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CAPÍTULO 3. CRIANDO E FORTALECENDO ELOS

3.3 Desenhando a corrente: geração de dados e descrição do campo

3.3.1 O Elo forte! Descrevendo o campo

Como já dissemos acima, observamos o Elo da Corrente, um “Coletivo Literário” formado em 2007 no bairro de Pirituba – SP, que realiza: saraus, eventos culturais e publicações de livros. O eixo de atuação do coletivo é “a produção, fomento e difusão da cultura de periferia, nordestina e afro-brasileira”22

. A ideia de organizar o coletivo surge a partir da atuação de Michel Yakini junto às rádios comunitárias de Pirituba, o que lhe motivou a realizar outras ações no bairro, como shows e festivais de rua. No mesmo período já conhecia a literatura da periferia, sobretudo pela leitura de textos de Ferréz e a relação com Alessandro Buzo, com quem já mantinha contato pela produção e distribuição de zines. Em entrevista, Michel destaca a importância dos zines nesse processo de expansão da literatura marginal/periférica, sobretudo por possibilitar a articulação de diferentes artistas em torno de um projeto “comum”.

Michel e Raquel compartilhavam o interesse pela literatura. Michel já tinha um livro de poemas quase terminado e o desejo de realizar um sarau em Pirituba aumentou com a participação no Sarau Rap23, realizado por Sérgio Vaz na Ação Educativa. Nessa época, entre 2005 e 2006, o casal já mantinha um blog e com a iminência da publicação do primeiro livro de poemas do Michel, realizariam o primeiro sarau apenas para o lançamento. Cláudio Santista aprovou

21 No original: “the record of the observation becomes, necessarily, a product of choices about what

to observe and what to record, made either at the time of the observation in response to impressions or in advance of the observation in an attempt prospectively to impose some order on the data”

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Disponível em: http://elo-da-corrente.blogspot.com.br/p/quem-somos.html. Acesso em: 15 set. 2013.

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Em entrevista, Raquel conta que Sérgio Vaz mantinha esse sarau como um projeto paralelo à Cooperifa, pois o objetivo era reunir MC‟s para compor suas letras sem o beat, mas os encontros eram abertos ao público.

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a ideia e a partir desse primeiro encontro decidiram promover outros e assim começou surgiu o Elo da Corrente.

A gente tentou trazer uma linha muito parecida com o Sarau da Cooperifa, esse sarau rap, que era de tentar privilegiar a literatura, a oralidade, de tentar ter esse lance do silêncio, tem umas premissas que ainda são dessa época, de tentar ser um sarau que não seja só um encontrão ou que seja assim, algo sem uma disciplina mínima, de horário de sequência, isso a gente ainda tem lá, a gente tem lista24.

Porém, levou cerca de um ano para conquistar um público realmente interessado nos encontros e no modelo que eles gostariam de seguir. Segundo Raquel,

Os primeiros saraus lá eram mais bem festivos assim... Ia batante gente da comunidade mesmo, a gente terminava o sarau cantando karaokê [risos] tipo... Bem festivo e aí conforme a gente foi batendo o pé com esse lance do silêncio, porque precisava pra ouvir a poesia e tal, aí foi um pouco a galera meio que se afastando, porque eu acho que a princípio o pessoal achou que o sarau era uma festa e não... É uma festa, mas não... Tem um momento ali pra você parar um pouco, ouvir o outro e tal... E às vezes a gente não tem muita paciência de fazer isso25.

A partir daí ocorrem os primeiros esvaziamentos. Permaneceram recitando poesias no bar apenas Michel, Raquel e Santista:

a gente chega em junho de 2007 com o sarau e quando chega no final de 2007, tá praticamente eu e ela recitando sozinho porque o Santista tava doente, foi operar e o Paulinho [...] então ele ficou também, do jeito dele e a gente ficou uns bons meses com essa prática de ter que recitar um pro outro assim... Mas isso contibuiu em que sentido? O bar passou a respeitar esse momento, porque as pessoas viam assim: quem gostava ficava pra ouvir, eram

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Michel Yakini em entrevista concedida em 15 out. 2013.

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poucos, mas ficavam, e os outros respeitavam, falavam “agora é hora do sarau, vamo embora”26.

Na mesma entrevista eles relatam que leram muitos livros de autores da periferia nesses encontros esvaziados, um para o outro. Uma coleção inteira de folhetos de cordel, Punga, de Akins Kinte, O Colecionador de Pedras, de Sérgio Vaz, entre outros. O espaço físico do bar também já começava a adquirir outra aparência para consolidar o espaço privilegiado da literatura:

Hoje a gente põe os panos lá né... Pra estilizar, mas a gente colocava livros lá nas prateleiras, tirava os litros que tinha, na época o Santista colocava vários litros em cima de vidros lá, na hora do sarau a gente tirava todos o litros e colocava livros das pessoas que a gente gostava e deixava lá né, que até eu criei uma frase que eu dizia assim “antes litros, hoje livros”, então era mais pra fazer essa brincadeira pra dizer que na hora do sarau os livros eram a evidência.

Com o tempo as pessoas começaram a comentar e a se aproximar, a notícia correu em espaços como CEU‟s, bibliotecas públicas e entre os interessados em literatura. A rádio comunitária Urbanos FM27 anunciava o sarau e também transmitiu os encontros por um tempo. As primeiras publicações também atraíram autores até então anônimos – Michel cita João do Nascimento, que hoje já tem três livros publicados. Mas a organização e a publicação da Antologia, no primeiro ano do sarau, foi um marco para consolidar o Elo como mais um espaço de valorização da cultura marginal/periférica, dos artistas de Pirituba e de articulação desses artistas da palavra:

No aniversário do primeiro ano, a gente fez a Antologia e além dos participantes do sarau, lá do Elo, a gente convidou algumas outras pessoas da cena né, tipo que já tinha proximidade, já tinha vindo no bar, tipo Rodrigo Ciríaco, o Buzo, o Allan da Rosa, o Akins, a Elizandra...

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Michel Yakini em entrevista concedida em 15 out. 2013.

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A presença de poetas e lideranças de saraus de diversas regiões de São Paulo, consequência das articulações que vinham sendo feitas desde antes de começarem o Elo, fez com que a comunidade de Pirituba se interessasse mais pelo espaço. Com o tempo e a popularização dos saraus em toda a cidade, as pessoas de fora não vinham mais com tanta frequência – exceto os representantes do Sarau da Brasa. Porém, a população local passou a compor o público mais assíduo. E assim surgiu o Elo da Corrente.

Figura 1 – Logo do Sarau Elo da Corrente. Fonte: http://elo-da- corrente.blogspot.com.br/p/ quem-somos.html

Além das práticas voltadas à leitura dos textos literários, também existe um grande esforço para incentivar a produção e a escrita literária, não apenas para declamar nos encontros, mas também para a publicação, seja por meio de selos próprios ou por contratos com grandes editoras28.

O Selo editorial Elo da Corrente Edições, fundado em 2008, com o objetivo de “publicar os escritos dos poetas do nosso sarau e injetar ainda mais literatura na quebrada”29

, teve grande representatividade para a cena literária de

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Destacamos aqui o trabalho da editora Global com a coleção Literatura Periférica, que publicou livros de Sérgio Vaz, GOG, Sacolinha, Allan da Rosa, Dinha, entre outros.

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Disponível em: http://elo-da-corrente.blogspot.com.br/2008_01_01_archive.html. Acesso em: 06 out. 2013.

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Pirituba, publicando, em um intervalo de sete meses, sete livros de autores do bairro. Tais iniciativas têm sido cada vez mais comuns nas periferias da cidade, tendo como principal referência as Edições Toró, fundada e gerida por Allan da Rosa30. Apesar da grande variedade de atividades, inclusive relacionadas a práticas de letramentos e multiletramentos, nossa observação se centrará nos encontros poéticos, pois entendemos que é o contexto que articula todas essas atividades e as expõe para o público da periferia.

Em minha primeira visita ao sarau, chamou-me a atenção a decoração do bar, pois o sincretismo e hibridismo da cultura da periferia com a cultura dominante, letrada e canônica, estão em toda a parte. Ao chegar, Michel e outros parceiros do sarau ainda estavam decorando o espaço, mas conseguimos conversar um pouco.

Enquanto o bar era decorado, tive a oportunidade de observar o local como ele é nos dias normais de funcionamento. Um buteco de periferia como outro qualquer, pois o espaço é pequeno, algumas mesas, cadeiras e banquinhos são dispostos nos cantos, deixando apenas um pequeno corredor para circulação dos poetas que se apresentarão. Um balcão, prateleiras com bebidas diversas, geladeiras de cervejas, nada de mais até percebermos a devoção de Cláudio Santista, dono do bar. As paredes repletas de mensagens e imagens católicas, e a estante de livros, de títulos variados, entre o cânone da academia e um cânone que começa a se formar nas periferias da cidade, se misturavam ao ambiente do bar com bastante naturalidade, como se fosse parte indispensável da decoração.

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Enquanto decoravam o lugar fui vendo a “mágica acontecer”. A decoração com tecidos coloridos, o pedestal para o microfone, as mesas cobertas com toalhas igualmente coloridas, me fizeram voltar o olhar para outros aparatos do bar, que também fazem parte de sua decoração permanente, mas que não percebi ao entrar. Primeiro, uma estante de livros logo na entrada; ao fundo um cartaz com os dizeres “Silêncio, respeite nosso poeta do sarau!”.

Figura 2 – Bar do Santista, local onde ocorre o Sarau Elo da Corrente. Foto tirada no dia 9 de maio de 2013.

Figura 2 – Bar do Santista, local onde ocorre o Sarau Elo da Corrente. Foto tirada no dia 9 de maio de 2013.

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Quando participei da apresentação na Bienal do Livro já havia percebido que a proposta era literária, mas outras semioses estavam envolvidas, como a música, especialmente ritmos negros, com instrumentos de percussão acompanhados pelas palmas do público. No Bar do Santista, o início do sarau é marcado por uma espécie de ritual. A música entoada ao som de diversos intrumentos percussivos e um berimbau, aliada à mudança do espaço, representam um convite para que o público preste atenção. É como se a transformação do bar em um centro cultural, de que nos fala Nascimento (2011), acontecesse nesse momento, com a percussão começando ao fundo, aos poucos o público começa a acompanhar com as palmas e então o hino é entoado:

Tambor, tambor vai buscar quem mora longe... Ô meu tambor, que é feito de couro e pau

Vai buscar todos os poetas pra falar no meu Sarau... Ouvindo o som do meu tambor e também do berimbau Vem chegando os poetas pra falar no meu Sarau... O Sarau é coisa boa, com amigos é mais legal Vem chegando os poetas pra falar no meu Sarau...31

A partir desse momento todos fazem silêncio e se iniciam as apresentações. A dinâmica segue o modelo publicizado pela Cooperifa. Michel, Raquel e Douglas se revezam para apresentar os poetas da noite, previamente inscritos. O tempo não é controlado, mas as apresentações costumam ter, em média, entre 10 e 15 minutos. Em todos os encontros que participei, notei a realização de alguma atividade especial no dia, um ou mais lançamentos de livros, exposição de algum artista local, homenagem a um cantor ou artista negro ou periférico. Todos os espaços são ocupados para divulgação e valorização do trabalho dos artistas da periferia e, principalmente, do bairro. Nas análises discutiremos com mais vagar algumas intervenções não artísticas no sarau.

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Letra do Coletivo Cultural Poesia na Brasa, sarau localizado na R. Prof. Viveiros Raposo, 543 – Brasilândia, São Paulo, um parceiro importante do Elo, sempre presente nos encontros poéticos e também em atividades externas.

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