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Neste capítulo da pesquisa, me lanço analisar o processo de produção da escrita dos alunos. Por isso, inicialmente, discuto o sentido da escrita. Escrever tem um sentido. O ser humano inventou a escrita, e esta foi se aperfeiçoando de tal forma que atualmente beneficia a comunicação, registra os conhecimentos descobertos por ele a fim de partilhar suas histórias e seu conhecimento.

De acordo com Goés, a escrita tinha uma função; passou a ser lida por outro e a servir como ajuda do outro, após os séculos I e II. Primeiramente, ela teve um significado confidencial e, depois para auxiliar o outro, com o registro de meditações e de conclusões a partir das meditações, “com fins de conservá-la para uma posterior leitura” (2007, p.4). Num outro momento histórico, a escrita passou a ter um caráter de assimilação mais perfeito de ideias, de pensamentos. Essas características estão presentes, ainda, nos dias atuais.

É importante ressaltar que, inicialmente, a função da escrita era etopoiética, ou seja, “a boa escrita [...] era o que pudesse servir à boa memória; uma escrita passível de ser interiorizada, ajudando ao domínio de si, antídoto para o perigo da intemperança. Ao passo que a má escrita se confundia com a memória ruim” (QUEIROZ; CRUZ, 2007, p. 42).

Inicialmente, uma das mais conhecidas formas de escrita foram os

hypomnématas que, de acordo com Foucault (2004), era uma escrita que servia de

lembretes, de guia de conduta. Fazia-se por meio dos registros públicos, de livros e de cadernetas. Os registros escritos formavam uma memória material daquilo que era lido, ouvido e pensado. Eram considerados como tesouros usados para releitura e meditação, usados para elaboração de tratados mais sistemáticos e para ultrapassar algum momento difícil. Enfim, essa escrita tinha um valor de purificação (uma escrita interior) para contribuir na formação de si.

Esses hypomnématas não deveriam ser considerados somente como suportes de memória para ser usado quando fosse necessário ou como auxiliar nos lapsos de memória. Eles deveriam, sim, ser considerados materiais para uso da leitura, releitura, meditação e para tema a ser debatido com o outro; era preciso que estivessem presentes na alma e que fossem fragmentos de nós mesmos.

As hypomnématas utilizadas pelos gregos serviam de suportes para lembranças, nos quais se escreviam as citações lidas e ouvidas cotidianamente.

Certamente, eram mais do que simples cadernos de citações. Nelas registravam-se reflexões pessoais, poemas, anotações diversas, lembretes, rascunhos, ou seja, comentários de sua experiência na forma escrita.

Outra forma de ocorrência da escrita era e é um texto escrito destinado ao outro, porém, passível ao exercício pessoal. A correspondência (como exemplo, a carta) age no emissor e no receptor. Ambos leem e releem, possibilitando a meditação – neste particular e de acordo com o contexto da escrita presente na correspondência, ocorre o adestramento de si mesmo. As características da correspondência em alguns aspectos assemelham-se ao hupomnêmata.

Nas práticas da escrita nesse mesmo período, unida aos hupomnêmatas, estava a correspondência (a carta). Ambas apresentam características em comum e aspectos divergentes. Na correspondência, o escritor torna-se presente para o destinatário, não somente pelas informações contidas, mas também pelas suas conquistas, seus fracassos; faz o escritor presente quase imediatamente, quase fisicamente. A troca que a correspondência proporciona não é somente o conselho, a ajuda, mas o exercício do olhar, do exame, um olhar que o emissor tem em relação ao destinatário. Por meio da escrita (correspondência), apresentam-se os fatos do cotidiano.

Diante das informações apresentadas sobre as funções da escrita vale refletir: Qual a função da escrita hoje? Na escola, nas práticas diárias? Na Olimpíada de Língua Portuguesa? Como era utilizada e realizada, fazia-se presente o governamento? Apresentam estas funções nos gêneros textuais do programa? Estas indagações permitem estabelecer relações com as formas, funções da escrita que discuto no início desse capítulo, conforme me propus compreender a expressão escrita.

É importante lembrar, também, uma função indispensável da escrita, que é a possibilidade de registrar o que sabemos, o que pensamos ou o que estudamos, para que o outro que está implicado com o contexto possa, também, conhecer, partilhar e discutir.

Fernandez contribui para compreendermos melhor o conceito da escrita:

[...] o texto escrito, como objeto de interpretação, não é uma unidade fechada e, muito menos, um produto acabado, mas um trabalho linguístico e discursivo, processado por um enunciador num jogo que envolve escolhas,

negociações de sentido e reelaborações. Desse modo, entendemos que o ato de redigir um texto leva o autor a deixar marcas discursivas inscritas em sua materialidade para serem interpretadas pelo “outro” leitor (2007, p.1).

O texto escrito passa a ser uma possibilidade de oferecer ao outro (leitor) um pouco de si. O autor, além de expor-se, pode ser conhecido, apreciado, pensado, contestado pelo seu interlocutor. No momento em que se possibilita ao indivíduo espaço para construir a escrita, interferindo por meio da leitura do professor e dos colegas, acontece as interações e o conhecimento das marcas discursivas entre os interlocutores e os conhecimentos das diversas formas de pensar.

Dessa forma, cada exercício de escrita, cada produção textual, independentemente do gênero escolhido, torna-se oportunidade para modificações na forma de pensar e agir do autor. Nessa direção, Foucault defende que

[...] a escrita como exercício pessoal feito por si e para si é uma arte da verdade díspar; [...] ou uma maneira racional de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam seu uso (2004, p.151).

Na escrita há manifestações de verdades. Mesmo sendo um texto literário, fictício descompromissado com a verdade, ele revela o autor que criou o texto, parte do que ele é, parte da sua imaginação, de sua forma de pensar, de sua história, da sua criatividade e de suas ações. Para Passeti, “a escrita é uma forma de conhecer, aprender e revirar-se [...] é uma maneira de reconhecer o incluso no autor e no leitor” (2004, p.133).

E quanto ao governo de si, a escrita é composta de palavras ditas, escritas e articuladas que abalam a forma de pensar. Ao desestabilizar a forma de pensar, no ato de escrever ocorrem mudanças na forma de agir, compilando-se ao objetivo da Olimpíada de Língua Portuguesa. O conhecer, o aprender e o revirar-se desorganizam e reorganizam o pensamento. Pensando, é possível agir/expressar-se com mais propriedade e caminhar na direção da governamentalidade ou não, da autoria de si e da “autossuficiência”.

Pode-se compreender, de acordo com Foucault, que “o papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um corpo [...] que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas [...] Ela se torna no próprio escritor um princípio de ação racional” (2004, p.152).

A Olimpíada de Língua Portuguesa, desde sua criação, teve como objetivo o desenvolvimento da escrita que é conivente ao pensamento de Foucault (ibidem). A temática da Olimpíada desafia os indivíduos a conhecerem o lugar onde vivem, que é, muitas vezes, desconhecido pelos brasileiros e consequentemente pelos estudantes/alunos. Os alunos são inicialmente desafiados a escrever a partir de meio que habitam, significando-o. No momento em que começam a transcrever suas leituras, durante as aulas, apropriam-se e passam a constituir essas suas verdades, tornando-se, no autor, um princípio de ação racional20.

No transcurso das leituras e das construções das ‘verdades’, durante a escrita e reescrita das produções textuais do concurso nacional, acontece a relação do texto com o autor. Fernandez (2007, p. 3) analisa a situação do autor quando se coloca num lugar externo ao produto escrito, somente como responsável ao que é dito. Relaciono isso à escrita das memórias literárias em que o autor se coloca num lugar externo, mesmo transcrevendo a narração em primeira pessoa. O autor precisa portar de uma empatia ou estar implicado com o personagem ou a história. Diante disso, indago: É possível ver o autor no texto? Os professores-leitores identificam e respeitam o papel discursivo do aluno-leitor?

Tento analisar o autor nas fissuras do texto, visão compartilhada por Foucault, quando se refere à relação da morte com a escrita: “esta relação da escrita com a morte manifesta-se também no apagamento dos caracteres individuais do sujeito que escreve; não é mais do que a singularidade da sua ausência” (2000, p.37). Nesse diluir dos caracteres individuais, acontece a morte do autor, que seria o seu desaparecimento, deixando um espaço vazio e as lacunas que podem ser investigadas minuciosamente, as funções que são deixadas à mostra.

Não é possível ter o texto sem o autor; ele serve para caracterizar o ‘jeito’ do discurso. O autor indica que esse discurso não é indiferente ou passageiro, nem flutuante ou imediatamente consumível, mas é um discurso que está inserido em uma determinada cultura, recebendo certo estatuto.

O nome do autor não se faz presente no meio do discurso, mas de alguma forma ele está inserido no texto, delimitando-o, recortando-o, caracterizando-o,

20 Tento aqui, tornar mais compreensível os termos ‘ação racional’ - são ações baseadas em

considerações de eficiência teleológica ou de cálculo, em vez de impulsionadas pela moral, emoção, hábito ou tradição.

mostrando o seu singular modo de ser. O nome do autor situa-se na fissura que se faz entre outros discursos presentes no seu texto.

Segundo Foucault,

[...] o que especifica um autor é justamente a capacidade de alterar, de reorientar o campo epistemológico ou o tecido discursivo. De facto, só existe autor quando se sai do anonimato, porque se reorientam os campos epistemológicos, porque se cria um novo campo discursivo que modifica, que transforma radicalmente o precedente (2000, p.86).

Entre os discursos apresentados pelo autor, emerge um novo discurso. O qual caracteriza o autor e se faz dos discursos precedentes. Para o autor é proporcionada a oportunidade de alterar, reorientar o tecido discursivo, desfazendo, dessa forma, seu anonimato. Há uma alternância entre o emergir e o submergir do autor. No submergir, o autor deve apagar-se em benefício das formas dos ‘outros’ discursos. Isso não quer dizer que ele não existe, mas que está ‘invisível’ no momento.

O autor, ao se apropriar de alguns discursos, vai construindo o seu próprio discurso, que vai circulando no interior de uma sociedade e que vai sendo base para a formação dos seus discursos, podendo-se identificar os discursos com características próprias.

Ao construir o discurso o autor vale-se de alguma forma de um gênero discursivo e de um tipo de texto. O gênero textual, memórias literárias e o tipo textual, narração em análise nesse estudo me impulsionou a discussão dos conceitos de gênero, de gênero textual, de tipo textual e de domínio discursivo que vem a seguir.