• Nenhum resultado encontrado

3. CONTEXTO DA PESQUISA

3.1. O C ANASTREIRO E O Q UEIJO

3.1.2. Terroir do diamante

De tal base agropecuária diversificada e de agricultura de subsistência, produzindo gêneros alimentares tais como porco, milho e posteriormente café, emerge a pecuária leiteira. A partir desta última, nascerá o processo de produção do queijo enquanto forma de utilização do leite, o qual era difícil de ser escoado dos sítios devido, entre outros problemas às distâncias e estradas precárias. O queijo Canastra é então resultante do encontro e da adaptação entre fatores naturais, o terroir da região, e fatores humanos50.

A Canastra é uma região emblemática de Minas Gerais por abrigar as nascentes do rio São Francisco. Seu nome vem da escarpa rochosa que domina a paisagem, semelhante a um baú, uma caixa de madeira ou cesta outrora usada para guardar roupas e objetos. As áreas altas e planas dividem as águas de bacias hidrográficas com expressão continental, a saber: aquela do Rio Grande que se junta ao Rio Paraná e o Rio São Francisco51. Muitas propriedades

coletam água por gravidade em nascentes na própria área ou em propriedades vizinhas. A qualidade das águas da região é considerada como uma das principais características do terroir do queijo (CINTRÃO, 2016).

Segundo Almeida; Fernandes (2004), a altitude da região varia de 635m a 1 485m, compreendendo 25% de área plana, 40 % de área ondulada e 35 % de área montanhosa. O relevo é constituído de chapadões de altitude, o que permite o aparecimento de inúmeras nascentes e cachoeiras. Vale ressaltar que a intensificação da produção parece difícil em tais condições. Porém, o meio físico-ambiental na região é favorável à produção de queijo. A região caracteriza-se por possuir uma variação acentuada de tipos de solos, dependendo dos limites geográficos. O clima caracterizado na área delimitada é classificado como tropical de altitude, típico do cerrado, com temperatura média anual em torno de 22,2ºC e com duas estações marcantes: as “águas”, que começa em meados de outubro e se entende até março; e a “seca”, o restante do ano, conforme figura 15 (INHAN MATOS, 2016).

50 De acordo com Cintrão (2016), pode-se definir uma grande região produtora de queijos “a Oeste das minas” – retomando a

expressão de Lourenço (2005) – que inclui quatro das sete microrregiões oficialmente reconhecidas (ver figura 3), a saber: Canastra, Araxá, Serra do Salitre/Cerrado/Alto Paranaíba, contando com um terço do total dos produtores do Estado de Minas Gerais. A autora (Ibidem) reconhece que há possíveis variações no terroir entre as microrregiões produtoras, que as disputas em torno da caracterização dos queijos vêm redesenhando. Por outro lado, pode-se dizer que há um conjunto de características culturais, sociais e econômicas semelhantes, em especial no modo de fazer os queijos.

51 A região abriga as duas nascentes do rio São Francisco: a primeira histórica, protegida pelo PNSC, e a segunda geográfica, no

Figura 15. As duas estações na Canastra, no município da Vargem Bonita: 1) as águas e; 2) a seca.

15. Fonte: fotos do autor em 1) Janeiro 2019; 2) Outubro de 2017.

Além das áreas de campos de altitude e de algumas manchas de Mata Atlântica, o bioma Cerrado predomina. Ainda segundo a mesma autora (Ibidem), a Serra da Canastra possui exuberante flora e variadas espécies de animais silvestres. Pode se acrescentar micro-organismos, responsáveis pelas características especiais do queijo Canastra. Além disso, a vegetação original é formada de campos e cerrados. A vegetação de tipo florestal se encontra somente junto aos cursos de água e solos mais ricos e profundos. Este ambiente é propício ao desenvolvimento de bactérias típicas que dão o sabor característico do queijo da Canastra (ALMEIDA; FERNANDES, 2004).

É neste conjunto de características, a partir de elementos históricos e físicos que formam o terroir da Canastra, que foi baseado a delimitação da área de produção do queijo realizada pela EMATER, conforme mapa (figura 16) apresentado no Regulamento de Uso (RU) para o pedido de Indicação Geográfica. Em seguida, a delimitação da microrregião da Canastra reconhecida junto ao INPI seguiu certa lógica de abrangência que envolveu a negociação política com os atores dos diferentes municípios.

Base do queijo Canastra: São Roque, tá. A onde que faz igual? Chegamos em Vargem Bonita, o processo era semelhante. No caminho de Piumhi tinha produtores na divisa de Vargem Bonita e São Roque que faziam queijos semelhantes a aqui. Mas a medida que você ia aproximando da sede da cidade o processo mudava pra outros tipos de queijo.

Mas como você tinha um grupo de vizinhança pra cá tava dentro do município de Piumhi e que fazia queijo artesanal de leite cru, isso permitiu que o município entrasse, e a gente não podia excluir (...). A mesma coisa em Bambuí. Tinham alguns poucos, mas não podia excluir (...). Então assim, nesse estudo [que levou a criação do mapa da figura 16] se você pega Sacramento, o queijo lá é muito mais semelhante ao queijo daqui, mas tá dentro da região de Araxá, porque a região de Araxá foi feito primeiro e não fomos nós que fizemos (...). Então nós perdemos esses municípios de Campo Alto, de Sacramento (...). Delfinópolis foi depois, é mais baixo, mas você tem a Serra da Babilônia, por aí que foi cadastrado pela produção na Babilônia, não lá em baixo, entendeu? Mas não podia se separar, ou você colocava ou município inteiro, ou você não colocava o município (...). Mas você imagina a questão política que isso ia enfrentar se você não colocava o município. Então opto pra colocar o município todo (Entrevista A1).

Essa definição resulta, portanto, de um processo de negociação entre os atores envolvidos, ou não, na rede, marcado pela discussão sobre a relevância de uso dos limites político-administrativos ou ecológicos (GUILLIERME, 2007). De fato, São João Batista do Glória possui fatores naturais (clima, relevo, altitude) mais favoráveis do que Piumhi ou Bambuí para a produção, porém foi excluído inicialmente da zona delimitada de Indicação Geográfica.

Em São João [Batista do Glória] as condições são semelhantes pra produção de queijo, a pastagem água, esse trem tudo (...). E aí através de uma lei, ela foi introduzida na microrregião, agora são 8. E eles estão fazendo um estudo para Córrego Danta, pediu pra ver se... mas já é mais longe da Serra da Canastra, não sei se tem as condições (...). Estão querendo (...). Bambuí mesmo, se você for pegar Bambuí a região toda, o único lugar que faz queijo Canastra, que o queijo fica bom, é na divisa perto de São Roque (...). Tapiraí é a divisa com Medeiros (...), pra lá, já não fica, não produz, produz mas o queijo fica completamente diferente, esquisito, não faz queijo, mais é leite pra laticínio. Então Córrego Danta que é mais pra lá ainda... Piumhi antes queriam chegar até em Formiga, não tem jeito. Daqui a pouco chega não sei a onde, lá em Lavras, tem que ter o bom senso (Entrevista A2).

Por outro lado, a APROCAN tem até 2020 para fazer este tipo de ajustes antes da fixação definitiva das características. De acordo com a APROCAN, tem que ter certo controle por parte da associação:

(...) não é só querer, pegar EPAMIG [Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais] igual Córrego Danta fez, fazer o mapeamento ali e achar que tá dentro. Tem que ter a autorização da APROCAN, porque a marca que tá registrada do INPI é APROCAN que fez toda a parte burocrática (...).Daqui a pouco esses pedacinhos vão se estender até chegar em São Paulo. Foi o que te falei, chegou a EMATER, questão política óbvio, fez o mapeamento que só Deus sabe, com GPS igual a gente brinca, e pensa que tá dentro, que pode. Mas não é assim, não é dessa forma que funciona. Córrego Danta não, e nem entra no mapeamento original (Entrevista A7).

Segundo Shiki; Wilkinson (2016), tal incerteza pode fragilizar o mercado da IG, pois torna menos credível a garantia do terroir do produto. Além disso, ao verem a atuação da rede e os resultados alcançados, outros municípios estão seduzidos a entrar, pressionando politicamente para isso. Agora, mesmo sendo incluídos, o tamanho do território, as diferenças culturais e as dificuldades de integração resultantes podem enfraquecer a união em construção em torno da associação regional como discutiremos.

Figura 16. Mapa da Região do Queijo Canastra delimitando a área de produção a partir das características do terroir apresentado

no Regulamento de Uso para pedido de registro junto ao INPI (2007)

16 Fonte: Regulamento de Uso (CONSELHO REGULADOR, 2012); Autor Moacir Mello Salles, Lucas Moreira Campos (Agrifert, 2007)

Conforme a figura 17, um dos traços interessantes da moldagem e aclimatação dos fatores humanos de produção ao meio ambiente é o sistema de estiagem (ou pecuária de invernada) e manejo de pastagem tradicional nas serras, que terminou com a criação do PNSC52. Essa prática pode ser relacionada com a cultura da transumância que

ocorre para a fabricação do queijo da Serra da Estrela (Portugal), como salientado por Simoncini (2017), mas também em outras regiões montanhosas do mundo53. De acordo com Barbosa (2007), a antiga comunhão entre o

ambiente e o sistema de produção acontecia, entre outras formas, da maneira seguinte:

[...] nos meses de maior pluviosidade – de novembro a março – pastava nas terras baixas, próximas às encostas das serras. No período de estiagem – de maio a setembro –, por sua vez, os animais eram levados às terras altas dos chapadões. A queima do pasto antecedia a subida do rebanho54. Os campos queimados e naturalmente recuperados ficavam

52 Esse sistema de produção era praticado nos municípios próximos aos Chapadões (da Canastra e da Babilônia, sobretudo), a

saber: São Roque de Minas, Vargem Bonita e Delfinópolis particularmente.

53 Nesse sentido, controvérsias são discutidas sobre as origens do queijo. Por alguns como Meneses (2006), o QMA tem suas

raízes na imigração portuguesa, cujo modo de fazer é especifico da Serra da Estrela, onde se usa o leite cru de ovelhas coagulado pela flor do cardo. Enquanto outros como Elmer Luiz Ferreira de Almeida, da EMATER-MG, citado no Dossiê Queijo de Minas do IPHAN (2014) e Netto (2014, p. 407) não duvidam que “a origem do Queijo Minas Artesanal esteja nos Açores”. Uma visão mais consensual aponta que mesmo que a história começou na Serra da Estrela, outros portugueses teriam influenciado a fabricação do QMA, entre eles os açorianos que chegaram por volta de 1789, incentivados a formar outro tipo de colonização pela Coroa Portuguesa, de gente que queria se estabelecer no Brasil. Os açorianos chegavam geralmente em família, dispostos a recomeçar a vida em outras terras, trazendo com eles a agropecuária, base da economia dessas ilhas de colonização holandesa, onde também se fabricava queijo (QUEIJO ARAXÁ, 2016).

54 Segundo Cintrão e Dupin (2018): “demonstram que o manejo do fogo possui elementos de sofisticação, envolvendo toda uma

ciência e um conhecimento do ambiente”, cujas técnicas da queima são descritas no mesmo artigo. Conforme entrevista com produtor: “eles [os antigos] faziam queimas controladas. Por mais que eram todo rústico, muitos anos a trás não tinha muita tecnologia mas eles tinham conhecimento de vivência né. Então eles conseguiam fazer queimada controlada de forma que não prejudicava o meio ambiente. E a própria pastagem, como é escalonada, eles faziam isso por estalões. Por exemplo, o fazendeiro que tinha 100 hectares de terra, ele não queimava toda a fazenda de uma vez só (...). Isso desde sempre, para não degradar os solos. Os produtores aqui já tinham essa consciência dessas queimadas não atingir as nascentes. Eles cercavam, eles faziam contra- fogo, de forma que ele não chegava nas nascentes (...). Meu avó era um desses produtores que faziam essa migração, essa viagem, na época da seca (...) (Produtor de São Roque de Minas, Novembro de 2017)”.

cobertos com relva verde, de grande valor nutricional. Essas áreas eram estratégicas para o sistema socioprodutivo camponês, pois além de garantir o alimento para os bovinos, economizava mão de obra e evitava a concorrência da pecuária com a agricultura sobre os solos agricultáveis (BARBOSA, 2007, p. 55).

Figura 17. O ciclo das estações

1) A seca no altiplano dos chapadões, nos currais de pedra (Curral de Pedra no PNSC, utilizado para manejar o gado, onde se faz atualmente queimada controlada para protegê-lo) e 2) as águas no vale na sede principal, no pé do paredão da Canastra que delimita o chapadão do mesmo nome (Sítio em São José do Barreiro, município de São Roque de Minas)

17. Fonte: fotos do autor em 1) Outubro de 2017 e 2) novembro 2016

Segundo Cintrão e Dupin (2018), a legalização ambiental, assim como a sanitária – que será discutida mais adiante – desencadearam processos de ilegalização de práticas socialmente compartilhadas pela população do lugar que, desde a colonização da região, convivia com o ambiente em sistema agropastoril que operava em sintonia com a natureza, mas que passa a receber multas e restrições, tornando mais difícil sua condição de vida. É preciso acrescentar que essas alterações legislativas causaram a não inclusão no Regulamento de Uso deste sistema de transumância tradicional em torno do queijo Canastra, que então não foi reconhecido e protegido junto ao INPI.

Todavia, ainda existem raros produtores “raízes” que têm perpetuado a estivagem em áreas não regulamentadas do PNSC e que enfrentam uma série de ameaças55.

Assim, as especificidades naturais do lugar, como a topografia, o clima, a geologia, a vegetação, entre outros, que compõem o terroir da Canastra, combinados a certo contexto socioeconômico e cultural, levaram a adotar práticas peculiares e adaptadas ao ambiente. Atualmente, essas práticas vêm sendo questionadas e substituídas e com isto parte destes conhecimentos está sendo perdido ao longo dos anos, aqueles mesmos que deram origem e singularidade à tradição produtiva do Queijo Canastra e que permitiram durante anos a reprodução socioeconômica das famílias.