buscar no Direito um fundamento para a vida política e social brasileira. Os direitos e a Constituição no Brasil não serviram absolutamente para resolver os conflitos políticos, econômicos e sociais; estes conforme vimos acima eram resolvidos pelo poder político, que, por sua vez, solucionava os conflitos, em última análise, pela força. Daí o papel

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jogado pelas Forças Armadas, de árbitros – arbitrários – dos conflitos políticos que não foram consensualmente resolvidos pelas elites e partidos políticos.

Os direitos individuais, de cunho liberal foram a tônica para a atuação do Supremo até 1968, que atuou de maneira mais pautada pela experiência da Suprema Corte estadunidense. As condições sociais – analfabetismo, falta de organização da sociedade, pobreza e toda uma sequência de problemas – impediam que a sociedade pudesse visualizar no direito a sua forma de auto-organização. Dessa maneira, tanto entre as elites políticas quanto entre a massa da população, o sistema jurídico – o judiciário e o sistema legal – não eram vistos como reservas democráticas da sociedade, mas como campo de lutas e conflitos ou como um território estranho e afastado da vida democrática para quase toda a sociedade. Nessas circunstâncias, coube ao Supremo um papel secundário no jogo político e na vida da população e de seus agentes.

A Constituição de 1988 irá reverter dramaticamente esse quadro, reservando ao Supremo Tribunal Federal uma importante missão, ser guardião da ordem constitucional brasileira.

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