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Judicialização da política e ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal

No documento anacristinacostasoares (páginas 193-199)

5 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A SUA AUTONOMIA

5.3 Judicialização da política e ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal

Alguns estudos vêm confirmando uma postura ativista por parte dos juízes brasileiros. Vanice R. Lírio do Valle et al. (2012) listam o conjunto das sete características formuladas por William Marshall (2002) que conhecemos anteriormente. Dentre todos, Valle (2012) destaca o ativismo jurisdicional como o mais importante: “esse índice é conceituado por Marshall como a ‘recusa de os tribunais se manterem

dentro dos limites jurisdicionais estabelecidos para o exercício de seus poderes’”

(VALLE et al., 2012, p. 39).

A tese postulada por Valle et al. (2012) é a de que o Supremo Tribunal Federal, através de uma postura ativista, “vem redefinindo os limites de sua própria competência jurisdicional, alcançando áreas e temas que talvez não se contivessem no traçado original da Constituição, alterando, assim, seu próprio peso no concerto político da relação entre poderes” (VALLE et al., 2012, p. 40). Destacam, ainda, Valle et al. (2012) que “o ativismo jurisdicional privilegia não o perfil ideológico e técnico-jurídico, mas a corte como parte de uma complexa equação de poder” (VALLE et al., 2012, p. 40).

Clarissa Tassinari (2013) também realiza uma análise pertinente sobre o tema ativismo. Tassinari (2013), antes de descrever o ativismo judicial, apresenta alguns pontos relevantes para a compreensão da judicialização da política. Primeiro que ela “emerge tanto de um contexto social de exigência de direitos, bem como de um arranjo político de desídia na implementação destes fora da jurisdição, questões que se

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imbricam mutuamente” (2013, p. 55). Decorre daí, o segundo ponto que é o “fato de que a judicialização não tem seu nascedouro propriamente no interior do sistema jurídico” (2013, p. 55). Explica melhor Tassinari: “este é um problema que se apresenta como inexorável na exata medida de que sua superação não depende exclusivamente de uma estratégia jurídica que lhe ofereça controle, isto é, que seja capaz, por si só, conter a crescente judicialização” (2013, p. 55).

Portanto, a judicialização da política, afirma Tassinari (2013), muito embora não nasça do sistema jurídico, é um fenômeno que se manifesta no âmbito jurídico, não podendo se separar os elementos políticos, sociais e jurídicos que o permeiam (2012, p. 55). O próprio judiciário, por vezes tenta controlar sua expansão, como ocorre com a edição de súmulas vinculantes, a repercussão geral, a tentativa de limitar a interposição de recursos etc. (TASSINARI, 2013, p. 55).

Tassinari (2013) afirma que o ativismo judicial, por sua vez, é “um problema exclusivamente jurídico (ou seja, criado pelo Direito, mas, evidentemente, com consequências em todas as demais esferas)” (2013, p. 56). O ativismo judicial é como um “ato de vontade”. Nesse sentido, argumenta a autora que a teoria da interpretação deve ser revisitada: “é a interpretação um ato de vontade do intérprete ou o resultado de um projeto compreensivo no interior do qual se opera constantes suspensões de pré- juízos que constitui a perseguição do melhor (ou correto) sentido para a interpretação” (TASSINARI, 2013, p. 56). A autora defende que a interpretação adequada deve estar vinculada à segunda opção e ressalta ainda que elementos como “vontade, discricionariedade e subjetividade” é que distinguem uma postura ativista da judicialização da política (2013, p. 64). Ao se referir ao ativismo judicial como uma categoria criada pelo direito, talvez fosse mais adequado afirmar que sendo um ato de vontade só pode ser praticado por um sujeito e não pelo direito. Assim por nós entendido, o ativismo não se trata de “um problema exclusivamente jurídico”. Parece- nos, na verdade, que o ativismo é “um problema político”, pois afeta o pleno exercício democrático, quando juízes não eleitos passam a criar direitos ou descumprem as determinações legais, sob alegação de que estariam realizando justiça.

Marcos Paulo Veríssimo (2008) qualifica o ativismo judicial utilizado pelos tribunais brasileiros, adjetivando-o de “à brasileira” (2008, p. 410). Para o autor, o excesso de atividade do STF (2008, p. 415), bem como a especificidade do controle de constitucionalidade brasileiro (2008, p. 432) seria suficiente para justificar a denominação.

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Thamy Pogrebinschi (2011) empreende um estudo sobre o comportamento do Supremo Tribunal Federal com base nos resultados das várias ADIs – Ações Declaratórias de Inconstitucionalidades – decidas pela corte. Conclui a autora afirmando que a quantidade de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo é ínfima. Afirma que a corte constitucional brasileira é deferente ao Congresso Nacional e nega que ocorra judicialização da política ou ativismo por parte do Supremo (POGREBINSCHI, 2011, p. 36-37). Após analisar o número de ADIs e ADPFs julgadas pelo Tribunal, no período de 1988 a 200927, afirma Pogrebinschi (2001):

Vê-se, portanto, que não apenas o número de normas com vícios de inconstitucionalidade aprovadas pelo Congresso Nacional é extremamente reduzido, como também – e principalmente – o STF se abstém de declarar inconstitucionais quase 90% das normas que têm sua constitucionalidade contestada. Percebe-se, assim, que, por mais que os mecanismos das ADIs e ADPFs sejam acionados com intensidade significativa no STF, ele o é com bem menor intensidade para as leis do Congresso Nacional e, mais importante, na expressiva e absoluta maioria das vezes, o STF se abstém de “judicializar a política”, confirmando as normas emanadas pelo Legislativo e preservando a expressão da vontade majoritária no lugar à qual originalmente pertence (POGREBINSCHI, 2011, p. 36-37).

Segundo Pogrebinschi (2011), o Supremo Tribunal Federal tem evitado “judicializar a política” e a corte vem “confirmando as normas emanadas pelo Poder Legislativo e preservando a expressão da vontade majoritária no lugar à qual originariamente pertence” (2011, p. 37). E, ainda que as ações declaratórias de inconstitucionalidade rejeitadas preliminarmente pelo STF representam “um forte sinal da deferência que o STF faz ao Poder Legislativo” (2011, p. 37).

A análise de Pogrebinschi (2011) está voltada tão somente ao número de ADI – ações declaratórias de inconstitucionalidade e de ADPF – ações de descumprimento de preceito fundamental, deferidas ou indeferidas, estas que ela se utiliza para negar que o STF faça judicialização da política ou ativismo judicial. No entanto, as ações que são interpostas no Supremo não se restringem apenas a ADI e ADPF, acolhidas ou rejeitadas, e, para uma visão sobre o comportamento da corte brasileira é necessário também uma análise que considere o conteúdo da decisão. Desse modo, compreender a atuação do Supremo, numa perspectiva democrática, conforme idealizada pelo

27 Conforme tabela 1.7 sobre ADIs e ADPFs julgadas, por decisão final (1988-2009): indeferidas 436

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constituinte de 1987, requer uma análise crítica sobre o comportamento da corte nacional que não se restrinja somente aos números.

Outra questão levantada por Pogrebinschi (2011) diz respeito ao objeto das ações protocoladas no Supremo. Segundo Pogrebinschi (2011) do universo:

total de 4.574 processos de revisão constitucional abstrata que receberam trâmite no STF entre 1988 e 2009, apenas 857 têm por objeto o questionamento de normas emanadas pelo Poder Legislativo federal, o que equivale a 18,74% dos casos. Os demais 81,26% dos casos, ou seja, 3.717 leis e atos normativos questionados têm sua origem fora do Congresso (POGREBINSCHI, 2011, p. 22).

As normas que se originam no Poder Legislativo federal podem ser consideradas de pouco expressão, pois correspondem menos de um quinto do total (POGREBINSCHI, 2011, p. 22). De acordo com Pogrebinschi (2011):

O valor pequeno do número de normas do Poder Legislativo federal questionadas no STF é inversamente proporcional ao valor da importância desse dado, que é enorme: o suposto ativismo judicial do

STF não pode ser justificado pela judicialização das disputas havidas

na arena política do Congresso Nacional. Tampouco pode pesar ao Congresso a acusação de que as normas por ele promulgadas respondem pela suposta má qualidade das normas produzidas no país, a julgar pelo vício de constitucionalidade que, em tese, conteriam originalmente (POGREBINSCHI, 2011, p. 22, grifo nosso).

Insiste Pogrebinschi (2011) que o número pouco representativo de normas expedidas pelo Legislativo federal, sujeitas à apreciação de inconstitucionalidade pelo Supremo, não pode justificar a acusação de “suposto ativismo judicial do STF”. Importa saber o que os termos ativismo judicial e judicialização da política significam no trabalho de Pogrebinschi (2011). Ou, a qual descrição de índices de ativismo, tais como os que foram enumerados por Marshall (2002), serviriam melhor para enquadrar o entendimento da autora.

O trabalho de Pogrebinschi (2011) foi contestado por Lênio Streck (2013), que sintetizou as teses levantadas pela autora: i) o STF não tem uma atuação contramajoritária, em virtude do número inexpressivo de ADIs de leis ou atos normativos do Congresso; ii) o STF reforça a vontade majoritária representada no Congresso, confirmando a constitucionalidade de leis e atos normativos em 86% das ADIs e ADPFs; iii) o STF não atua de forma ativista, colmatando as supostas lacunas

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deixadas pelo Legislativo, de forma que, para cada ADI, havia uma média de 11,75 projetos de lei tratando da mesma matéria; iv) não há enfraquecimento majoritário do Legislativo, já que o Congresso para cada ADI propõe outros projetos versando sobre a mesma matéria; v) o STF, pelo contrário do pensado, fortalece a atuação do Legislativo obrigando-o a legislar sobre determinada matéria; vi) o comportamento do STF não se alia a nenhuma coalizão majoritária do Congresso; vii) o STF utiliza-se de recursos jurídicos para preservar ao máximo a palavra do Parlamento, tais como: interpretação conforme, nulidade parcial sem redução de texto e modulação de efeitos (2013, p. 290).

Sustenta Streck (2013), comentando sobre a pesquisa de Pogrebinschi (2011), que o “fato de se dizer [...] que o STF é ativista não quer dizer que o Legislativo é fraco” (2013), quer dizer, essa não é uma relação necessária. Destaca Streck (2013) que o “agigantamento do Judiciário não quer dizer enfraquecimento do Legislativo” (2013, p. 291). Critica Streck (2013) o fato de Pogrebinschi (2011) denominar de “outliers” (casos mentirosos) (2011, p. 8), casos em desacordo com a realidade quando a autora afirma que são poucos os que associam a expansão do judiciário à retração do Legislativo. E que essa argumentação não seria suficiente para demonstrar ativismo ou judicialização (2013, p. 291). Segundo Streck (2013, p. 291), “isso não é tão simples assim”.

Fragiliza a pesquisa de Pogrebinschi (2011), afirma Streck (2013), o fato de ela considerar que a maioria das ADIs terem sido rejeitadas significa “que o STF ‘não é ativista’ e que ‘não está judicializando’” (STRECK, 2013, p. 292). Questiona Streck: “desde quando somente um ato positivo de inconstitucionalidade é que demonstra o ativismo de uma Suprema Corte”? E, ainda: “Quer dizer que, se o STF julga de acordo com o parlamento ou de acordo com o governo, ele deixa de ser epitetado de ativista”? Por fim: “Ativismo é só quando julga ‘contra’”? “Afinal, qual é o conceito de

ativismo”? (STRECK, 2013, p. 292).

Pelo estudo desenvolvido por Pogrebinschi (2011) e os contra-argumentos apresentados por Streck (2013), é possível vermos a importância e as implicações que esse tema adquire no Brasil. As discussões sobre ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal, quando se analise o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos, ganham nova feição. A discussão sobre ativismo judicial em ações declaratórias de constitucionalidade deve ser considerada quando traz implicações de fundo, pois essa forma de controle está expressa na Constituição de 1988 e está compreendida na competência explícita da Corte. Por esse ângulo, não se poderia nem

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mesmo falar em ativismo judicial ou judicialização, pois o julgamento de constitucionalidade ou inconstitucionalidade pelo STF foi desejado e textualmente estabelecido pelo constituinte de 1987, na Constituição de 1988. De modo distinto, se apresenta a discussão sobre a revisão judicial no direito estadunidense. Nos Estados Unidos, a Constituição não traz previsão expressa sobre a possibilidade de revisão judicial, forma que é típica dos países da família da common law. Naquele país a revisão judicial desenvolveu-se através de uma construção jurisprudencial que ganhou repercussão no caso Marbury v. Madison, como vimos alhures.

Lênio Streck (2013) afirma que tanto os tribunais brasileiros quanto o STF “fazem política quando dizem que não fazem; fazem ativismo quando dizem que não fazem; e judicialização quando sustentam que não fazem” (2013, p. 294).

As afirmações de Streck (2013) estão baseadas nos seguintes casos levados à apreciação do STF, que, em sua perspectiva, deveriam ter sido levados para o Congresso Nacional, local para o exercício político em sentido estrito e que evitaria que a corte realizasse “julgamentos por política e não por princípios”: i) os segmentos a favor das cotas; ii) o segmento que pediu a equiparação da união homoafetiva; iii) as pesquisas com células-tronco; iv) a descriminalização do aborto dos anencéfalos; v) a judicialização do direito à saúde; vi) o julgamento da Reclamação 4335/AC que tentou realizar uma mutação constitucional, só para citar alguns. Todos são temas polêmicos, mas reconhecemos ser de difícil aprovação pelas vias democráticas normais, o Congresso Nacional, o que nos permite enquadrá-los como casos em que se confirma a judicialização da política, mesmo que dentro das decisões tomadas possa ter ocorrido ativismo judicial.

Essas ligeiras discussões apresentadas mostram que os teóricos brasileiros já detectaram uma forte presença do fenômeno da judicialização da política como também do ativismo judicial no Brasil. A judicialização da política que, nas palavras de Hirschl (2009), torna mais atraente o uso de soluções legais e constitucionais para problemas políticos e de outro lado, contribui para a expansão de um discurso de direitos (2009, p. 143), está comprovada pelas muitas ações ajuizadas no Supremo, facilitadas pelos instrumentos dispostos na Constituição de 1988, para o exercício de direitos e de garantias, da forma como foi desejada pelo constituinte. O ativismo jurisdicional depende, por sua vez, da análise sobre “como” as decisões do Supremo vêm sendo firmadas. Entretanto, é inegável que a judicialização da política e o ativismo

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jurisdicional são fatores que têm servido para o Supremo Tribunal Federal construir, expandir e consolidar sua autonomia.

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