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3. CONTEXTO DA PESQUISA

3.1. O C ANASTREIRO E O Q UEIJO

3.1.1. Garimpar no rio o que tem no prato

Como visto na figura 8 (p.47), destacam-se dois estados (Minas Gerais e Rio Grande do Sul) que se distinguem no que diz respeito ao número de produções de origens. Mas então qual o modelo agrícola que se estabeleceu nesses estados desde a colonização e que favoreceu, nos dias atuais, o surgimento das produções de origens? A partir de uma abordagem histórica, pode-se explicar em boa medida o caso de Minas Gerais e, em especial, da Serra da Canastra que nos interessa no presente estudo. Esse questionamento torna-se mais pertinente quando se sabe que a fabricação e o consumo do queijo da Canastra se confundem com a história do povoamento local, iniciado com a busca de minerais e pedras preciosas (SIMONCINI, 2017).

O movimento pela colonização do Brasil deve ser analisado no âmbito mais global da expansão mercantil da Europa, que começou no século XVI, e que orientou a formação brasileira para “fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante; depois algodão e, em seguida, café para o comércio europeu. Nada mais que isso” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 23). Tal perspectiva teve como consequência o estabelecimento dominante de tipo latifundiário – o engenho, a fazenda – que corresponde à grande propriedade especializada baseada durante anos no trabalho escravo.

Devido à atividade de mineração que fomentou a sua colonização, Minas Gerais faz figura de exceção. Encontrava-se no estado uma “agricultura voltada inteiramente para a produção de gêneros de consumo local” (PRADO JÚNIOR, 2008, p. 160), ao invés da grande lavoura estabelecida na maior parte do país. De acordo com Barbosa (2007), o processo de ocupação agropastoril da região da Serra da Canastra se desenvolveu na segunda metade do século XVIII, após as campanhas de extermínio de negros quilombolas e ameríndios47 que impediam o

47 De acordo com o Plano de Manejo do Parque Nacional da Serra da Canastra – PNSC (BRASIL, 2005, p. 24) “no que se refere

às populações indígenas presentes na região do alto rio São Francisco, poucos são os estudos existentes, mas pode-se afirmar que, antes do processo de colonização portuguesa, a região foi habitada por diversas nações, podendo-se citar os Acorá, Araxá, Araxaué, Bororo, Cataguases, estes predominantes no Sudeste do Estado, e os Caiapós, que se destacam entre os grupos que ocuparam o Noroeste e o Oeste Mineiro [...] Quanto aos escravos trazidos pelos colonizadores que aqui chegavam [...] o crescente trânsito na região, decorrente da abertura dos caminhos do ciclo minerador de Goiás e Paracatu, favorecia a fuga destes que

avanço da frente de colonização e trazia risco às caravanas de bandeirantes e tropeiros. Nesta época, na qual se abriram os caminhos na região, a Coroa Portuguesa promoveu, entre outras ações, a criação de fazendas de gado para garantir o abastecimento das minas e dos tropeiros nessas rotas. Junto vieram galinhas e porcos, que não existiam ali. Assim, a economia agropastoril se expandiu num primeiro tempo (Museu do Queijo de Medeiros). Mesmo que o leite e o queijo ganhassem importância na Canastra, as fazendas eram diversificadas e pouco especializadas. Esta primeira produção era relacionada com a criação de porcos, usando o soro do leite, e com a produção de banha – comercialmente importante (CINTRÃO, 2016). De acordo com a descrição da região pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) que visitou e descreveu a região da Canastra na metade do sec. XIX, o sistema socioprodutivo era baseado na agricultura de subsistência, quase que autossuficiente, associando produção de arroz, feijão, milho, mandioca e derivados, melado, algodão para fiar, além de carne e ovos. Um dos únicos elementos externos exigidos e com alto custo na época era o sal.

Nos séculos XVIII e XIX, Lourenço (2005) reconhece o papel fundamental dos camponeses para a ocupação e o desenvolvimento agropastoril daquele vasto território, ocupando com seus sítios e fazendas as terras liberadas dos quilombos. Nesse movimento migratório, o trabalho camponês foi sujeito principal para suprir a carência de braços na formação de pastagens e no cultivo das roças que abasteciam as vilas e arraiais ligados aos caminhos do ouro e à mineração (BARBOSA, 2007).

Contudo, como descrito por Saint-Hilaire no caso de Piumhi, o lucro da extração do ouro encontrado nos arredores dos arraiais não compensava o alto custo para sobreviver nessas terras difíceis. Assim sendo, os habitantes desistiram da exploração das minas e voltaram a dedicar-se à atividade agrícola, formando assentamentos nos sítios ou fazendas, nos quais se destaca a participação do núcleo familiar na reprodução das unidades agropastoris (SIMONCINI, 2017). Corroborando com Lourenço (2005), essa transição no processo de ocupação do território foi possível uma vez que a formação de uma economia agropastoril diversificada já existia em pequenas proporções anteriormente à decadência da mineração. Por outro lado, o mesmo autor descreve que diferente da maioria das outras migrações do Brasil colonial que eram masculinas, a fixação na terra nessa parte de Minas Gerais se fazia com mulheres e crianças. Criava-se rede de parentesco que interligava as propriedades em forma de “ilhas” de povoamento, núcleos mais ou menos isolados, dando traços peculiares à organização socioeconômica da região (BARBOSA, 2007, p. 62).

A oferta de solos agricultáveis no fundo dos vales, as pastagens naturais nos altiplanos e encostas da formação geológica, as expectativas de encontrar diamantes constituem os principais fatores de atração das terras próximas a Serra da Canastra, segundo Barbosa (2007). Contudo, de acordo com Lourenço (2005), a relação com as estradas era – e é provavelmente ainda hoje48 – fundamental por ser o único tipo de via que interligava a rede de

arraiais e permitia a prosperidade de centros mercantis como Piumhi, secundário de Formiga, bem localizado em

sumiam das comitivas nas viagens e iam juntar-se aos quilombos, os quais ocuparam a margem esquerda do rio São Francisco e suas nascentes. Outros povoados quilombolas também se estabeleceram ao sul e ao norte das serras da Canastra e Marcela e nas regiões mais próximas de Piumhi e Formiga, sendo dizimados pelas expedições de extermínio a mando das autoridades coloniais”. A destruição das sociedades anteriores inscreve-se como parte de um processo de expansão econômica, cultural, demográfica, tecnológica, biológica e microbiológica europeia (CINTRÃO, 2016). Logo, além do manejo do fogo e do sistema de pousio que podem ser uma apropriação das práticas indígenas, a influência e troca de conhecimentos e técnicas entre os colonizadores e aos povos presentes antes foi quase nula.

48 Segundo a EMATER-MG (2016, apud Simoncini 2017), o QMA sobreviveu às pressões da modernização dos processos de

produção, não só pelo apego às tradições, mas também pelo isolamento das propriedades produtoras, espalhadas pelas colinas e pelos vales do Estado. Isso contribuiu para que se preservassem produtos com características próprias e de imenso valor cultural e econômico. Por outro lado, a localização e o acesso às fazendas, especialmente as mais isoladas, pode representar um freio ao desenvolvimento muito importante, como veremos mais adiante.

relação à entrada da Serra. O desenvolvimento do comércio da região dependia, entretanto, diretamente de cidades do entorno como Araxá, Desemboque, Sacramento e principalmente Uberaba (SIMONCINI, 2017).

De acordo com o mesmo autor, a problemática de transporte entre as propriedades, arraiais e cidade maior, condicionou bastante a produção que se destinava então ao autoconsumo com a comercialização de pequeno excedente, como destaca Saint-Hilaire (1779-1853) nos anos 1850:

Os escassos habitantes dos arredores da Serra da Canastra, que parecem todos aparentados uns com os outros, cultivam a terra com suas próprias mãos, mas seus produtos não têm nenhuma saída.

Unicamente o gado que criam é capaz de lhes render algum dinheiro, mas ainda assim eles são obrigados a gastos consideráveis com o sal, cujo preço ali é exorbitante. Os negociantes de gado vão até aqueles longínquos recantos em busca de bois para comprar [...]. (SAINT-HILAIRE, 2004, p. 98, apud SIMONCINI, 2017, p.68).

Segundo Barbosa (2007), a década de 1930 marca alterações nessa dinâmica, devido à descoberta de diamantes nas margens do rio São Francisco, em Vargem Bonita, o que mudou o sistema produtivo do território. Além dos impactos ambientais causados pela mineração, a outra consequência dessa nova atividade foi o aumento da demanda por produtos agrícolas para abastecer a população mineradora crescente. Logo, camponeses e garimpeiros, atividades agrícolas e não agrícolas, interagiram e criaram relações sociais de dependência e reciprocidade pela exploração comum da região. A produção agropastoril assegurava o abastecimento de alimentos próprios e dos garimpeiros, a saber: leite, queijo, ovos, rapadura, mandioca, feijão, porco e galinha.

Com tal expansão de ambos os setores, contudo, houve uma pressão ecológica importante nos recursos – terra, água entre outros – que, mesmo que fortalecendo o sistema agropastoril tradicional, atingiu um limite com a substituição do garimpo manual pelo mecanizado, chamando a atenção dos movimentos ambientalistas (BARBOSA, 2007). Consequentemente, em 1972, a unidade de conservação do Parque Nacional da Serra da Canastra foi criada para preservar essa área de relevância ambiental e por motivos de segurança49, com consequência a desapropriação

das terras do chapadão, lugar que gozava na época de uma atividade econômica intensa, como descrito na parte seguinte. Entretanto, é somente em 1989, após anos de pressão por parte dos ambientalistas, que diversos garimpos em Minas Gerais foram fechados pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), inclusive o de Vargem Bonita (BRASIL, 2005). Essas mudanças profundas afetaram particularmente esse último município e o de São Roque de Minas, provocando uma queda nas atividades econômicas, em especial na pecuária.

O IBAMA (2005) reconhece que os eventos das cinco décadas passadas contribuíram para o aumento do êxodo rural, para a geração de conflitos e traumas nas populações desapropriadas e, mais ainda, as mudanças “levaram ao aprimoramento das técnicas pecuárias das fazendas da região, acarretando, entretanto, uma maior concentração de riqueza, pois só os fazendeiros mais capitalizados puderam implementar tais melhorias” (BRASIL, 2005, p. 27).

É neste quadro, entre desenvolvimento, apropriação e desapropriação do lugar, que se (des)construiu o território da Serra da Canastra, que se caracteriza hoje em dia por sua especialização como região produtora de leite e principalmente de queijo, na qual evoluem as dinâmicas de reprodução das famílias rurais que ali vivem.

49 De acordo com Bizerril et al. (2008, p. 50): “Na época em que o parque foi criado, em pleno regime militar, não se ouvia muito

falar em preocupação com a preservação ambiental. Ouvia-se nos bastidores da ditadura, que a razão principal para a criação do parque seria questão de segurança nacional. Considerava-se uma área de interesse especialmente por ser uma região de serras nas proximidades da usina de Furnas, que estaria supostamente ameaçada de sofrer represálias ao regime militar”.