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A poesia das ruas, nas ruas e estantes : eventos de letramentos e multiletramentos nos saraus literários da periferia de São Paulo

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MARIANA SANTOS DE ASSIS

A POESIA DAS RUAS NAS RUAS E ESTANTES:

EVENTOS DE LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS

NOS SARAUS LITERÁRIOS DA PERIFERIA DE SÃO

PAULO

CAMPINAS

2014

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

MARIANA SANTOS DE ASSIS

A POESIA DAS RUAS, NAS RUAS E ESTANTES: EVENTOS DE LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS NOS SARAUS LITERÁRIOS

DA PERIFERIA DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do Título de Mestra em Lingüística Aplicada, na área de Linguagem e Educação.

Orientador: Profa Drª Roxane Helena Rodrigues Rojo

CAMPINAS

2014

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vii RESUMO

Os saraus literários da periferia de São Paulo se tornaram uma tendência em todo o país. Bares em bairros pobres abrem suas portas para poetas negros e pobres que desejam mostrar seu talento e se organizar coletivamente para disseminar essa importante produção artístico-cultural, fortalecer identidades culturais e racias e formar leitores nas periferias das grandes cidades. Tais encontros despertaram o interesse das comunidades pobres, de pesquisadores e do mercado editorial, além de apontar para possibilidades de pensar a crítica literária e até mesmo o ensino de leitura e de literatura em espaços institucionais como a escola. Além disso, desde a publicação da Edição Especial da Revista Caros Amigos Literatura Marginal, a diversidade linguística de uma periferia hibridizada e sincrética tem sido vista como a principal característica da literatura marginal/periférica. Uma literatura original, multimodal e multissemiótica, que cria efeitos de sentido inesperados e experiências únicas de fruição estética. Não são poucas as contribuições dessas organizações e nosso objetivo é analisar alguns dos eventos de letramentos e multiletramentos que constituem esses contextos e possibilitam sua atuação estético-política. Para tanto, observamos o sarau Elo da Corrente, por sua representatividade junto aos coletivos que se dedicam à literatura marginal/periférica. No Elo, pudemos encontrar todas as referências apontadas como fundamentais da literatura marginal/periférica, cujas contribuições destacaremos aqui: os marginais dos anos 70, a literatura negra, o movimento cultural Hip Hop e a cultura nordestina. Tal diversidade é possível, dentre outras coisas, pelas muitas influências estéticas e culturais que compõem os espaços.

Palavras-chave

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ix ABSTRACT

The literary soirees the outskirts of São Paulo became a trend throughout the country. Bars in poor neighborhoods open their doors to black and poor poets who wish to show their talent and organize collectively to disseminate this important artistic and cultural production, strengthen cultural and racias identities and educating readers on the outskirts of large cities. Such meetings aroused the interest of poor communities, researchers and publishing, and point to possibilities of thinking literary criticism and even the teaching of reading and literature in institutional spaces such as school. In addition, since the publication of the Journal Special Edition Dear Friends Marginal Literature, linguistic diversity of a hybridized and syncretic periphery is considered the main feature of marginal / peripheral literature. An original literature, multimodal and multissemiótica establishing unexpected sense effects and unique experiences of aesthetic enjoyment. Many are the contributions of these organizations and our goal is to analyze some of literacies and multiliteracies events that constitute these contexts and enable its aesthetic and political action. Therefore, observe the soiree Link Chain , in representation among collectives engaged in marginal / peripheral literature. In Elo could find all references identified as key marginal literature / peripheral, whose contributions highlight here: the marginal 70s, the black literature, the cultural movement Hip Hop and nosdestina culture Such diversity is possible, among other things. for the many aesthetic and cultural influences that make up the spaces.

Keywords

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xi Sumário

INTRODUÇÃO ... 21

CAPÍTULO 1. LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS NAS ESCOLAS E NOS SARAUS... 25

1.1 Escola, Currículo e Políticas Educacionais ... 25

1.2 Letramentos e Multiletramentos ... 31

1.3 Formação de Leitores ... 41

1.4 A Literatura e o Cânone ... 51

CAPÍTULO 2. LITERATURA EM MOVIMENTO OU MOVIMENTO LITERÁRIO ... 63

2.1 Os Marginais dos Anos 70 ... 71

2.2 A Literatura Negra ... 73

2.3 O Movimento Cultural Hip Hop ... 78

2.4 Tradições Nordestinas ... 81

2.5 A Periferia Hoje ... 84

2.6 Os Saraus ... 94

CAPÍTULO 3. CRIANDO E FORTALECENDO ELOS ... 99

3.1 Pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa ... 99

3.2 Entrando na corrente: os primeiros passos da pesquisa ... 103

3.3 Desenhando a corrente: geração de dados e descrição do campo ... 106

3.3.1 O Elo forte! Descrevendo o campo ... 108

CAPÍTULO 4. A VIDA É A ARTE DO ENCONTRO: ESQUADRINHANDO OS ENCONTROS POÉTICOS ... 115

4.1 O que Pirituba tem: por dentro do Elo da Corrente ... 120

4.2 Letramentos, Identidades e Gênero(s): a corrente se forma. ... 123

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 141

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Às mulheres da minha vida, minha mãe Iracema e minhas irmãs Eliane e Elaine, obrigada pelo exemplo e motivação.

E ao pequeno Malcolm, nossa continuidade e amor maior. Amo vocês!

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xv AGRADECIMENTOS

É sempre bom terminar um ciclo de maneira vitoriosa, porém nada é mais gratificante do que, ao final desse ciclo, ter mais a agradecer do que a pedir. Assim tem sido minha trajetória: a cada vitória, a cada título, a cada superação, tenho mais e mais a agradecer a minha família carnal, a minha família espiritual, aos meus amigos, aos meus professores. Enfim, companheiros de copo e de cruz, que me acompanham e reforçam o cobertor que Deus nos dá para aguentar o frio que sempre vem. Esse espaço é dedicado a essas pessoas, mas elas sabem que ocupam um lugar muito maior e mais importante em minha vida, pois estão em cada linha que escrevo, em cada passo que dou, em cada escolha que faço.

À professora Roxane Rojo por organizar minhas ideias e por aceitar e entender meus objetivos. Foram anos incríveis, de muito aprendizado em todos os níveis da vida. À Capes, por financiar meu sonho e torná-lo possível. Aos funcionários da Secretaria de Pós Graduação da Unicamp pela atenção, paciência e prestatividade.

Aos meus amigos queridos, parceiros que suportaram meus piores momentos, possibilitaram minha vitória com sua alegria, conselhos e presença sempre amorosa e compreensiva: Rô, Saulo, Dani, Eugênio, Elizeu, Alessandro, Alan, Maurício, Luiz Gustavo Julião, Flávio, Suzana. Aos meus queridos Raquel e André, que me receberam em sua casa. À Gabee, Carol, Ricardo e Germano que me ouviram, me aconselharam e suportaram as histórias dessa travessia por inúmeras e incontáveis vezes.

Aos companheiros do Movimento Negro, por me ensinarem a ter orgulho e honrar minha ancestralidade. Obrigada por me curarem da doença do racismo, Reginaldo Bispo, Ana Flávia Magalhães Pinto, Cristina Guimarães, Ana Lúcia Silva de Souza, Katiúscia Ribeiro. Às guerreiras do Blogueiras Negras, por sua coragem para mostrar o poder e o talento das mulheres negras. Às minhas pretinhas, a quem tento repassar esse aprendizado, Fernanda Sousa, Bianca

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xvi Gonçalves e Beatriz Barbosa.

À familia Elo da Corrente, por me receber de braços abertos e me dar todo o apoio em todas as etapas da minha pesquisa. Muito obrigada, Raquel Almeida, Michel Yakini, Cláudio Santista e Douglas Alves. Aos artistas, poetas, ativistas e pesquisadores que conheci durante o campo e que espero levar para a vida: meu querido amigo e poeta preferido Akins Kinte, a grande prosadora Cidinha da Silva e aos parceiros Erica Peçanha, Celinha Reis, Ruivo Lopes.

À família, outro ponto em que fui privilegiada, pois tenho a melhor família carnal que uma pessoa pode desejar, a família que sabiamente escolhi no Orún e a quem devo minha vida e meu caráter. À minha mãe Iracema, mulher forte e guerreira, como nossas ancestrais, melhor exemplo de mulher e da verdadeira feminilidade para mim; às minhas amadas irmãs, Elaine e Eliane, a quem amo e admiro mais do que tudo. E meu pai, Geraldo, incansável em sua missão de nos tornar melhores.

Não posso deixar de agradecer também a minha família espiritual, que surgiu em minha vida na melhor hora e me trouxe o melhor presente: minha fé, além de amigos e irmãos. Obrigada a meu babalorixá, o professor doutor Sidnei Barreto Nogueira, à yalorixá Joésia de Oya; aos meus irmãos Sinei, Robson e Alexandre. Obrigada por me acompanharem em mais essa jornada e por todo o aprendizado e carinho. Obrigada também à yalorixá Ângela Maria Santos por me mostrar a beleza de nossos orixás.

Enfim, agradeço ao Candomblé, por me mostrar, novamente, a graça de Deus através da beleza de minha ancestralidade africana.

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xvii Lista de Figuras

Figura 1 Logo do Elo da Corrente ………...……...99 Figura 2 Bar do Santista...101 Figura 3 Panfleto da Polícia Militar do Estado de SP...117

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Bar do Santista Abrem as portas

Começa o nosso espetáculo De um bate papo familiar Surge a ideia, o espaço Usar a criatividade O aconchego do lugar Nascendo assim o nosso Sarau

[...]

O povão a ser explorado e consumido

Todos nós somos este elo Que cada vez mais procura o Seu espaço às vezes negado, Resumindo, pouco ilustrado Mas, o mais importante de todos

É a nossa coragem de continuar

Lutando pela democracia periférica

Aqui é o lugar, o espaço Frequentado por cariocas, mineiros,

Nortistas, sulistas e poetas estrangeiros.

Cantinho santista de nosso Povão periférico, tenho dito.

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INTRODUÇÃO

“Hoje o artigo do dia é a poesia”, como disse Heloísa Buarque de Holanda (2007), ao se referir à produção dos poetas marginais da década de 70. Hoje também falaremos de literatura, porém abordaremos outro tipo de marginalidade: a literatura produzida e amplamente difundida nas periferias de São Paulo, a despeito do descaso das grandes mídias, do pouco ou nenhum reconhecimento das instituições escolares e acadêmicas e da indiferença da crítica. A periferia segue fazendo arte e agora brinca com a sagrada arte da palavra, as belas letras. A literatura tem sido mais um combustível para as lutas da periferia por seu espaço no centro.

E os resultados têm sido promissores, pois a intensa produção literária nas periferias de São Paulo tem chamado atenção daqueles mesmos setores que, até então, desprezavam ou aceitavam apenas como produto de mercado qualquer produção cultural de grupos minoritários. Pesquisadores, secretarias de cultura, políticos, diretores de escolas, enfim, todos querem conhecer melhor a tendência que ganha mais força a cada dia.

Muitas são as contribuições dessa intensa produção literária nas regiões mais pobres da maior cidade do país. A nós interessa não só seu aspecto literário, mas também e, sobretudo, as formas pelas quais uma população pouco escolarizada se apropria de uma produção letrada e, até então, aparentemente restrita ao espaço escolar e às elites. As práticas de letramentos que ocorrem nos encontros poéticos serão nosso ponto de partida. Porém, ao nos aprofundarmos sobre a diversidade dessa proposta político-cultural, vemos que não se trata apenas de linguagem escrita ou oral, mas também de uma profusão de linguagens e semioses que se (con)fundem, formando novos sentidos a cada declamação de um texto.

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Essa multiplicidade de linguagens, aliada a um compromisso político-ideológico, é o que torna os saraus espaços interessantes para pensar os estudos de letramento e multiletramentos. Além disso, nos obriga a rever nossos (pré)conceitos sobre literatura, qualidade estético-literária, cânone e outras categorias e rótulos que nos ajudam a definir lugares para artistas, de acordo com conceitos ultrapassados e interesses político-ideológicos.

Pesando nisso, propomo-nos a realizar uma pesquisa qualitativa interpretativista observacional, com trabalho de campo observacional, participativo e interpretativo. Orientamo-nos pelo trabalho de Jones e Somekh (2005), tanto para o campo quanto para a geração de dados, feita a partir de observações, notas, filmagens, gravações dos saraus e entrevistas com os organizadores.

A dissertação se divide em quatro capítulos, em que discutimos a complexidade da tendência literária e a relacionamos a questões urgentes do ensino de língua e literatura no Brasil. No primeiro capítulo, Letramentos e Multiletramentos nas escolas e nos saraus, trataremos de questões relacionadas ao ensino de língua nas escolas, às demandas letradas atuais da sociedade e às limitações das instituições escolares em atender tais demandas, bem como uma breve discussão sobre a questão do cânone literário

Fazemos isso por meio da discussão e análise de documentos oficiais, como os PCN e as OCNEM, e de alguns estudos sobre o currículo escolar (BOURDIEU; PASSERON, 1975; APPLE, 1986; 1989; SILVA, 2005), para destacar as tentativas institucionais de superar o conservadorismo e a visão tecnicista dos letramentos escolares. Enfatizamos a importância das contribuições dos estudos do letramento (KLEIMAN, 1995; 1999; 2001; 2006; HAMILTON, 2002; ROJO, 2004; 2007; 2009; 2010; STREET, 1993; SOARES, 2004; SOUZA, 2009) e da Teoria dos Multiletramentos (ROJO, 2010; 2012; 2013; KALANTZIS; COPE, 2006a; 2006b), em relação a propostas mais progressistas de educação para os letramentos (SOUZA, 2009; SITO, 2010; ALENCAR, 2012), para alcançar tal objetivo.

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Encerramos o capítulo com uma discussão acerca do cânone, da crítica e da teoria literária. A partir dos trabalhos de Abreu (2006) e Eagleton (1999; 2005), problematizamos os interesses e valores políticos, ideológicos e culturais que influenciam na classificação de um texto ou de um autor como canônico ou não e, consequentemente, sua maior ou menor circulação, tanto nos meios acadêmicos quanto no mercado editorial.

No segundo capítulo, Literatura em Movimento ou Movimento Literário, fazemos um histórico da literatura marginal/periférica, falando de suas influências literárias e políticas, apontadas pelos principais trabalhos sobre o tema (NASCIMENTO, 2006; 2011; SILVA, 2011; ESLAVA, 2004; PATROCÍNIO, 2010), além de relacionar seu processo de formação com discussões acerca de processos de hibridização e diáspora em contexto de globalização (GARCÍA-CANCLINI (1997[1989]; 2007; HALL, 2009). A partir das teorias do Círculo de Bakhtin, determinamos as categorias estilo, tema e forma composicional como centrais para identificarmos as influências de cada um dos movimentos estético-políticos que, de maneira mais marcante, perpassam o atual movimento. Por se tratar de um processo ainda em curso, é difícil determinar as características, sobretudo estilísticas dessa literatura. Porém, por meio da análise da literatura dos marginais dos anos 70, da literatura negra e do movimento cultural hip hop, podemos identificar características éticas e estéticas que serão determinantes para as nossas análises.

No terceiro capítulo, descrevemos a metodologia de coleta, geração e análise de dados. Discorremos sobre o trabalho observacional e de que forma nos utilizamos da base teórica (JONES; SOMEKH, 2005; DENZIN; LINCOLN, 2006) para nos orientar nas entrevistas, gravações, filmagens, etc. Também descrevemos com mais detalhes o coletivo literário que selecionamos para nossas observações, o Sarau Elo da Corrente, historiando-o e mostrando sua importância para nossos interesses de pesquisa e para a literatura marginal/periférica, além de detalhar os dados que serão analisados, ou seja, os encontros poéticos.

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Por fim, o capítulo destinado à análise dos dados volta-se ao estudo dos encontros observados. Por meio das análises, buscaremos respostas às nossas perguntas iniciais: quais são as práticas de letramentos e multiletramentos presentes nos saraus? Como podem contribuir para a realização desse projeto político, cultural e pedagógico? Como são caracterizados os gêneros apresentados nos saraus na perspectiva dos multiletramentos e quais as suas possíveis contribuições para a Teoria Literária?

Nos guiaremos pelos pressupostos da base teórico-metodológica adotada para a pesquisa. Faremos, ainda, a análise de textos de alguns dos muitos gêneros apresentados nos encontros, principalmente para compreendermos melhor a discussão do capítulo 2, mas colocando os textos em diálogo com toda a discussão promovida até então.

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CAPÍTULO 1. LETRAMENTOS E MULTILETRAMENTOS NAS

ESCOLAS E NOS SARAUS

1.1 Escola, Currículo e Políticas Educacionais

Segundo Silva (2005), as primeiras propostas de um currículo crítico surgem a partir do questionamento das teorias tradicionais e tecnicistas de currículo que, dentre outras coisas, não discutiam o status quo da sociedade e reproduziam a ideologia dominante burguesa. Tal postura passa a ser um problema, sobretudo nos anos 60, com os levantes populares e o questionamento da ordem social vigente – movimentos de independência dos países africanos, protestos estudantis em diversos países, luta pelos direitos civis nos EUA etc.

Nesse contexto, o currículo não poderia deixar de ser questionado, dada a importância da escola no processo de emancipação de um povo. Cada país analisou sua realidade e propôs a inversão dos fundamentos da teoria tradicional.

A teoria marxista vai servir de base para as primeiras teorias críticas do currículo. Logo, os estudos sobre cultura e identidade também contribuíram para a construção de uma nova proposta de organização do conhecimento escolar, agora mais voltado à diversidade do que a escola democratizada abriga. Uma das principais críticas às teorias tradicionais e tecnicistas – e que mais nos interessa aqui – é de que a escola prioriza o conhecimento e a cultura dominantes, em detrimento das produções e do conhecimento necessário às classes trabalhadoras. Ao contrário do pensamento marxista, segundo o qual a escola busca incluir a cultura dominante nos jovens das classes dominadas, para então dominá-los, Bourdieu e Passeron (1975) defendem que a escola atua através de um mecanismo de exclusão de crianças e jovens dessas classes.

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Desse modo, permanecemos em um duelo entre a cultura dominante e as culturas dominadas, sem entender ao certo o que seria o melhor: ensinar a cultura dominante aos jovens trabalhadores ou mantê-los em seu próprio contexto cultural?

Apple (1989, p. 47) entende o currículo como uma construção social por meio de disputas de poder, apontando ainda

para o poder das dinâmicas de raça, classe e gênero como determinantes, em parte, da forma e do conteúdo do currículo e para as complexas interações entre as „esferas‟ econômica, política e cultural.

Nesse sentido, o que mais importa não são os conhecimentos privilegiados no currículo, mas as forças que atuam para que estes e não outros sejam legítimos. Destaca ainda o aspecto instável da hegemonia, o que garante a possibilidade real de que ela seja quebrada, ameaça constante à escola, sobretudo pelas tensões e conflitos em seu interior. Por isso mesmo, Apple (1986, p. 28) afirma que

mesmo o próprio sistema educacional, em termos de sua cultura interna e de suas relações com a sociedade mais ampla, não é simplesmente um instrumento de dominação no qual grupos poderosos controlam os menos poderosos. Ele é o resultado de uma luta contínua entre e dentro dos grupos dominantes e dominados.

Silva (2005) menciona ainda a contribuição crucial dos Estudos Culturais para pensarmos uma nova proposta curricular que rompa com a lógica da dominação e que atenda às necessidades desse público diverso que passa a compor a comunidade escolar. Para esses teóricos, a cultura é

como campo de luta em torno da significação social. A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições referenciais de poder, lutam

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pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nessa concepção, um campo contestado de significação. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos. (SILVA, 2005, p. 133-134)

Desse modo, os grupos dominados não ficam mais na condição de subalternidade servil e vulnerabilidade cultural que outras teorias os colocavam, mas assumem uma postura ativa na constante disputa ideológica entre a classe dominante e seu poderio econômico e as classes dominadas e sua história de superação e reexistência, nos termos de Souza (2009).

Chen (2008) defende a importância de intervenções de grupos minoritários na elaboração dos currículos. No Brasil, a intervenção nos currículos tem ocorrido de maneira mais localizada e em âmbito regional, sobretudo nos conteúdos de materiais, livros didáticos e práticas de letramentos, e não se constituiu como uma intervenção direta no currículo nacional ou, numa postura mais radical, como o questionamento da possibilidade de implantação de um currículo nacional, considerando a imensa diversidade cultural do Brasil. Também destacamos a importância de outras agências de letramentos, cujas experiências podem contribuir para repensar as práticas pedagógicas das escolas.

Outras conquistas importantes dos movimentos sociais e culturais são os documentos oficiais e leis que intervêm nos currículos das escolas, como os PCNs, as OCNEM, a LDB e as Leis 10639/031 e 11645/082, por exemplo. Porém, a escola não tem tido sucesso para cumprir as determinações mais progressistas postuladas por esses documentos desde 1997, como os Parâmetros Currículares

1 “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da

educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática „História e Cultura Afro-Brasileira‟, e dá outras providências”. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 28 mai. 2013.

2 “Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de

janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática „História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena‟”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/ l 11 645 . htm. Acesso em: 28 mai. 2013.

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Nacionais (BRASIL, 1997; 1998; 2000a). Ainda estamos esperando ver a escola “constituir-se num ambiente que respeite e acolha a vez e a voz, a diferença e a diversidade” (BRASIL, 1998, p. 38) ou promover, com qualidade, a difusão do conhecimento, uma vez que a realidade ainda é de que “ao aluno são oferecidos textos curtos, de poucas frases, simplificados, às vezes, até o limite da indigência.” (BRASIL, 1998, p. 38)

Os PCNs de 1998 representam o primeiro grande avanço, ainda que superficialmente, no que se refere à proposta de um currículo com conteúdos multiculturais e, até mesmo, dos multiletramentos, uma vez que considera o “conhecimento prévio” do aluno ou o seu “mundo-da-vida”, nos termos de Cope e Kalantzis (2006).

As Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM, 2006) são outro documento importante, que avança um pouco mais nas determinações dos PCNs. Como os PCNs, as OCNEM não são uma lei que propõe uma grade de conteúdos fixos ao Ensino Médio. Trata-se de orientações ou propostas para que as escolas e os professores repensem suas práticas e currículos. Seu texto, um pouco mais recente, dialoga com alguns dos princípios fundamentais dos estudos de letramento, que a escola ainda rejeita, como “a lógica de uma proposta de ensino e de aprendizagem que busque promover letramentos múltiplos pressupõe conceber a leitura e a escrita como ferramentas de empoderamento e inclusão social.” (BRASIL, 2006, p. 28). Também valoriza a interdisciplinaridade e ensaia uma abordagem dos multiletramentos ao defender que

a abordagem do letramento deve, portanto, considerar as práticas de linguagem que envolvem a palavra escrita e/ou diferentes sistemas semióticos – seja em contextos escolares, seja em contextos não escolares –, prevendo, assim, diferentes níveis e tipos de habilidades, bem como diferentes formas de interação e, conseqüentemente, pressupondo as implicações ideológicas daí decorrentes. (BRASIL, 2006, p. 28)

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Nas OCNEM, percebemos também uma abordagem interessante sobre a importância do ensino de literatura e arte, afastando-se ainda mais de uma visão meramente tecnicista do ensino, como postulava a Lei nº 5.692/71. Nessa perspectiva anterior, a escola, a leitura, o conhecimento seriam apenas pontes para o mercado de trabalho e, por isso mesmo, literatura, arte, prazer estético seriam saberes/experiências desnecessários, sobretudo para a classe trabalhadora. As OCNEM buscam afastar a escola desse tipo de posicionamento e aproximá-la, por exemplo, das deliberações da LDBEN nº 9.394/96 e dos PCN, ao fazer afirmações como:

Nesse mundo dominado pela mercadoria, colocam-se as artes inventando “alegriazinha”, isto é, como meio de educação da sensibilidade; como meio de atingir um conhecimento tão importante quanto o científico – embora se faça por outros caminhos; como meio de pôr em questão (fazendo-se crítica, pois) o que parece ser ocorrência/decorrência natural; como meio de transcender o simplesmente dado, mediante o gozo da liberdade que só a fruição estética permite; como meio de acesso a um conhecimento que objetivamente não se pode mensurar; como meio, sobretudo, de humanização do homem coisificado: esses são alguns dos papéis reservados às artes, a cuja apropriação todos têm direito. Diríamos mesmo que têm mais direito aqueles que têm sido, por um mecanismo ideologicamente perverso, sistematicamente mais expropriados de tantos direitos, entre eles até o de pensar por si mesmos. (BRASIL, 2006, p. 52-53)

A escola deveria, então, ser também o órgão responsável por apresentar os letramentos dominantes e as novas práticas letradas a essas populações, abarcando ainda a diversidade de culturas e a consequente riqueza cultural de um país plural como o Brasil – composto por muitos povos, línguas, linguagens e cores e que avança, consome e produz as novas tecnologias –, conseguindo finalmente contribuir

para que os alunos se construam, de forma consciente e consistente, sujeitos críticos, engajados e comprometidos com a cultura e a memória de seu país. Isso implica que a escola deva comprometer-se a dar espaço privilegiado a textos que

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efetivamente sejam representativos dessa cultura e dessa memória. (BRASIL, 2006, p. 33)

Porém, conforme Rojo (2004, p. 4)

o que acontece é que fomos conhecendo cada vez mais a respeito dos procedimentos e capacidades envolvidos no ato de ler. No entanto, a leitura escolar parece ter parado no início da 2ª metade do século passado.

Isso acontece não apenas no que se refere às práticas, mas também aos conteúdos. Seguimos privilegiando e quase dando exclusividade aos saberes dominantes. Prova disso é a não implantação da Lei 10.639/03, que institui o ensino de cultura e história afrobrasileira nas escolas, homologada há mais de 10 anos. O mesmo vale para a Lei 11.645, que acrescenta a história e cultura indígenas e também para o PCNEM (BRASIL, 2000b) e as OCNEM (BRASIL, 2006), que nunca foram objeto, até agora, de uma política efetiva de implementação, como foram, por exemplo, os PCN, por meio de Programas como o PCN em Ação (BRASIL, 1999), PROFA (BRASIL, 2001) e PNLD.

Caberia, ainda, à escola, estabelecer um diálogo franco entre os saberes, letramentos e interesses da instituição e a imensa diversidade linguística e cultural em seus intramuros, Além disso, cabe a ela promover o diálogo e o contraste entre produções canônicas, de massa, as culturas locais dos alunos, a língua padrão e as variedades de cada comunidade. Enfim, buscar

algo como chegar aos mecanismos poéticos da lírica e épica, pelo caminho do rap, do samba ou do funk; à leitura do artigo de opinião e à compreensão crítica do debate político na TV, pela discussão das formas jornalísticas de persuasão de um Brasil Urgente; ou, na esteira de Oswald de Andrade (1972[1924]), chegar à “química”, pelo “chá de erva-doce”. É o que Kalantzis e Cope (2006b) chamam de “práticas situadas” ou “aprendizagem situada”. Para tal, é preciso levar em conta a questão das culturas do alunado. (ROJO, 2013, p. 18)

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Ou, como nos diz Kleiman (2001, p. 225), uma proposta didática pautada nos conhecimentos do aluno: ao invés de perguntar sobre aquilo que o aluno não é capaz de fazer e sobre como torná-lo capaz, perguntar

o que o aluno já sabe e é capaz de fazer e como usar esse conhecimento para ajudá-lo a construir as novas práticas sociais que se baseiam na leitura e na produção de textos que ele precisa ou deseja adquirir e desenvolver.

Desse modo, esperam-se respostas mais positivas do que aquelas alcançadas por um processo didático baseado no ensino normativo, abstrato, basicamente centrado em atividades de análise gramatical.

1.2 Letramentos e Multiletramentos

Como vimos, os documentos oficiais e as políticas educacionais têm tentado, de alguma forma, dialogar com as novas teorias sobre ensino-aprendizagem. Podemos dizer que, desde 1997, com os PCNs, temos um panorama político promissor para a melhoria do ensino de Língua Portuguesa. Porém, na prática, as mudanças ainda são incipientes ou inexistentes. Ao contrário, as mudanças sociais, políticas, econômicas, culturais e tecnológicas têm atropelado essa postura tradicionalista que inviabiliza mudanças rápidas, como exigem as novas dinâmicas sociais de um mundo globalizado e multiconectado.

Nesse contexto, como os próprios documentos oficiais já apontam, os estudos do letramento são fundamentais para a melhoria dos resultados da escola e, principalmente, para a formação de cidadãos conscientes e atuantes. Para Kleiman (1995, p. 20),

a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas uma das práticas de letramento, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico).

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Enquanto isso, outras agências, como a rua, nos termos de Souza (2009), os grupos de movimentos sociais, os grupos quilombolas, como vemos em Sito (2010), os assentamentos do Movimento Sem Terra (MST), estudados em Alencar (2012), ou os saraus da periferia de São Paulo, como discutiremos aqui, apresentam práticas de letramento muito distintas.

Isso porque a escola reproduz as práticas de letramento dominantes, seguindo o chamado modelo autônomo, cunhado por Street (1984). Ou seja, uma “concepção que pressupõe que há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que causalmente com o progresso, a civilização, a mobilidade social” (KLEIMAN, 1995, p. 21). O autor propõe o modelo ideológico como alternativa a essa visão limitada das práticas de leitura e escrita. Para ele,

as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida. (STREET, 1984 apud KLEIMAN, 1995, p. 21)

Kleiman (1995, p. 19) afirma que “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Kleiman (1995, p. 21) nos lembra ainda que o modelo ideológico “pressupõe a existência, e investiga as características, de grandes áreas de interface entre práticas orais e práticas letradas”. Essas áreas de interface se multiplicam até o infinito quando pensamos no espaço da internet, que

tornou possível, como afirma Beaudouin (2002), que passássemos a conversar com as mãos e os olhos, ao invés de com a boca e os ouvidos. O ambiente digital escrituralizou (LAHIRE, 1993) mesmo a conversa do dia a dia. (ROJO, 2007, p. 64)

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Diante disso, Rojo (2009, p. 98) acrescenta elementos importantes ao conceito de letramentos. Para a autora,

o termo letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural.

Essa definição nos contempla por ampliar a ideia de letramentos, pois ao dizer que esses “envolvem a escrita de uma ou de outra maneira”, a autora inclui nas práticas letradas, por exemplo, a oralização da escrita, prática constante nos saraus da periferia, que é uma relação bastante específica, mas que não podemos negar sua presença. Também questiona, de alguma forma, a hegemonia de espaços como a escola para difusão dos conhecimentos acerca do letramento da letra, o que vem legitimar a importância dos espaços discutidos aqui. Além disso, abarca a importância da interdisciplinaridade para os estudos dos letramentos e também aponta para a questão das novas mídias, que será ampliada pelo debate dos multiletramentos.

Os estudos sobre letramentos digitais (BUZATO, 2005; ROJO, 2007; LEMKE, 2010) e, sobretudo, a proposta do Grupo de Nova Londres de uma Pedagogia dos Multiletramentos adensam a questão. Não apenas por sua preocupação com o papel da escola em uma sociedade hipermidiática e multiconectada, mas também por sua ênfase na diversidade que a compõe e na importância de levar em consideração esses grupos, culturas e linguagens.

A proposta de Kalantzis e Cope (2006b) de uma Pedagogia dos Multiletramentos vem a oferecer uma direção para as discussões do papel da escola no atual contexto de globalização, revolução tecnológica e constante trânsito cultural. Importante destacar que o trabalho do Grupo de Nova Londres, embora precursor na medida em que cunhou o termo multiletramentos, é apenas um direcionamento inicial, pois ainda requer uma série de discussões, leituras e

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releituras, a partir de teorias discursivas e antropológicas, como podemos ver em Rojo (2012a; 2013). A autora nos explica que o conceito de multiletramentos envolve

por um lado, a multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais contemporâneos e, por outro, a pluralidade e diversidade cultural trazida pelos autores/leitores contemporâneos a essa criação de significação. (ROJO, 2013, p. 14)

Explica ainda que, em seu manifesto inicial, o Grupo de Nova Londres (GNL) propõe três dimensões para pensar o futuro dos alunos: diversidade produtiva (no âmbito do trabalho), pluralismo cívico (no âmbito da cidadania) e identidades multifacetadas (no âmbito da vida pessoal). No âmbito do trabalho, o GNL destaca a mudança na demanda de mão de obra, que antes era selecionada a partir do modelo fordista, mas que hoje exige “um trabalhador multicapacitado e autônomo, flexível para adaptação à mudança constante” (ROJO, 2013, p. 15). Já

no âmbito da educação para a ética e a política, o pluralismo cívico seria, para os autores, a escola buscar desenvolver nos alunos a habilidade de expressar e representar identidades multifacetadas apropriadas a diferentes modos de vida, espaços cívicos e contextos de trabalho em que cidadãos se encontram; a ampliação dos repertórios culturais apropriados ao conjunto de contextos onde a diferença tem de ser negociada; [...] a capacidade de se engajarem numa política colaborativa que combina diferenças em relações de complementaridade.

A “coesão-pela-diversidade” é a proposta do GNL para resolver os embates causados pela globalização na diversidade local. Ou seja, a saída para a grande contradição criada entre uma suposta fragmentação provocada pelo processo de globalização e o choque de diferentes formações culturais que coexistem localmente em espaços como a escola seria a criação de uma “cultura de civilidade”. Rojo (2013, p. 17) explica que o objetivo seria “comprometer-se com

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o papel cívico e ético das pessoas, o que, certamente, envolve letramentos críticos”.

Dessa necessidade, surgem agências de letramento que não devem nada aos objetivos da escola, ao menos àqueles idealizados por alguns documentos oficiais, como PCNs e OCNEM. Souza (2009) oferece uma perspectiva interessante de análise, não apenas das práticas, mas também dos próprios grupos para quem a leitura e a escrita adquirem uma importância ainda maior

ao considerarmos variáveis ainda pouco estudadas – raça e gênero – e, ainda, quando começamos a olhar para esses grupos não pela ausência, mas pela presença de conhecimentos não valorizados socialmente, mas importantes para suas vidas. (SOUZA, 2009, p. 31)

Conforme será discutido adiante, o cânone literário, assim como espaços institucionais de legitimação e circulação de saberes, letramentos e textos, ainda excluem, de diversas formas, as linguagens e os letramentos de grupos sociais subalternizados. Aqui, novamente, destacamos a questão dos negros, pois, nesse caso, aos efeitos destrutivos do modo de produção capitalista regendo o trabalho pedagógico (KLEIMAN; MORAES, 1999; SOARES, 2004) são acrescidas as consequências de uma sociedade escravista, em que

os efeitos perversos da escravização se estendem também aos modos sócio-culturais de usar a leitura, a escrita e a oralidade, bem como aos sentidos destas práticas para brancos e negros, mesmo após a abolição da escravatura. (SOUZA, 2009, p. 34)

O conceito de letramentos de reexistência vem a contribuir para essa discussão e valorização das práticas letradas dessas comunidades, pois

letramento de reexistência será aqui apontado como uma reinvenção de práticas que os ativistas realizam, reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco contada, nos

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quais os usos da linguagem comportam uma história de disputa pela educação escolarizada ou não. (SOUZA, 2009, p. 34)

Essa disputa pela educação pode resultar em alternativas para a escola lidar com a diversidade e, ao mesmo tempo, repensar suas práticas de letramentos de modo a atender e sanar as inquietações de jovens que não se adaptam às práticas de leitura impostas pela escola, inquietam-se com e questionam os textos, como nos relata Kleiman (2004):

Temos também conhecimento de leitores emergentes, pequenas crianças da periferia, que não aceitam conviver com a incoerência e persistem na tentativa de compreender, se irritando até, quando não o conseguem, se recusando a continuar, a dar uma pseudo interpretação àquilo que não faz sentido, mostrando, enfim, um pouco dessa paixão que é qualidade do leitor. (KLEIMAN, 2004, p. 19)

O questionamento das práticas tradicionais de ensino de leitura da escola é fundamental para que possamos desenvolver e compreender novas práticas. Desse modo, espera-se um avanço não apenas nas habilidades e competências que se pretende desenvolver, mas também nos conhecimentos e valores que se pretende ensinar (KLEIMAN, 2004; ROJO, 2004; 2009)

A leitura poderia ser caracterizada como uma atividade de integração de conhecimentos, contra a fragmentação. Devido à abertura que o texto proporciona ao leitor para relacionar o assunto a outros assuntos que já conhece, ela favorece, no plano individual, a articulação de diversos saberes. (KLEIMAN, 2004, p. 30)

Os estudos dos letramentos e multiletramentos podem contribuir para finalmente formarmos leitores críticos e aptos a transitar por diferentes gêneros e a construir seus saberes. Além disso, existe uma questão material e urgente anterior. Hoje a realidade do ensino escolar no Brasil é complicada, dentre outras coisas, por continuar formando leitores apenas de textos escolares, ou seja, capazes apenas de repetir, revozear, entender, memorizar, desenvolvendo

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apenas minimamente as competências relativas a práticas de letramento exigidas pela sociedade atual, sobretudo no que se refere aos contextos urbanos. A esse respeito Rojo (2004, p. 2) nos lembra que

ser letrado e ler na vida e na cidadania é muito mais que isso: é escapar da literalidade dos textos e interpretá-los, colocando-os em relação com outros textos e discursos, de maneira situada na realidade social; é discutir com os textos, replicando e avaliando posições e ideologias que constituem seus sentidos; é, enfim, trazer o texto para a vida e colocá-lo em relação com ela. Mais que isso, as práticas de leitura na vida são muito variadas e dependentes de contexto, cada um deles exigindo certas capacidades leitoras e não outras.

Porém o trabalho com leitura e escrita nas escolas ainda prioriza a repetição, o revozeamento, a estrutura, a forma e a norma, com base na gramática normativa e na língua padrão, ignorando a réplica ativa, as abordagens discursivas da linguagem e as culturas e variedades regionais ou sociais. Ao contrário, o que se espera, segundo Rojo (2012, p. 12), é que a escola

tomasse a seu cargo (daí a proposta de uma “pedagogia”) os novos letramentos emergentes em sociedade contemporânea, em grande parte – mas não somente – devidos às novas TICs, e de que levasse em conta e incluísse nos currículos a grande variedade de culturas presentes já nas salas de aula de um mundo globalizado e caracterizada pela intolerância na convivência com a diversidade cultural, com a alteridade, com o outro.

Podemos identificar as dificuldades da escola em atender essas demandas, antes mesmo de adentrarmos à discussão das novas TICs, no desprezo das instituições escolares pelas formas sociais orais em favor das formas escritas em um país cuja maioria da população escolar está, nas palavras de Rojo (2013, p. 16)

enraizada em formas sociais orais de interação, ainda que tramadas às formas letradas – sobretudo, em centros urbanos –, como, por exemplo, a larga preferência pelo jornalismo televisivo, ao invés do impresso; pela novela folhetinesca de TV, ao invés da

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leitura do romance; pela música, ao invés da poesia; pela instrução oral (nos serviços telefônicos de atendimento ao consumidor), ao invés da leitura de manuais de instrução.

Esse ponto reforça a importância de espaços como os saraus literários da periferia, em que a produção escrita é oralizada e apresentada para essa mesma população como algo possível de compreensão e ela própria como capaz, não apenas de apreciar, mas também de produzir esse tipo de texto.

A teoria de gêneros do Círculo de Bakhtin contribuirá bastante para nossas análises, porém é preciso atentar para as discussões propostas por Rojo (2013, p. 19) também nesse sentido, pois essas apontam as dificuldades enfrentadas ao usar uma teoria baseada em textos escritos e, majoritariamente canônicos, para discutir “o texto contemporâneo, multissemiótico ou multimodal, envolvendo diversas linguagens, mídias e tecnologias”.

Os novos, mais ágeis e acessíveis meios de comunicação, possibilitam uma circulação maior de textos e enunciados, como afirma García-Canclini (2007). Consequentemente, surgem outras situações de produção de leitura-escrita, alterando as relações leitor-autor, sendo possível falar, como faz Rojo, em lautor. Rojo (2013, p. 20) vai além e afirma a criação de novos gêneros a partir dos novos enunciados gerados nas interações proporcionadas pelas novas mídias – a autora cita chats, páginas, blogs, twits, posts, ezines, epulps, fanclips etc. – como gêneros que se utilizam das “possibilidades hipertextuais, multimidiáticas e hipermidiáticas do texto eletrônico e que trazem novas feições para o ato de leitura.”

Já não basta ler o texto escrito, é preciso interpretá-lo a partir das diferentes linguagens que o integram (visual, sonora, imagem em movimento etc.), sendo que essas demandas por leituras multissemióticas e hipermidiáticas tem ocupado inclusive o espaço dos impressos. Tal leitura contribui para nossas análises sobre os saraus da periferia, pois os gêneros que circulam em seu interior são diversos e se fundem nas dinâmicas apresentadas e a participação nas

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apresentações oferece outras leituras e significações. Ou, pelo menos, perde-se muito dos sentidos possíveis dessas produções e dos novos gêneros e protocolos de leitura3 criados a partir das semioses envolvidas no processo de leitura e interpretação.

Algumas alternativas para garantir o contato do público com as muitas performances, mesmo sem estar presente nos espaços, tem sido a publicação de vídeos das apresentações, livros com CD‟s encartados, gravações de áudio, web rádio etc.

Mesmo diante desse cenário de avanços tecnológicos sem precedentes, Rojo (2013, p. 22) nos lembra, parafraseando Lemke (1998), que a formação oferecida pela escola mal foi capaz de incluir imagens, diagramas e gráficos na escrita ou na leitura dos alunos. Lembra ainda que, por isso mesmo, é fundamental “entender o quanto, no passado, foram extremamente restritivas nossas tradições de educação para o letramento”. Tal modelo conservador de ensino é fundamentado no modelo autônomo descrito por Street (1984) e fomentado pelas classes dominantes e seus interesses político-ideológicos em manter as produções culturais das classes dominadas sob controle, como veremos adiante.

Como consequência desse tipo de prática educacional, temos os altos índices de fracasso escolar, apresentados detalhadamente por Rojo (2009) e também nos números apresentados e analisados por Abreu (2003) sobre a leitura no Brasil. Podemos considerar esse quadro como uma espécie de “exílio cultural interno, uma forma de inclusão definida pela exclusão e marginalização” (ROJO, 2013, p. 17) dos alunos.

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“Podemos definir protocolos de leitura como os diversos procedimentos e traços que os processos de mise-en-texte (redação) do autor e de mise-en-page (diagramação) e mise-en-livre (projeto gráfico editorial) do editor deixam para o leitor, buscando levá-lo a certas práticas de leitura, a certas maneiras de ler e, assim, garantir o efeito de sentido intentado. Podemos pensar, por exemplo, na sub-intitulação, na paragrafação, nas notas de rodapé, nos boxes e imagens, na ocupação da página.” (ROJO, 2007, p. 64)

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Kleiman (2001) nos lembra de que o fracasso na aprendizagem da língua padrão ou em situações de teste não se deve a deficiências linguísticas ou cognitivas, mas, sim, ao desconhecimento das práticas envolvidas nessas situações, práticas discursivas que deveriam ter sido ensinadas na escola. Além disso, Kleiman (2001, p. 224-225) afirma ainda que

as variedades linguísticas que os grupos minoritários falam é tão complexa e estruturada como a variante-padrão. Portanto, embora as primeiras sejam estigmatizadas e consideradas inferiores, esse juízo de valor é uma construção social que reproduz outras relações de poder na sociedade.

Os textos trabalhados na escola deveriam servir de modelo e suporte para contribuir com a diversidade do repertório cultural do aluno e para desenvolver suas habilidades com a língua e suas variedades, por meio do trabalho com diferentes gêneros de discurso. Afinal, quanto maior o legado cultural desses alunos, mais elementos eles terão para estabelecer relações com os intertextos, compreender o não dito, identificar os interdiscursos (SERRANI, 2007), além de estarem aptos para atuar dentro e fora de sua comunidade.

Nesse contexto, deparamo-nos com o um grande desafio a ser enfrentado pela escola: definir quais os textos e gêneros a se trabalhar. Destacamos o trabalho com a leitura de textos literários, dentre outras razões, porque o “ensino da literatura ou da leitura literária envolve, portanto, esse exercício de reconhecimento das singularidades e das propriedades compositivas que matizam um tipo particular de escrita.” (BRASIL, 1998, p. 30) Mais do que isso, o estudo dos gêneros literários deve considerar, além de sua estrutura, características ideológicas e estéticas ou, nos termos de BAKHTIN (2003[1979]) o estilo, o tema e a forma composicional, que se fundem no todo do enunciado.

Porém, é preciso enfatizar que consideramos os textos literários a partir dos questionamentos sobre o cânone e a ideia de valor, discutidos no próximo capítulo, nos termos de Abreu (2006) e Eagleton (1999; 2005). E também das propostas da Pedagogia dos Multiletramentos, pois defendemos um estudo de

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eventos de letramentos e multiletramentos vernaculares, multimodais, multissemióticas e situadas sócio-historicamente. Além disso, concordamos com Lemke (1998, p. 457) quando afirma que

um letramento é sempre um letramento em algum gênero e deve ser definido com respeito aos sistemas sígnicos empregados, às tecnologias materiais usadas e aos contextos sociais de produção, circulação e uso de um gênero particular.

Manter o ensino de literatura no atual contexto sócio-histórico é um grande desafio, sobretudo pelo fato de que o ensino de leitura na escola está parado no início do século passado, como afirma Rojo (2004). Essa prática está sedimentada por padrões estético-culturais que não dialogam com as mudanças sociais, tampouco com a realidade, interesses e gostos das comunidades em que estão inseridas e de seu público-alvo: jovens e adolescentes do século XXI.

Daí a importância de questionarmos o discurso da qualidade imanente ao texto. Se o próprio gênero só pode ser definido a partir de seu contexto de produção, a busca por uma crítica específica para produções não canônicas (literaturas negra, feminina e da periferia, por exemplo) deveria partir daí. A partir da consideração e valorização da variedade linguística local, do contexto social que certamente influenciará os temas e os gêneros mais recorrentes na esfera de produção em questão, podemos avançar no sentido de reavaliarmos nossas críticas e mesmo nosso cânone.

1.3 Formação de Leitores

Todo livro é uma lápide, a menos que alguém o acorde

(Michel Yakini)

Embora haja muitas críticas às práticas escolares, é preciso dizer que o objetivo dessa discussão não é apontar para possibilidades de substituição da

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escola. Ao contrário, buscamos um diálogo entre esta e outras agências e agentes de letramento que promovem práticas situadas de leitura e escrita. Ou melhor, práticas de letramentos e multiletramentos, específicas para as necessidades e demandas de suas comunidades.

Com isso, pretendemos apontar para uma possibilidade de lidar com muitos dos conflitos gerados pela diversidade no interior dos muros da escola. Afinal, ela ainda é uma agência central de letramento e continua privilegiando apenas a cultura dominante e também reproduzindo as desigualdades características da sociedade capitalista. Tal atitude reforça, por um lado, a segregação histórica de grupos dominados e, por outro, cria a necessidade de se buscar alternativas para alcançar a humanidade que o conhecimento, a fabulação e o trabalho criativo oferecem (CANDIDO, 2004; KLEIMAN; MORAES, 1999).

Nesse contexto, Rojo (2004, p. 1) afirma que

a escolarização, no caso da sociedade brasileira, não leva à formação de leitores e produtores de textos proficientes e eficazes e, às vezes, chega mesmo a impedi-la. Ler continua sendo coisa das elites, no início de um novo milênio.

Isso confirma o fato de que os mecanismos institucionais responsáveis pelo ensino, difusão e apreciação da leitura têm cumprido um papel discriminatório e de manutenção do status quo da sociedade capitalista também no que se refere à distribuição do conhecimento. Além disso, também retoma uma ideia de leitor que tentamos superar desde os primeiros momentos da modernidade.

A figura do leitor ideal serviu de inspiração também para outras artes: na pintura, temos uma tendência, ao longo do século XIX, de retratar pessoas em ambientes de leitura, sempre em uma atitude contemplativa e respeitosa, como podemos ver em Steiner (2001). Eça de Queiroz ([1886]2000) oferece uma perspectiva interessante ao falar sobre o processo de popularização da literatura após a revolução francesa, que podemos relacionar com o processo de democratização do ensino no Brasil nos últimos 40 anos. Em seu texto, podemos

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visualizar alguns dos empecilhos postos pelos conservadores, já nos primeiros momentos de nossa modernidade, à visão mais democrática da modernidade ilustrada, sobre a circulação, produção e consumo de bens culturais. Segundo o autor, a partir da queda da Bastilha,

veio a democracia: fez-se a iluminação a gás, assomou a instrução gratuita e obrigatória, instalaram-se as máquinas Marinoni que imprimem cem mil jornais por hora, vieram os Clubs, o Romantismo, a Política, a Liberdade e a Fototipia. Tudo se começou a fazer por meio de vapor e de rodas dentadas – e para as massas. (QUEIROZ, [1886]2000, p. 61)

O autor vai além e descreve como ficam as relações escritor/leitor antes e depois desse processo. Até então, uma relação de mútua bajulação e reverência, em busca de um certo status social entre aquele que lê – os poucos que liam e ocupavam um lugar cativo no roll dos verdadeiramente ilustrados – e o homem de letras, aquele que escreve e guia o leitor por sua obra, levando-o para os mais altos níveis da erudição e do bom gosto. No contexto descrito, ao contrário,

sumiu o leitor. O antigo leitor, discípulo e confidente, sentado longe dos ruídos incultos sob o claro busto de Minerva, o Leitor amigo, com quem se conversa deliciosamente em longos, loquazes, Proémios: e em lugar dele o homem de letras viu diante de si a turba que se chama Público, que lê alto e às pressas no rumor das ruas. (QUEIROZ, [1886]2000, p. 61)

Naturalmente, o antigo homem de letras não pode aceitar esse novo leitor, ou melhor, seu Público, “cem mil cidadãos que estendiam tumultuosamente a mão para o livro” (p. 61), da mesma forma e com a mesma distinção destinada aos cem leitores ostentados com orgulho por Voltaire, que assim podia garantir que se tratava de um público seleto, digno e capaz de apreciar sua obra. Embora pareça totalmente superada a atitude ironizada pelo escritor, nos dias de hoje, vemos situação análoga, dentre outras coisas, devido a um novo momento do processo de “iluminação a gás”. Segundo Rojo (2010, p. 4)

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nos últimos 20 anos, a população escolar mudou: as camadas populares tiveram finalmente acesso à educação pública (ou a ela retornaram) e trouxeram para as salas de aula práticas de letramento que nem sempre a escola valoriza e que dialogam com dificuldades com os letramentos dominantes das esferas literária, jornalística, da divulgação científica e da própria escola.

É a “turba que se chama Público, que lê alto e às pressas no rumor das ruas”, rejeitada desde sempre, cujos letramentos e linguagem vernaculares jamais foram aceitos, senão na praça pública ou no carnaval, ocupando o espaço escolar. Esse processo gerou e ainda gera conflitos intermináveis entre alunos que chegam com um rico – e desvalorizado – repertório de experiências, linguagens, cultura, e a escola que ainda insiste em formar “leitores dos velhos tempos” – segundo Queiroz ([1886]2000, p. 61), aqueles que possuem

todas as finuras novas do gosto, e agasalha e encaderna os Estilistas, os Parnasianos, os Femininos, os Coppée, os Daudet, os Verlaine, com o carinho religioso com que os Mecenas da época de Boileau encadernavam e reliam Tácito e Catulo.

Temos a impressão de que a escola idealiza e tenta formar um leitor ideal, para uma literatura ideal, ou seja, a leitura do cânone determinado pelas classes dominantes, a partir de apreciações valorativas pautadas na ideologia dominante do século XIX. Silva (2005, p. 35) nos lembra de que a escola atua através de um mecanismo de exclusão de crianças e jovens das classes mais baixas, pois “o currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante” e não há qualquer esforço da instituição para tornar esse código acessível e familiar a esses jovens. Essa postura afasta e leva, em muitos casos, à rejeição, por parte dos alunos, dos saberes, letramentos e formação oferecidos pela escola, como vemos em Abreu (2003, p. 39):

A escola parece estar matando o gosto pela escrita poética, pois quanto maior for o número de anos de estudo, menor a quantidade

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de escritores (entre os que cursaram o Ensino Médio, 23% escrevem poesia e 26%, letra de música; dos que chegaram ao Ensino Superior, 12% dedica-se à poesia e 12% às letras de música)... A permanência na escola parece inibir até mesmo o gosto pela leitura de poesias.

A resistência das escolas em valorizar saberes vernaculares e atualizar seus currículos, de acordo com as demandas da sociedade contemporânea e os padrões culturais das comunidades em que estão inseridas, pode levar à rejeição das ideologias e dos conhecimentos escolares por parte dos alunos (APPLE, 1989; BUZATO, 2005; ROJO, 2010). O que levaria, por sua vez, não apenas à evasão e ao fracasso escolar, mas também à frustração e à violência. Isso porque a instituição ainda rejeita o fato de que

por mais que a ideologia do individualismo possa construir o estereótipo do escritor ou leitor solitário, o fato de os textos e signos serem socialmente significativos é o que confere a eles a sua utilidade e os torna possíveis. (LEMKE, 1998, p. 457)

Além disso, o acesso à leitura ainda é restrito, também por seguir padrões classistas e com as mais terríveis consequências (KLEIMAN, 2001; ROJO, 2004; SOARES, 2004). Por exemplo, Souza (2009) aponta o racismo como fator determinante para rendimento escolar de estudantes negros e, consequentemente, para seu comprovado insucesso. Bourdieu e Passeron (1975) questionam as “escolhas” acadêmicas de mulheres, justamente por argumentar que o preconceito as influencia a reivindicar certas profissões que reproduzem estereótipos e mantêm certos lugares sociais.

O mesmo pode ser visto na relação da classe trabalhadora e da classe dominante com a leitura. Jovens e adultos da classe trabalhadora ainda veem a leitura como uma forma de acesso ao mercado de trabalho, ou seja, diretamente relacionada à função predominante da escolarização para esses grupos – a turba que lê nas ruas. Por outro lado, o mesmo público nas classes dominantes valoriza

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as contribuições da leitura para melhorar a comunicação e a expressão – o leitor dos velhos tempos4:

Em nossa sociedade capitalista, reforça-se essa diferença do valor da leitura para dominantes e dominados, pois ela confere à escrita “um papel discriminativo” que pereniza os privilégios: para os dominados, o valor do ler-escrever é “um valor de produtividade e não um valor que afirma o sujeito e lhe franqueia a diversidade de conhecimento”. (SOARES, 2004, p. 22)

As consequências da privação de uma boa formação como leitor, ou seja, que saiba abarcar a diversidade linguística e torne o aluno apto a transitar pelos meandros das muitas línguas e linguagens faladas, escritas e encenadas no Brasil, vão muito além das (im)possibilidades de ascensão social que é negada às classes dominadas quando estas não conseguem se apropriar da leitura como uma prática social, sobretudo no que se refere à produção literária. Tal segregação pode ser ainda mais perversa para a formação dessa camada da população. Segundo Candido (2004, p. 186),

a Literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita, sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentidos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto nos humaniza. Negar a fruição da Literatura é mutilar nossa humanidade.

Embora haja muitas formas de nos organizarmos e de “escaparmos do caos”, o fato é que, como o próprio autor argumenta, não é possível passar sequer um dia sem mergulhar no “universo da ficção e da poesia” e as pessoas buscam essa fuga da realidade de diferentes formas: desde o sonho, cujo universo onírico garante os momentos de fabulação, até as novelas televisivas, passando pela leitura de romances e poesias. Enfim, a humanidade necessita desses momentos

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O status social da leitura se materializa também nas pesquisas sobre leitura no Brasil. Abreu (2003) nos mostra como as classes A e B possuem muito mais livros em casa, 27% possuem mais de 100 livros, enquanto as classes C 5% e na classe D e E 2%. Isso mostra como os livros se tornaram símbolos de status social, tanto quanto carros e roupas luxuosas.

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que serão determinantes para sua formação, não apenas como leitores, mas também como cidadãos e seres humanos.

No entanto, o acesso a essas produções não ocorre de maneira igualitária. Às classes dominadas cabem as produções menos reconhecidas, que exijam baixos níveis de alfabetismo5 e práticas de letramento restritas. Segundo Soares (2004), diversas barreiras são criadas para garantir que os lugares sociais impostos pelo sistema capitalista sejam mantidos. No que se refere ao acesso à leitura, além da dificuldade de acesso ao próprio texto escrito, a distribuição desse material também ocorre de maneira seletiva, com textos específicos para cada classe social

Essa barreira ao acesso à leitura se concretiza não só por mecanismos de sonegação de material escrito às camadas populares, mas também por mecanismos de distribuição seletiva desse material, mecanismos que impõem a forma de consumo: livros, revistas, jornais para as classes dominantes; livros, revistas, jornais para as camadas populares. (SOARES, 2004, p. 25)

Importante ressaltar que não se trata de considerar melhores ou piores os materiais voltados para cada grupo. O que questionamos são as barreiras (im)postas para que os letramentos dominantes, as produções literárias do cânone, as obras de arte, os museus, salas de concerto etc. não circulem nas periferias e entre as classes trabalhadoras. E, da mesma forma, questionamos porque os raps, a dança de rua, o grafite, a literatura marginal/periférica, negra,

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Rojo (2009, p. 45) traz a definição do INAF para o conceito: “a capacidade de acessar e processar informações escritas como ferramenta para enfrentar as demandas cotidianas”. Porém a autora nos mostra, com base nos trabalhos de Soares (2003[1995]; 1998), que o termo é muito mais complexo e sócio-historicamente situado. A complexidade está no fato de que saber ler e escrever envolve capacidades de leitura e escrita “múltiplas e muito variadas”. A autora também destaca o fato de que “o que se define como alfabetismo muda de uma época para outra, porque essas definições refletem as mudanças sociais” e explica que “se, na primeira metade do século passado, podíamos definir como alfabetizado aquele que sabia escrever o próprio nome, já em 1958 a Unesco define alfabetizado como a pessoa que é capaz de ler e escrever com compreensão um enunciado curto e simples sobre a vida cotidiana (Unesco, 1958:4, apud Soares, 2003[1995]:33). Hoje em dia, entretanto, essa capacidade seria considerada como um nível mínimo de alfabetismo.” (ROJO, 2009, p. 45-46)

Referências

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