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John Hart Ely entre democracia e desconfiança

No documento anacristinacostasoares (páginas 158-161)

4 ESTADOS UNIDOS E ALEMANHA ORGANIZANDO O DEBATE SOBRE A CORTE CONSTITUCIONAL

4.2 John Hart Ely entre democracia e desconfiança

Conforme apresentamos anteriormente, a teoria de John Hart Ely (2010), que foi criticada por Dwokin (2005), discute a distinção entre interpretacionistas e não- interpretacionistas. Os primeiros defendem que “os juízes que decidem questões constitucionais devem limitar-se a fazer cumprir as normas explícitas ou claramente implícitas na Constituição escrita” (2010, p. 3). Os não-interpretacionistas, por sua vez, sustentam que “os tribunais devem ir além desse conjunto de referências e fazer cumprir normas que não se encontram claramente indicadas na linguagem do documento” (2010, p. 3). Tais distinções, ressalta Ely (2010), não guardam relação estrita com os conceitos de ativismo e automoderação judicial (2010, p. 4). O que os distingue resulta do fato de os interpretacionistas só declararem nulos os atos dos poderes políticos que tenham referência clara na Constituição.

Ely (2010) publicou originalmente esse livro, em 1980. O caso Roe vs. Wade, julgado em 1973, também foi comentado por ele que afirmou que a vertente interpretacionista, à sua época, estava passando por um “relativo apelo popular” (2010, p. 5, grifo nosso). Segundo Ely, a controversa decisão no caso Roe representa o exemplo mais claro de “’raciocínio’ não interpretacionista por parte da Corte em quatro décadas” (2010, p. 5). Os observadores antes:

158 ficavam satisfeitos em deixar os juízes imporem seus próprios valores (ou a sua interpretação dos valores da sociedade) hoje em dia ficam um pouco incomodados com isso e tendem a seguir uma linha interpretacionista, privilegiando os valores dos constituintes (ELY, 2006, p. 6).

Salienta Ely (2010) que o interpretacionismo sempre foi uma tendência da Corte. Primeiro, porque, segundo Ely (2010), essa linha “se encaixa melhor em nossas concepções costumeiras de o que é o direito é e como ele funciona” (2010, p. 6); segundo, porque a linha oposta, o não interpretacionismo, se depara com dificuldades para conciliar com a teoria democrática dos Estados Unidos pois “a maioria das decisões importantes é tomada por nossos representantes eleitos [...]. Os juízes [...] não são eleitos nem reeleitos” (2010, p. 7). Nada pode diminuir a importância do processo eleitoral, afirma Ely, e o controle judicial de constitucionalidade “choca-se contra essa característica” (2010, p. 7). Ely (2010) reconhece que “os tribunais criam o direito o tempo todo”, buscando inspiração em fonte não interpretacionista, como os princípios fundamentais, mas fora das questões constitucionais limitam-se a preencher lacunas deixadas pelo legislativo (2010, p. 8).

Ely (2010) estabelece uma distinção entre a jurisdição constitucional e a jurisdição ordinária. Em relação a essa última, suas decisões “estão sujeitas à anulação ou alteração pela lei à ordinária”, o legislativo entende que a Corte o está substituindo (2010, p. 8). De outro lado, quando a “Corte invalida um ato dos poderes políticos com base na Constituição, ela está rejeitando a decisão dos poderes políticos e, em geral, o faz de maneira que não esteja sujeita à correção pelo processo legislativo ordinário” (2010, p. 8), o que serve para demonstrar o grande poder da jurisdição constitucional. A função do controle judicial de constitucionalidade, também é um problema já que “um órgão que não foi eleito, ou que não é dotado de nenhum grau significativo de responsabilidade política, diz aos representantes eleitos pelo povo que eles não podem governar como desejam” (ELY, 2010, p. 8).

O controle majoritário é discutido por Ely (2010) que verifica o desenvolvimento do constitucionalismo no último século, tendo este contribuído para fortalecer “o compromisso original com o controle do governo pela maioria dos governados” (2010, p. 11). O núcleo da democracia norte-americana se encontra no consentimento da maioria ao governo, mas também salienta Ely (2010, p. 12) “que uma maioria com poder ilimitado para determinar a política governamental tem todas as

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condições para conceder benefícios em detrimento da minoria restante”. Existe, como sempre existiu, uma dificuldade “de proteger as minorias da tirania da maioria sem incorrer numa contradição flagrante com o princípio majoritário” (ELY, 2010, p. 12), sendo esse o problema do não-intervencionismo apontado por Ely, o de como se desvencilhar dessa contradição (2010, p. 12). Uma maioria com total liberdade para agir é inegavelmente perigosa, mas “a imposição de uma ‘constituição não escrita’ por parte de autoridades não eleitas seja a resposta adequada a uma república democrática” é um grande salto (2010, p. 12).

Propõe Ely (2010) dois caminhos para lidar com essa questão: o primeiro é contrário à possibilidade de imposição judicial de “valores fundamentais” e adequado ao sistema norte-americano, trata-se da tese da democracia representativa. Para esta “é inaceitável afirmar que juízes nomeados e com cargo vitalício refletem melhor os valores convencionais do que os representantes eleitos” (2010, p. 135). Todavia, os mecanismos representativos devem ser policiados. O segundo, também contrário à imposição judicial de “valores fundamentais”, reforça a ideia de que “a representatividade dá aos juízes um papel que eles são plenamente capazes de desempenhar” (2010, p. 135). Ely (2010) defende que a capacidade judicial se limita ao conhecimento técnico do processo, no qual os juízes são especialistas, devendo agir com imparcialidade nas questões políticas, assegurando que “todos tenham voz”, não há outra serventia para os juízes (2010, p. 136), afirma criticamente.

A linha recomendada por Ely (2010) é semelhante às orientações antitruste, a intervenção é orientadora, e não de conteúdo substantivo (2010, p. 136). Reafirma Ely (2010) que “numa democracia representativa, as determinações de valor devem ser feitas pelos representantes eleitos” (2010, p. 137) e o seu controle é feito pelo voto. A desconfiança dessa representação democrática decorre do mau funcionamento no seu processo que se dá quando em primeiro lugar, “os incluídos estão obstruindo os canais da mudança política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam onde estão” (2010, p. 137); ou, em segundo lugar, quando:

embora a ninguém se neguem explicitamente a voz e o voto, os representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera hostilidade ou à recusa preconceituosa em reconhecer uma comunhão de interesses – e, portanto, negam a essa minoria a proteção que os sistema representativo fornece a outros grupos (ELY, 2010, p. 137).

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A desconfiança nos representantes eleitos, ou na democracia, emerge quando se identifica algumas dessas situações. Os juízes estão “à margem do sistema governamental” e não têm preocupação com sua permanência no cargo. Mas, segundo Ely (2010), isso não lhes dá acesso “aos valores genuínos do povo norte-americano”, isso lhes é negado. Apesar disso, Ely (2010) reconhece, mesmo com ressalvas, o papel fundamental que os juízes devem ter numa democracia representativa em casos como esses, em que ocorre a perda de confiança no representante eleito:

Isso também lhes dá condições de avaliar objetivamente – embora ninguém possa dizer que a avaliação não estará cheia de decisões discricionárias tomadas no calor do momento – qualquer reclamação no sentido de que, quer por bloquear os canis da mudança, quer por atuar como cúmplices de uma tirania da maioria, nossos representantes eleitos na verdade não estão representando os interesses daqueles que, pelas normas do sistema, deveriam estar (ELY, 2010, p. 137).

No documento anacristinacostasoares (páginas 158-161)