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2. O TEMA E SEUS CONCEITOS:

2.2. E NFOQUE DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E DA M ULTIFUNCIONALIDADE DA

2.2.1. O território como unidade de observação dos produtos de origem

Antes de tudo, é preciso retomar as próprias palavras do acordo TRIPS sobre os direitos de propriedade intelectual que define ao nível mundial o conceito de IGs como:

(...) indicações que identifiquem um produto como originário do território de um Membro, ou região ou localidade deste território, quando determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto seja essencialmente atribuída à sua origem geográfica (OMC, 1994).

Da mesma forma que boa parte dos acordos nacionais referindo ao dispositivo, os acordos internacionais se referem ao vínculo entre o produto e seu território de origem. Consequentemente, esse último remete de certa forma a um processo temporal, histórico, implicando uma comunidade que age naquele espaço por meio de práticas e representações para criar seu produto (RAFFESTIN, 1980). A ideia de anterioridade, que permite chegar a “determinada qualidade, reputação ou outra característica do produto”, leva a assimilar o território como um espaço de referência cultural, portanto espaço que se qualifica pelo significado a ele atribuído por um dado grupo ou segmento social. Nessa ótica, o território inscreve-se no campo dos processos de identidade societária, na condição de referente de formas de consciência do espaço, de autoconsciência grupal interna (grupos que se identificam pela relação com um dado espaço) (MORAES, 2000) ou externa (no caso da reputação). A origem ancestral da palavra como figura administrativo-militar romana (territorium), em que se exerça um controle da soberania representa bem o objetivo da IG como dispositivo de proteção e controle sobre um produto in situ de seu território de nascimento, em relação à ameaça de fora – como a falsificação ou processo que tornariam o produto genérico.

Cazella et al. (2009) consideram o território como uma configuração mutável, provisória e inacabada que resulta do encontro e da mobilização dos atores que, por meio de relações de proximidade, procuram identificar e resolver problemas comuns. Neste conceito de território, o ator é então elemento chave, que o constrói por meio de suas dinâmicas, conforme Gumuchian et al (2003, p. 1), apresentam: “Le territoire est une scène ou se jouent des représentations en (plusieurs) actes; l’acteur y est donc omniprésent36”. Conforme Frayssignes (2005), o território representa então uma ferramenta de compreensão da realidade, em especial os vínculos entre a sociedade e seu espaço, no caso da geografia social. A adoção de um enfoque territorial procura também enxergar as articulações externas, mais amplas e heterogêneas, envolvidas nas redes de relações sociais dos atores, que no caso do rural não se limitam aos agricultores (NIEDERLE, 2009). Frayssignes (2005) enfatiza a pertinência da unidade para aprimorar as questões de atores e estratégias das organizações nas suas dimensões econômicas, socioculturais e ambientais.

Todavia, Cazella et al. (2009) apontam a dificuldade dos acadêmicos, profissionais do setor e dos gestores de políticas públicas em definir rigorosamente o conceito de território. Caracterizado por ser polissêmico, seus sentidos dependem do olhar disciplinar de quem dele se vale, como também da problemática política e social do contexto em questão. Cada problemática de intervenção pode gerar o seu território. Logo, nosso foco aqui não é tentar chegar numa definição completa do conceito, mas sim delimitá-lo para evidenciar o seu caráter construído,

36 “O território é um palco onde se jogam representações teatrais em (vários) atos, o ator é então onipresente” (Tradução do

amplamente reconhecido, que permite chegar às noções de ancoragem territorial e desenvolvimento territorial que orientam este trabalho.

No contexto da globalização e de suas abordagens macroeconômicas, revela-se a pertinência de uma resposta em escala local, como lugar efetivo de elaboração dos processos de desenvolvimento. Essa relevância do local não significa um localismo, ou bairrismo37, uma vez que existem outras esferas políticas que têm influência na

escala local. Contudo, o território aparece, cada vez mais, como uma entrada programática, inovadora e privilegiada para renovar a concepção do desenvolvimento, como sugerem Cazella et al. (2009). As delimitações geopolíticas muitas vezes não representam limites aos problemas ambientais, bem como socioeconômicos. Algumas vezes se encontram riquezas e pontos específicos justamente nos limites entre essas divisões sistemáticas. Essas áreas podem servir mais como fator de união do que de separação. Sendo assim, o âmbito territorial permite superar as limitações políticas locais para pensar as diversas questões de gestão, planejamento e busca pelo desenvolvimento nesta escala (MEDEIROS, 2015).

Logo, quando se discute o desenvolvimento, é preciso articular o conceito de território com uma atividade econômica que nele atua. Esse vínculo augura a natureza e a complexidade das ligações que existem entre um e outro, por um lado devido à reciprocidade dessas conexões e por outro às múltiplas dimensões dessa dinâmica. Desta forma, Frayssignes (2005) introduz o conceito de ancoragem territorial que reflete a relação entre espaço e os atores econômicos, definindo como:

(…) l'ensemble des liens réciproques qui unissent une activité économique (acteur, entreprise, filière…) avec un territoire. L'ancrage comme processus désigne donc à la foi l'action de "s'ancrer", qui relève d'une stratégie, et "d'être ancré", qui renvoie davantage à un constat38 (2005, p. 88).

Em outras palavras, o autor reconhece duas características à ancoragem territorial, que podem ser facilmente transferidas às IGs. Portanto, a ancoragem territorial é reivindicada como estratégia comercial de promoção do produto, e parte do constato da origem, comprovando o vínculo já fundado do lien au lieu (ligação ao lugar) que é fruto de um longo processo de ação coletiva para qualificar o produto. Em seguida, o conceito proporciona a ampliação do entendimento de uma filière – cadeia produtiva – além da sua dimensão vertical, pensada somente a partir das relações entre os atores desta. Assim sendo, é introduzida uma perspectiva horizontal que abrange o conjunto das dinâmicas que conduzem à construção do território e rompe com a setorialidade (ABRAMOVAY, 2006; FRAYSSIGNES, 2005). A ancoragem territorial de um grupo humano se desenvolve, então, a partir da evolução de sua cultura em um processo de adaptação a mudanças de contexto. As evoluções resultam de processos intencionais e não intencionais dos atores que a compõem. Essa dinâmica, por sua vez, transforma o território e, com ele, a ancoragem dos produtos (CHAMPREDONDE, 2012). De tal forma pode-se pensar as contribuições da IG na dinâmica de ancoragem do produto como estratégia no processo de ativação de recursos.

37 Esses conceitos marcam a defesa sistemática dos interesses locais, como abordaremos mais adiante no texto.

38 “(...) o conjunto dos vínculos recíprocos que unem uma atividade econômica (ator, empresas, cadeias produtivas...) com um

território. A ancoragem como processo designa então tanto a ação de “se ancorar”, fazendo parte de uma estratégia, e de “ser ancorado”, que remete mais a um constato” (Tradução do autor).