• Nenhum resultado encontrado

FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO.

No documento O DIREITO DE PROPRIEDADE (páginas 142-152)

A correlação entre a propriedade e o contrato, ou melhor, entre o direito de propriedade e a liberdade de contratar, encontra as suas origens, na Idade Moderna, especificamente, no século XIX, com o advento da Revolução Francesa e do Liberalismo.

Naquele momento histórico, a burguesia em ascensão necessitava do contrato como instrumento de circulação da propriedade e da riqueza, conforme ensina JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO195:

195 A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 21, página eletrônica: www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/ARTIGOS/convidados/artigo_funcao_socialdo_contrato_arru

“Toda disciplina do século XIX gravitou, fundamentalmente, em torno de duas realidades: a liberdade e, nesse espaço de liberdade, o exercício da atividade econômica através dos contratos e, paralelamente, a garantia do direito de propriedade. Isto é, foi a maneira através da qual a burguesia assumiu o domínio da sociedade e a continuação desse domínio na sociedade se deu justamente através do domínio dos corpos legislativos e, mais ainda, em seqüência a isto, com o domínio da ordem jurídica, tal como ela resolveu moldar essa ordem jurídica para que essa ordem viesse a assegurar continuadamente o prevalecimento dos seus interesses”.

Nesta época, o direito absoluto de propriedade, como o direito do proprietário, oponível erga omnes, de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reivindicá-la de qualquer um que injustamente a possua, convive com uma concepção liberal de contrato, facilitadora da circulação desta propriedade e das riquezas.

Os princípios que norteavam os contratos eram a liberdade de contratar, o pacta sunt servanda e a relatividade dos contratos, a consagrar que o contrato constitui lei entre as partes e só a estas vincula, não beneficiando, nem prejudicando a terceiros.

Para se atender aos objetivos pretendidos neste Estado Liberal, toda a construção acerca do direito contratual, parte do pressuposto da igualdade entre as partes contratantes, vale dizer, consagra uma igualdade formal e não substancial.

Sob o influxo desta sociedade européia não intervencionista é que se idealizaram as normas sobre contratos no Código Civil de 1916.

da burguesia, por outro, acabava por constituir fonte de profundas injustiças, chegando a surgir, na Europa, “segmentos constituídos por bolsões de miséria”196.

Neste contexto, surge, o Estado Social de Direito que, em relação ao direito de propriedade cuidou de positivar o princípio da função social em nível constitucional, inicialmente, nas Constituições do México (1917) e na Constituição de Weimar (1919).

No Brasil, o princípio da função social da propriedade foi consagrado, inicialmente, na Constituição Federal de 1946, mas teve sua concretização, na Constituição Federal de 1988, que, no artigo 5o, ao mesmo tempo que garante o

direito de propriedade (inciso XXII), estabelece que a propriedade atenderá à função social (inciso XXIII).

MIGUEL REALE197 nos demonstra a primeira correlação entre a função

social da propriedade e a função social do contrato, defendendo que esta se origina daquela, nos seguintes termos:

“Um dos pontos altos do novo Código Civil está em seu Art. 421, segundo o qual ‘a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato’.

196 José Manoel de Arruda Alvim Netto. A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 29. 197 Função Social do Contrato. Disponível na Internet no site:

Um dos motivos determinantes desse mandamento resulta da Constituição de 1988, a qual, nos incisos XXII e XXIII do Art. 5º, salvaguarda o direito de propriedade que “atenderá a sua função social”. Ora, a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade”.

A correlação estabelecida nos leva a concluir que o contrato permanece como instrumento de circulação da propriedade e da riqueza, posto que, antes de qualquer coisa, possui uma função econômica.

A esse respeito, destacamos o entendimento de HUMBERTO THEODORO JUNIOR198:

“O contrato é antes de tudo um fenômeno econômico. Não é uma criação do direito. Este apenas, conhecendo o fato inevitável na vida em sociedade, procura, ora mais, ora menos, impor certos condicionamentos e limites à atividade negocial. Seria contra a natureza qualquer norma que impedisse o contrato e que o afastasse do campo das operações de mercado, onde a iniciativa pessoal e a liberdade individual são, acima de tudo, a razão de ser do fenômeno denominado contrato.

A função social que se atribui ao contrato não pode ignorar sua função primária e natural, que é a econômica. (...).

Primeiro, portanto, tem de reconhecer-se a função natural e específica do instituto jurídico dentro da vida social; depois é que se pode pensar em limites dessa natural e necessária função. O contrato, então, existe para propiciar circulação da propriedade e emanações desta, em clima de segurança jurídica. (...)”.

Isto significa que os princípios liberais do contrato não se esvaíram, mas convivem e são relativizados pelos princípios contemporâneos do contrato, a saber: a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o equilíbrio econômico.

Neste ponto, evidencia-se outra semelhança entre a função social da propriedade e a função social do contrato, na medida em que implicam no reconhecimento de que tanto o proprietário, no exercício do direito de propriedade, quanto o contratante, no que se refere à liberdade de contratar, devem atender não só aos seus interesses particulares, mas também a determinadas restrições, ditadas por valores que são socialmente apreciáveis.

Além disso, já mencionamos que o conteúdo da função social da propriedade deve ser definido pela lei, respeitado o seu conteúdo essencial, garantido pela Constituição.

Do mesmo modo, na fixação do conteúdo da função social do contrato, o legislador deverá atentar para o fato de que os interesses dos contratante não podem ser abandonados, sob pena de se suprimir a liberdade de contratar, já que, embora não sejam os únicos a serem observados, são relevantes.

Destarte, os contratos, a princípio são realizados para serem cumpridos, cabendo ao legislador estabelecer as normas excepcionais, a autorizar a sua

alteração ou resolução, conforme elucida JOSÉ MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETTO199:

“Essa essência do direito de propriedade, objeto de proteção constitucional, sugere, em relação aos contratos, conquanto hoje permeado o sistema pela função social que devem desempenhar, que não nos devemos esquecer de que os contratos existem para vincular as pessoas e que devem, fundamentalmente, ser cumpridos. Só diante das exceções consagradas em lei, é que se deverão alterar ou desfazer o contrato, da mesma forma, que o direito de propriedade existe também para o dono, do qual não pode, sic et

simpliciter, vir a ser privado. Por outras palavras, restrições poderão

ocorrer, que, se efetivadas, levariam à ignorância do direito de propriedade, como também, mutatis mutandis, se se vier emprestar às expressões função social do contrato uma dimensão tal, que essa poderia vir a ser destrutiva e conduzir à ignorância da própria razão de ser do contrato”.

Portanto, admite-se uma intervenção do Estado na esfera contratual, para a consagração da socialidade, mas a aplicação dos princípios contemporâneos, dentre os quais, o da função social, deve ser restrito à aplicação prática das cláusulas gerais, de que lançou mão o legislador, para definir as hipóteses de revisão dos contratos e o sistema de vícios e nulidades do negócio jurídico.200

199 José Manoel de Arruda Alvim Netto. A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil, p. 29. 200 No campo do direito contratual, a adoção do dirigismo contratual em favor da socialidade, sua maior expressão na consagração de princípios como o da função social do contrato (Artigo 421 do Código Civil) e da boa-fé objetiva (Artigo 422 do Código Civil). São expressões desses novos valores, que objetivam também, a redução das desigualdades materiais, os Artigos 157 (Teoria da Lesão) e 478 (resolução por onerosidade excessiva), bem como a previsão de nulidade das convenções que afrontarem os princípios da função social dos contratos e da propriedade (artigo 2.035, parágrafo único do Código Civil).

respectivamente, ao direito de propriedade e ao contrato.

Entretanto, em relação ao direito de propriedade, as correntes doutrinárias excludentes, possivelmente, porque na relação jurídica que dele se origina, dada a sua oponibilidade erga omnes, o sujeito passivo vem a ser a coletividade de pessoas que devem respeitar o direito do proprietário.

Por esta razão, ou se admite que o princípio da função social é intrínseco ao direito de propriedade, atingindo o conteúdo dos direitos do proprietário, considerando que o cumprimento de deveres perante a coletividade compõe a própria estrutura do direito de propriedade, ou então, entende-se que a função social é externa ao direito de propriedade, porque incidente sobre a sua exteriorização, que se dá pelo exercício.

Já no que se refere à função social do contrato, parece-nos ser possível sustentar a existência de suas “funções sociais”: a função social intrínseca e a função social extrínseca.

Tal conciliação somente parece ser possível, em razão de se encontrar, na relação jurídica, sujeitos ativos e passivos determinados (contratantes), que celebram negócio jurídico, inserido no âmbito de universo maior que é a coletividade.

Neste sentido, a função social intrínseca estaria relacionada com a avaliação do contrato no âmbito da relação entre as partes contratantes, para, constatando-se

a inobservância da boa fé-objetiva, a existência de vícios de vontade, hipóteses de nulidade ou onerosidade excessiva, aplicar as normas excepcionais para resolver ou, se assim for permitido, revisar o contrato.

Veja-se, neste sentido o entendimento de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER201:

“Cuidar da função social do contrato sob o aspecto intrínseco significa avaliá-la na dimensão do vínculo estabelecido entre os próprios integrantes da relação jurídica. Como exemplo, mencionamos o estabelecimento da cláusula penal progressiva, denunciadora do interesse de uma das partes no descumprimento do contrato, o que, evidentemente, desnatura sua causa final precípua, qual seja, o cumprimento”.

A nosso ver, o exemplo apontado é esclarecedor, para se entender o instituto, afastando a concepção de que a função social intrínseca atua no sentido de proteger a parte contratual mais fraca, atuando para promover a igualdade entre as partes202.

Não devemos esquecer, entretanto, que, ao menos no âmbito das relações civis, o pressuposto é de paridade entre as partes.

201 Comentários ao Código Civil, Volume III, Biblioteca Digital Forense 2.0., p.6.

202 Paulo Nalin in A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro, Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, vol. 12, p.54, out./dez. 2002 se manifesta no sentido de que no aspecto intrínseco a função social estaria ligada à observância dos princípios da igualdade material, equidade e boa-fé objetiva , por parte dos contratantes.

de circulação da riqueza, que pressupõe, em qualquer hipótese, partes e interesses contrapostos.

Note-se, que no exemplo citado por EVERALDO AUGUSTO CAMBLER, a cláusula pena progressiva permite vislumbrar o interesse no inadimplemento, o que, independentemente de quem sejam as partes contratantes, não é um resultado desejado pela sociedade, principalmente, porque as obrigações nascem para serem cumpridas e, assim, extinguirem-se.

Já no que se refere à função social extrínseca consiste em analisar o contrato sob a ótica das repercussões do negócio jurídico no âmbito das relações sociais, o que significa um temperamento do princípio da relatividade dos efeitos do contrato.

Mais uma vez, nos é útil a lição de EVERALDO AUGUSTO CAMBLER203:

“Outro é o sentido da função social extrínseca. Nesta, o contrato, tanto em sua formulação clássica como na standard, é avaliado em razão das implicações positivas ou negativas sentidas junto à coletividade, que se beneficia ou não das características formais e materiais do negócio, da circulação de riquezas, da garantia do crédito etc”.

Ainda quanto ao alcance da função social do contrato, sob o aspecto extrínseco, destacamos a seguinte assertiva de HUMBERTO THEODORO JUNIOR204:

“Nessa ótica, sem serem partes do contrato, terceiros têm de respeitar seus efeitos no meio social, porque tal modalidade de negócio jurídico tem relevante papel na ordem econômica indispensável ao desenvolvimento da sociedade. Têm também os terceiros direito de evitar reflexos danosos e injustos que o contrato, desviado de sua natural função econômica e jurídica, possa ter na esfera de quem não participou da pactuação”.

Concordamos com o referido autor, acerca desta outra perspectiva da função social do contrato sob o aspecto extrínseco, como via de dupla direção, sobretudo no ponto em que inclui no âmbito da função social, também, a proteção os contratantes para que o cumprimento do contrato não venha a ser obstado por terceiros.

Vale dizer, ainda, que a função social do contrato, neste segundo aspecto, não quer significar oponibilidade erga omnes do contrato em face de terceiros, pois estamos a tratar de direitos obrigacionais, portanto, pessoais.

Na hipótese de terceiros virem a frustrar o cumprimento do contrato, a hipótese será a mesma de que poderia se servir o terceiro em face do contratante, ou seja, a solução em perdas e danos.

203 Op. Cit., p. 7. 204 Op. Cit., p. 32.

influência, ainda que indireta, na medida em que não só a disposição, mas todos os demais atributos inerentes à propriedade pressupõem a realização de contratos pelo proprietário da coisa.

Essencial, agora, debruçarmos sobre as normas que consagram o direito de propriedade e as que delineiam seu perfil, determinando o conteúdo da função social da propriedade.

8. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NO

No documento O DIREITO DE PROPRIEDADE (páginas 142-152)