• Nenhum resultado encontrado

Multifuncionalidade da Agricultura na(s) realidade(s) brasileira(s) e sua relação com o território

2. O TEMA E SEUS CONCEITOS:

2.2. E NFOQUE DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E DA M ULTIFUNCIONALIDADE DA

2.2.5. Multifuncionalidade da Agricultura na(s) realidade(s) brasileira(s) e sua relação com o território

A partir das reflexões das partes anteriores, percebe-se que investigar a Indicação Geográfica como forma de agregar valor ao produto ou ainda como meio de aumentar a renda aos produtores, ou seja, somente pela aproximação econômica, seria discutível, pois resultaria uma simplificação analítica pouco interessante para a busca de soluções sistêmicas às situações específicas de cada território. De fato, em algumas circunstâncias o dispositivo revelou riscos potenciais de concentração de renda ou de exclusão social, incapaz, portanto, de cumprir sua função social. É preciso, então, discutir a importância da participação e persistência dos protagonistas endógenos nos movimentos de origem, assim como de sua relação com seu ambiente. Nesta ótica analítica, incrementa-se as discussões sobre estratégias para direcionar não somente o registro, como a continuidade do movimento e também o desenvolvimento do território (VELLOSO, 2008). Vendo as redes, convergências e ações conjuntas que levam a conquista de “club goods”, ou mesmo a revelar bens públicos, percebe-se que os fatores materiais tornam-se meios e não fins, uma vez que o crescimento que se deseja é aquele do homem, da sociedade e do território no qual vivem (ABRAMOVAY, 2003). Nesta lógica, julga-se relevante considerar as dinâmicas territoriais além da componente econômica para abranger a dimensão social, mas também cultural e ambiental igualmente fundamental, isto é, de forma a propor uma análise multidimensional.

De acordo com Cazella et al.(2009),a Multifuncionalidade da Agricultura (MFA) na realidade brasileira permite analisar os processos sociais agrários, enxergando dinâmicas e fatos sociais apagados pela visão focada na vertente econômica. Este “novo olhar” permite analisar as interações entre famílias rurais e territórios na dinâmica de reprodução social na sua integridade e não apenas sua dimensão econômica. A noção relaciona os agricultores com seus bens públicos43, a saber: o meio ambiente, a segurança alimentar e o patrimônio cultural (MALUF, 2002).

Historicamente, a década de 1990 marcou o início do debate que provocou o repensar dos processos de modernização da agricultura na Europa. Paralelamente, à emergência do conceito de Multifuncionalidade da Agricultura (MFA) representa uma forma de lidar com os desafios da atividade agrícola e do meio rural. Essa discussão emerge da crítica contra a Revolução Verde, que por meio de avanços tecnológicos importantes, proporcionou um ganho de rendimento agrícola significativo, mas trouxe consigo uma série de externalidades e consequências amplamente criticáveis dos pontos de vista econômico, social e ambiental. Se é verdade que a modernização garantiu a segurança alimentar interna dos países europeus após a segunda guerra mundial e, mais ainda, ofereceu uma posição competitiva e vantajosa no mercado internacional, vários efeitos nefastos podem ser considerados neste processo, conforme postularam Carneiro e Maluf (2003). Os impactos, elencados por estes autores, atingiram dimensões econômica (superprodução), sociocultural (redução dos agricultores e identidades agrícolas necessários à consecução de metas além de produtivas e a expansão de espaços socialmente esvaziados) e ambiental (profundo desgaste dos recursos naturais).

A conferência Rio-92 foi ponto de partida da consagração do conceito de Desenvolvimento Sustentável (DS), na medida em que buscou responder ao fracasso socioambiental, especialmente no caso da agricultura e do meio rural. Em outras palavras, a Eco 92 trouxe o reconhecimento, pela sociedade e pelos governos, do interesse público sobre as funções sociais, ambientais, culturais e econômicas não diretamente produtivas ou mercantis, associadas à agricultura (GAVIOLI; COSTA, 2011). Logo, surgiu a necessidade de repensar modelos de desenvolvimento agrários para além da visão puramente produtiva, para limitar as externalidades negativas da agricultura e para reconhecer e alcançar outras funções.

Após vinte cinco anos de uso excessivo, verifica-se o esvaziamento do conceito de DS, assim como o de outras noções associadas. Desta forma, torna-se pertinente reconsiderar esses termos a partir de seus objetivos iniciais e de suas aplicações concretas no contexto atual. Nessa perspectiva, propõe-se repensar a multifuncionalidade como uma abordagem importante para alcançar objetivos em favor da sustentabilidade no desenvolvimento da agricultura e de seus territórios. Tal proposta já foi amplamente explorada na Europa e, especialmente na França, onde surgiu o conceito44.

43 Na economia, bens públicos são aqueles não rivais e não excludentes.

44 Segundo Carneiro; Maluf (2003), a noção de MFA emergiu com uma ótica voltada para a aplicação nas políticas públicas. Os

franceses adotaram medidas originais e inovadoras, as primeiras as Medidas AgroAmbientais (MAAs, 1992) assim como a Lei de Orientação Agrícola de 1999 que criou os Contratos Territoriais de Estabelecimento (CTEs) inscrevem-se nessa perspectiva. Tais políticas públicas foram desenvolvidas a partir da forte atuação dos agricultores combinada às crescentes demandas da sociedade, que associa o rural e as práticas agrícolas a certa qualidade, tanto do quadro de vida (paisagística, proteção dos recursos, dinâmica econômico-social do espaço rural, etc.) como dos produtos alimentares. De acordo com Menadier (2012), a partir dos anos 90, as pressões internacionais vindas da Organização Mundial do Comércio (OMC) exigiam a eliminação dos subsídios vinculados à produção em favor da liberação dos intercâmbios e da concorrência. Tal exigência obrigou o poder público a elaborar uma via indireta de auxilio à agricultura (CARNEIRO; MALUF, 2003). Nesta perspectiva, a MFA reposiciona a atividade agrícola como peça chave da problemática do DS e, desta forma, permite reajustar políticas agrícolas específicas no tocante das “transferências sociais de benefícios aos agricultores” (Ibidem, p.18). Porém, tal raciocínio enfatiza duas visões segundo Polanyi (2008), a saber, a criação de distorções a respeito do funcionamento do mercado, o que impede a lealdade da concorrência, entretanto, por outro lado, o funcionamento puro do mercado proíbe a remuneração das funções não mercantis e torna, portanto, o alcanço impossível. Nesse sentido, é difícil acreditar no alcance de uma agricultura multifuncional por meio de políticas públicas diretas de transferência social sob a forma de subsídios, por exemplo, em meio a cenários de crises políticas como a vivida no Brasil

De acordo com Moruzzi Marques e Flexor (2008), o reconhecimento da noção de MFA reflete duas ordens de fatores em cena no debate internacional. De um lado, a multifuncionalidade da agricultura é concebida como um conjunto de ideias capaz de reorientar as políticas agrícolas e a agricultura em direção a outro modelo de desenvolvimento, chamado enfoque normativo pelos autores. De acordo com Laurent (2000), tal associação revela uma estratégia para refundar as relações entre os campos econômico, sociocultural e ecológico, numa tentativa de aproximação com a ideia de desenvolvimento sustentável. Por outro lado, a noção é entendida como um referencial analítico para se redefinir as externalidades associadas à prática agrícola, no chamado enfoque positivo. Nesta perspectiva, à qual nos filiamos, a MFA é entendida como uma estratégia econômica que considera a agricultura como geradora de externalidades positivas (produtos não comerciais) mercantilizáveis e negativas (degradação ambiental), o que leva à busca do equilibro entre estas (MALUF, 2002).

Nosso enfoque aqui reside na aplicação da noção de MFA no contexto sócio-histórico atual do Brasil com o propósito de extrair implicações analíticas, na ótica de uma abordagem territorial e multidimensional. A relação entre MFA e território é claramente descrita por Cazella et al. (2009), considerando o segundo como unidade privilegiada de expressão do primeiro. Com respeito ao desenvolvimento territorial:

(...) trata-se de um processo multidimensional (econômico, ambiental, social e cultural) que não corresponde a uma realidade administrativa nem a um setor específico da economia. Os perímetros do desenvolvimento não são as zonas administrativas e pressupõem a mobilização de múltiplos atores – essa perspectiva é condição indispensável diante da força de concentração espacial de recursos diversos exercida pela dinâmica de globalização da economia. Abordá-lo com o “olhar” da multifuncionalidade da agricultura ajuda a perceber outros papéis da agricultura nas ações de políticas territoriais (CAZELLA; BONNAL; MALUF, 2009, p. 63).

Todavia, o uso do conceito de MFA no caso brasileiro revela-se difícil e necessita ajustes, uma vez que a formulação da noção amplamente enraizada na experiência europeia não pode ser simplesmente copiada para o contexto brasileiro (MALUF, 2003). Mais ainda, é preciso considerar as diferentes realidades rurais e agrícolas do país. O trabalho de Maluf (2003) constitui o principal referencial para pensar a MFA no contexto brasileiro, já que ele consegue propor um conjunto de funções específicas cuja aplicação e articulação seriam variáveis. A ênfase é colocada em quatro expressões da MFA no contexto brasileiro, a saber: 1) reprodução socioeconômica das famílias rurais; 2) promoção da segurança alimentar das próprias famílias rurais e da sociedade; 3) manutenção do tecido social e cultural; 4) preservação dos recursos e da paisagem.

De acordo com Maluf (2003), a função 1) diz respeito à geração de trabalho e renda pela atividade agrícola própria, que permita às famílias se manterem no campo em condições dignas, considerando também a pluriatividade – agrícola ou não – e as tendências a diversificação ou especialização das produções agrícolas. A noção de 2) segurança alimentar abrange dois sentidos usuais, uma vez que diz respeito ao acesso a produtos alimentares suficientes e de qualidade tanto pelas famílias rurais quanto para o provimento do resto da sociedade. Além disso, a dimensão 3) considera as contribuições da agricultura para as dinâmicas de reprodução social e as formas de sociabilidade das populações rurais, em sua integridade, e não apenas econômicas. Nessa perspectiva, a construção das identidades sociais e culturais, a participação dos atores locais na formulação de políticas, a limitação do êxodo rural e a “instalação” de jovens agricultores são elementos para compreensão desses processos (MALUF, 2002).

atualmente ou quando há tendências mercadológicas mundiais, como as citadas anteriormente. Parece mais promissor o Estado dispor de vias indiretas de apoio, por exemplo, através do auxílio a iniciativas que promovam modelos e práticas agrícolas alternativas, com certo potencial multifuncional (agricultura orgânica, comércio justo, produção de origem, entre outros).

Segundo Maluf (2003) a última dimensão identificada 4) abrange a preservação e uso sustentável dos recursos naturais por um lado, e a preservação ou recuperação da paisagem (natural e rural) por outro45.

No contexto brasileiro, Carneiro; Maluf (2003) salientam a pertinência do uso da MFA para fomentar o papel da Agricultura Familiar (AF). De acordo com Cazella et al. (2009), o enfoque da MFA remete a quatro níveis de análise: (i) as famílias rurais, (ii) o território, (iii) a sociedade, (iv) as políticas públicas. A incorporação da dimensão territorial demanda investigar a percepção sobre as referidas funções e a correspondente atuação dos atores e redes sociais em carga da construção do território. Na análise, a unidade de observação deixa de ser a unidade produtiva agrícola e passa a ser a unidade familiar rural, em seu conjunto, com suas características socioeconômicas, culturais e ambientais próprias ao território no qual elas vivem.

A noção de MFA estabelece uma ponte entre a atividade agrícola e o território, ao levar em conta a articulação da agricultura com o desenvolvimento territorial – relações entre agricultores e outros atores locais (MALUF, 2002). Nesse sentido, trata-se de um instrumento analítico que permite superar um conjunto de dualidades compartilhadas com a abordagem territorial, a saber: “a principal delas, desenvolvimento territorial x desenvolvimento agrícola, até outras, como meio ambiente x agricultura, rural x urbano, produção x serviços” de acordo com Cazella et al (2009, p. 63). Sob essa ótica, designam-se os efeitos simultâneos e diferenciados de uma atividade produtiva (no caso a agricultura) para além de suas funções primárias, geralmente econômicas. No âmbito de um sistema de atividades territorializado, a agricultura aparece como atividade central e polissêmica – com múltiplos significados e funções que pode ter para as famílias rurais (GAVIOLI; COSTA, 2011). A partir da definição destes sistemas territoriais – um só no caso de um estudo de caso – se observa e analisa as múltiplas funções associadas à agricultura, o que permite ampliar a abordagem do desenvolvimento territorial às demais dimensões, proporcionando dessa forma um olhar horizontal e global.