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CAPÍTULO 3. CRIANDO E FORTALECENDO ELOS

3.1 Pressupostos teórico-metodológicos da pesquisa

Apresentamos aqui os pressupostos teórico-metodológicos que orientam a pesquisa. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de base interpretativista observacional, uma vez que pressupõe a observação dos espaços dos saraus. A partir do olhar e da interpretação da pesquisadora, esperamos observar o Sarau Elo da Corrente e as características que o tornam um espaço de questionamento e de construção de saberes, sentidos e contradições no trabalho com a literatura marginal/periférica, sob a perspectiva dos letramentos e multiletramentos, dialogando com as diversas vozes sociais que compõem seus enunciados concretos (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1986[1929]).

Adotamos, pois, uma perspectiva dialógica da linguagem (BAKHTIN, 2003[1979]), e enfatizamos, em nosso trabalho de campo, assim como na geração e análise de dados, uma postura baseada na problemática de que, em uma pesquisa observacional,

um problema óbvio é a enorme complexidade do comportamento humano, seja como indivíduos ou em grupos e a impossibilidade de fazer um registro completo de todas as impressões do pesquisador. Adicione a isso a subjetividade do pesquisador que, ao mesmo tempo em que coleta dados sensoriais está ativamente engajada em dar sentido às impressões e interpretar o significado

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do comportamento e eventos observados (JONES; SOMEKH, 2005, p. 138, tradução nossa)17

Não é possível dizer que tal problemática foi completamente superada nesta pesquisa, e provavelmente ainda não o foi nos estudos metodológicos. Porém, foram selecionadas alternativas para lidar com as limitações de uma pesquisa interpretativista observacional. Dentre elas, assumimos uma postura de seguir fielmente a base teórica que escolhemos. Portanto, observamos os encontros e os interpretamos a partir da perspectiva dos multiletramentos, tentando interpretar os eventos de letramentos e multiletramentos presentes ali a partir dessa base teórica. Desse modo, buscamos afastar, na medida do possível, as subjetividades e o envolvimento pessoal. Por outro lado, nossa observação pode ser considerada, em alguma medida, uma observação participante, pois

observadores participantes ganham uma visão única para o comportamento e as atividades daqueles que observam porque participar de suas atividades e, em certa medida, são absorvidos pela cultura do grupo (JONES; SOMEKH, 2005, p. 140)18

Embora minha participação nos espaços não seja o foco das análises ou o objetivo da pesquisa, ela foi fundamental para a compreensão dos sentidos construídos nos encontros e nas relações estabelecidas no sarau. Além disso, o contato mais próximo com os participantes foi essencial, pois acreditamos que

se transformarmos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos as divisões das vozes (a alternância de sujeitos falantes), o que é extremamente possível (a dialética monológica de Hegel), o sentido profundo (infinito) desaparecerá (bateremos

17 No original: “an obvious problem is the enormous complexity of human behaviour, whether as

individuals or in groups, and the impossibility of making a complete record of all the researcher‟s impressions. Add to this the subjectivity of the researcher who at the same time as collecting sensory data is actively engaged in making sense of impressions and interpreting the meaning of observed bahavior and events”

18No original: “participant observers gain unique insights into the behaviour and activities of those

they observe because they participate in their activities and, to some extent, are absorbed into the culture of the group”

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contra o fundo, poremos um ponto morto). (BAKHTIN, 2003[1979], p. 401)

Nesse contexto, o trabalho de campo observacional, participativo e interpretativo, surge como parte fundamental do projeto, sobretudo o trabalho de interpretação dos dados. Assim, fundamentaremos a análise de base qualitativo- interpretativa que será realizada, para que “o ato da pesquisa qualitativa seja interpretado como um processo multicultural” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 16).

Pensando no público dos saraus, nos membros da comunidade, onde alguns, com pouca escolaridade, passam horas sentados ouvindo poesia e até começam a escrever, interessa-nos discutir e analisar algumas das estratégias usadas por esses agentes/agências de letramentos para despertar tal interesse. A descrição dos saraus, suas práticas, parcerias e diversas formas de divulgação, nos proporcionará um desenho mais nítido de sua ação social, bem com de suas contribuições para a teoria e crítica literárias.

Souza (2009), em sua pesquisa com jovens ativistas do movimento cultural hip hop, cujo objetivo era apontar o movimento como uma agência de letramento e seus ativistas como agentes de letramento, nos oferecerão as diretrizes para orientar nossa observação e análise. Isso porque entendemos que seu objeto de pesquisa está diretamente relacionado ao nosso, dentre outras coisas, por pensarmos os saraus da periferia como um desdobramento ou um “braço” mais fortalecido do hip hop, e suas atividades como letramentos de reexistência, pois

ao capturar a complexidade social e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da linguagem, contribuem para a desestabilização do que pode ser considerado como discursos já cristalizados em que as práticas validadas sociais de uso da língua são apenas as ensinadas e aprendidas na escola formal. (SOUZA, 2009, p. 32)

O trabalho de Souza (2009) nos mostra como os letramentos de reexistência preparam jovens negros e pobres da periferia para atuar dentro e fora de suas comunidades, a partir da apropriação de saberes institucionalizados.

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Souza (2009) disserta sobre a importância de considerarmos, nos estudos do letramento, as outras formas de atuação ou apropriação da língua que ocorrem em outras esferas de utilização (BAKHTIN, 1993[1934-35/1975]), em que os sujeitos podem utilizar de maneira autônoma a língua escrita.

Entendemos que os saraus se configuram como uma dessas esferas, porém, mais do que apenas proporcionar um ambiente mais “democrático” para utilizar a língua escrita, trata-se de um ambiente para práticas de letramentos de reexistência ao proporcionar

uma reinvenção de práticas que os ativistas realizam, reportando-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco contada, nos quais os usos da linguagem comportam uma história de disputa pela educação escolarizada ou não. (SOUZA, 2009, p. 33).

A partir dessas perspectivas buscaremos perceber se, em alguma medida, os saraus da periferia de São Paulo também conseguem reinventar, reformular, redizer e praticar a cultura letrada escolarizada (SOUZA, 2009).

Já nas primeiras observações de campo percebemos que pensar apenas os letramentos e as possíveis relações entre língua escrita, oralidade e as variedades linguísticas desses espaços, não seria suficiente para dar conta de tamanha diversidade. Portanto, em nossas análises nos basearemos nas contribuições do Círculo de Bakhtin (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 1986[1929]; BAKHTIN, 2003[1979]), sobretudo para pensarmos os gêneros discursivos presentes nos saraus e na produção literária da periferia.

Os novos estudos do letramento vão nos servir de guia por toda a pesquisa, sobretudo a perspectiva da língua escrita como uma prática social de linguagem e o modelo autônomo proposto por Street (1984). A partir dessas perspectivas é possível pensar alternativas para o ensino de língua e linguagem e também em diferentes agências de letramento, como vemos nos trabalhos de Souza (2009), Sito (2010) e Alencar (2012).

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Porém, será a Teoria dos Multiletramentos que oferecerá o material necessário para analisar a produção literária da periferia de maneira mais ampla e completa. Isso porque essa teoria abrange tanto o caráter multissemiótico e multimodal das produções das periferias e, sobretudo dos saraus, quanto seu aspecto multicultural, político e ideológico. Ou seja, a um só tempo podemos analisar as características linguísticas e ideológicas, assim como na teoria bakhtiniana. No entanto, aqui podemos contemplar a multissemiose imposta pela grande evolução tecnológica atual. Dentre outros fatores, como a influência de estilos musicais como o samba, o funk, o rap, os movimentos estético-políticos multimodais, como o movimento cultural hip hop, e o massivo processo de democratização do ensino formal, que aumentou a influência do uso da escrita formal.

Serão esses construtos teóricos que fornecerão o material necessário para realizarmos a análise dos dados levantados em nosso trabalho de campo, nas pesquisas bibliográficas, nas análises dos materiais de atividades de formação e no material coletado na internet.

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