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CAPÍTULO 2. LITERATURA EM MOVIMENTO OU MOVIMENTO LITERÁRIO

2.6 Os Saraus

Toda essa riquíssima produção literária encontrou abrigo e um ponto de articulação nos saraus da periferia. À exemplo das posses no movimento cultural hip hop com seu compromisso político-pedagógico, é nos saraus que a literatura marginal/periférica vai se organizar e expandir ainda mais o seu potencial transformador político, pedagógico e estético. A Cooperativa Cultural da Periferia, conhecida como Cooperifa, foi o primeiro sarau a atingir o grande público. Nascimento (2011) nos oferece um histórico completo da atuação desse importante espaço de divulgação da literatura da periferia, idealizado pelo poeta Sérgio Vaz.

Segundo a autora, Sérgio Vaz, dedicava-se à poesia desde o final dos anos 1980, quando publicou seu primeiro livro, e nos anos 90 publica outros dois, financiados por ele mesmo. Desde o início o poeta já se dedicava a divulgar a poesia entre os jovens, inicialmente com o projeto Poesia contra a Violência, em que o poeta visitava escolas de Taboão da Serra para recitar suas poesias e falar sobre literatura. Esse projeto o tornou conhecido como poeta e “permitiram que estreitasse contato outros artistas, ativistas e personalidades locais” (NASCIMENTO, 2011, p. 58). Na mesma época aproximou-se do movimento cultural hip hop e identificou-se não apenas com a arte, mas também com o compromisso político do movimento. Também começou a organizar atividades culturais no bairro, sendo a ideia inicial realizar uma espécie de semana de arte moderna, nas palavras do próprio poeta, “mas, desta vez com artistas da periferia” (ibidem, p. 59).

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A semana foi realizada e o poeta também escreveu um manifesto14, onde cunha o termo artista-cidadão. Segundo Nascimento (2011, p. 59), o poeta cidadão é “aquele que não se ocupa somente das questões estéticas ou do retorno financeiro e se mostra comprometido em exprimir injustiças sociais em sua produção”. É esse tipo de poeta que o sarau tentará agregar e formar, a partir dos muitos projetos voltados à divulgação e apreciação literária que se seguiram.

Outros eventos ocorreram e todos foram marcados pela mistura de diferentes manifestações artísticas e de linguagens, apresentados por artistas profissionais e amadores, como “shows de rap e MPB, desfile de penteados afro, exposição de fotografias e artes plásticas, lançamento de livros, além das apresentações de capoeira, teatro e dança” (NASCIMENTO, 2011, p. 60). Cerca de mil pessoas participaram desses eventos, três no total, porém o próprio Vaz afirma que tinha mais pessoas se apresentando que assistindo. Tal afirmação comprova a importância desses espaços para artistas marginalizados. Também reforça seu caráter multiplicador, na medida em que, ao agregar artistas já interessados em arte e poesia, estes vão levar a ideia para outros espaços na periferia.

Os eventos foram se esvaziando e os poetas quase desistiram, até que começaram a realizar encontros poéticos no Bar do Portuga às quintas-feiras, que ficaram conhecidos como Quinta Maldita. Os encontros não duraram muito, mas foi a partir daí que Sérgio Vaz e Marco Pezão estreitaram os laços e hoje são conhecidos como fundadores do Sarau da Cooperifa. Não se sabe ao certo quem ou porque passaram a usar o nome “sarau” para os recitais realizados, inicialmente no Bar do Bodão em 2001, pois os poetas só acharam o nome conveniente. O fato é que a partir desses encontros o Sarau da Cooperifa começou a expandir seu público. Além disso, consolidou um modelo

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Veja o manifesto completo em: http://colecionadordepedras.blogspot.com.br/2007/10/manifesto- da-antropofagia-perifrica.html. Acesso em: 04 out.2013.

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organizacional para o sarau cooperiférico e que inspiraria todos os outros que viriam, como nos fala Nascimento (2011, p. 62).

A inscrição prévia, os aplausos para os poetas e o silêncio durante as declamações. No espaço destinado às apresentações, apenas o microfone e dois adornos que, anos depois, iriam decorar o Zé Batidão: uma grande bandeira do Brasil15 e uma faixa com a frase „O silêncio é uma prece‟, que já era tida como lema do Samba da Vela e foi reproduzida por iniciativa de Sérgio Vaz no Sarau da Cooperifa.

Também passou a ser constante a participação de rappers, mesmo que não tenha sido intenção dos idealizadores se atrelar, diretamente, ao hip hop, tampouco tornar-se um espaço militante. Aos poucos o discurso político tomou conta dos encontros e “o sarau foi se firmando como um movimento da quebrada, e sem que a gente exigisse as poesias românticas foram sendo substituídas pela temática social” (VAZ, 2008, p. 95). A Cooperifa passou a ser definida como um movimento cultural de resistência na periferia, uma vez que abriu espaço para a divulgação e produção cultural dos artistas da região em que atua. Também promoveu um novo espaço de sociabilidade e lazer para a periferia, até então à margem de espaços culturais como teatros, museus, bibliotecas, universidades, etc.

Nascimento (2011) também aponta a forte ligação do sarau cooperiférico com a cultura negra. O próprio Vaz (2008, p. 85) afirma ter criado “na senzala moderna chamada periferia o Sarau da Cooperifa, movimento que anos mais tarde iria se tornar um dos maiores e mais respeitados quilombos culturais do país”. Outra aproximação entre a cultura negra e o sarau da Cooperifa, apontada pela autora, foi a participação massiva de representantes do movimento cultural

15 Segundo Nascimento (2011, p. 66), a bandeira “foi retirada do bar em 2006, à época dos

chamados „ataques do PCC‟, como forma de protestar contra a falta de segurança que se instaurou em São Paulo e o sentimento de se morar num país sem pátria, segundo me relatou o poeta Márcio Batista em entrevista: Naquele momento, alguém fez uma crítica, o Sérgio [Vaz] pegou a bandeira e voltou a dizer que só ia colocar aquela bandeira de volta quando a periferia fizesse parte do Brasil”.

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hip hop. Porém, é Silva (2011) que se aprofundará mais nessa questão delicada da relação entre a literatura marginal/periférica e a literatura negra, trazendo à tona os benefícios e conflitos dessa tumultuada e inevitável relação:

as alianças entre as éticas e estéticas criativas negra e periférica também entram em atrito por uma série de razões. Seja pela incompreensão mútua de aspectos particulares; pelo interesse midiático mais acentuado numa ou outra; ou, ainda, por complicações de projetos políticos e conflitos geracionais. Isso não impediu, no entanto, aproximações concretas: a partir do número 28 dos Cadernos Negros, escritores ligados à estética periférica lançam seus contos e poemas naquela publicação. Ou autores do Quilombhoje começam a participar dos saraus e reuniões nas periferias de São Paulo. Há um certo trânsito entre as ideias e os problemas comuns (p. 412).

Outra característica e contribuição importante do modelo cooperiférico de sarau refere-se a sua realização em bares da periferia. Desde 200316 os encontros se realizam no Bar do Zé Batidão, no extremo sul de São Paulo. Mas Nascimento (2011) relata que já em 1988 o Zé Batidão cedeu o espaço de outro bar para o lançamento de um livro de Sérgio Vaz. Quando consultado pelo poeta sobre a possibilidade de usar o espaço do bar para os recitais, ele não apenas aceitou, como também financiou o transporte para os participantes do sarau em Taboão da Serra continuassem frequentando o sarau no novo espaço, pagando uma van para fazer o serviço. O bar passa a ser um “centro cultural”, como nos fala a autora. A presença de uma estante livros no local, funcionando como uma biblioteca comunitária, os enfeites em dias de apresentação, serão algumas das características que se repetirão na maioria dos saraus que surgirão.

A partir da chegada ao Zé Batidão, o sarau passou a ser também um meio de divulgação de outros eventos culturais e políticos da periferia e

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Embora não haja um consenso sobre a data exata de início dos eventos no Zé Batidão, o dono do bar alega o ano de 2001, Sérgio Vaz diz ter sido por volta de 2003, mas Nascimento (2011) diz ter recebido um convite para o terceiro encontro que seria no dia 6 de agosto de 2003.

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essa mescla de incentivo à produção e consumo cultural, participação política e sociabilidade, da mesma maneira que se conformou numa experiência bem sucedida no Bar do Zé Batidão, representou também uma mudança quanto aos propósitos e características da Cooperifa, dado que o movimento deixou de ser uma iniciativa de artistas e ativistas de Taboão da Serra para assumir o papel de ação coletiva de moradores das periferias paulistanas. (NASCIMENTO, 2011, p. 67)

Os saraus criaram uma nova tendência e uma proposta de entretenimento para a periferia, usando o “único espaço público da periferia”, que é o bar. Hoje não é possível dizer, com exatidão, o número de saraus espalhados pelos bares de São Paulo. Muitos já consolidados, com vários anos de atuação e reconhecidos, tanto entre os representantes da literatura marginal/periférica, quanto institucionalmente, tendo acordos e projetos junto às secretarias de cultura, ONG‟s e escolas, por exemplo.

É sobre essa expansão que trataremos adiante. A escolha do Sarau Elo da Corrente para nossas observações tem também esse objetivo de demonstrar, como de 2001 até os dias de hoje, estamos vendo, de fato, a formação de uma importante organização estético-político nas periferias do país.

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