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Gene-P e Gene-D: uma análise conceitual do gene

Diante da crise do conceito de gene, Moss (2001, 2003a, 2003b) não propôs uma reformulação, mas realizou uma análise conceitual que levou a uma distinção

10 Hoje formularíamos essa interpretação situando os genes, como signos potenciais, no RNA, e não no DNA (ver adiante).

entre dois significados atribuídos a esse conceito. Ele distinguiu, assim, entre ge- nes-P e genes-D, buscando diferenciar claramente duas maneiras de entender os genes que, segundo sua análise, foram frequentemente confundidas ao longo do século XX.

O gene-P corresponde ao gene como determinante de fenótipos ou dife- renças fenotípicas. Como escreve Moss (2003a, p. 45): “Genes para fenótipos, i.e. Genes-P, podem ser encontrados, em geral […] quando algum desvio de uma sequ- ência normal resulta em alguma previsibilidade numa diferença fenotípica.”

Trata-se da “[…] expressão de um tipo de preformacionismo instrumental”. (MOSS, 2001, p. 87) O gene-P é, pois, um conceito instrumental, que não é acom- panhado por uma hipótese de correspondência com a realidade. É esta natureza instrumental que torna aceitável a suposição simplificadora de um determinismo preformacionista, ou seja, de um mapeamento simples entre genótipo e fenótipo, como se o traço já estivesse de algum modo contido no gene, ainda que somente em potência. Esse é um conceito útil para algumas tarefas relevantes na Genética, como as análises de heredogramas ou a realização de melhoramento genético por métodos controlados de cruzamento.

O gene-P está associado a uma expressão usada com muita frequência na Genética, “gene para” (gene for) (KENDLER, 2005), em enunciados com a forma “X é um gene para Y”, em que X corresponde a um gene particular no genoma e Y, a uma característica ou, no caso humano, com frequência, a alguma desordem es- tudada pela Genética Humana ou Médica. Além de seu largo uso na ciência, é co- mum encontrarmos esses enunciados na mídia e na sociedade em geral, inclusive em relação a características de grande complexidade, como a orientação sexual, a criminalidade ou a inteligência. Quando usados sem o devido cuidado, eles veicu- lam o mais flagrante determinismo genético, comportando visões simplistas sobre aspectos comportamentais e sociais que não podem ser tratados somente de uma perspectiva biológica. (LEVINS; LEWONTIN, 1985; LEWONTIN; ROSE; KAMIN, 1984) O uso inadequado de tais enunciados se tornou tão frequente na mídia e opinião pública que não passou despercebido.

Quando falamos sobre “genes para olhos azuis”, por exemplo, estamos nos referindo a genes-P, a genes como se determinassem a característica “olhos azuis”. Há muitos casos, contudo, nos quais o “gene para” a característica não tem corres- pondente material. Este é o caso, por exemplo, quando a característica resulta de toda uma série de alelos que afeta o funcionamento dos processos bioquímicos

envolvidos em seu desenvolvimento. No exemplo dos olhos azuis, alelos em vá- rios loci gênicos distintos podem resultar numa diminuição da pigmentação da íris, através de diferentes efeitos deletérios sobre os processos bioquímicos que conduzem a tal pigmentação. Assim, o “gene para cor dos olhos azuis” correspon- de a uma disjunção de alelos responsáveis pela diminuição da pigmentação da íris (G1vG2vG3v, ..., Gn), e essa disjunção é uma expressão lógica, não uma entidade ma- terial à qual possamos dizer que um conceito se refira. Isso não nega, no entanto, a utilidade do conceito de gene-P: para explicar e prever os resultados de um cruza- mento entre um pai de olhos castanhos e uma mãe de olhos azuis, é possível usar de modo proveitoso a análise de heredogramas, acompanhada da simplificação apropriada (no contexto dessa análise) de que haveria um alelo que determinaria, por si só, a presença de olhos azuis. Por essa razão, podemos dizer que o gene-P é uma ficção útil, um conceito que tem poder explanatório e preditivo em alguns modelos e procedimentos importantes na Genética, mas, não obstante, é um con- ceito instrumental, ao qual não devemos somar uma hipótese de correspondência a uma entidade real nos sistemas vivos que determinaria, por si só, características fenotípicas. Dentro desses limites, não há qualquer problema em falar num gene para uma característica. O problema é que esses limites de aplicabilidade do gene- -P frequentemente não são considerados.

O gene-D, por sua vez, corresponde ao gene como um recurso desenvol- vimental, que é tão importante, de acordo com o princípio da paridade cau- sal (GRIFFITHS; KNIGHT, 1998), quanto outras causas do desenvolvimento, a exemplo dos fatores epigenéticos e ambientais.11 Ele é tipicamente concebido no

discurso científico de uma maneira realista, como uma entidade material definida por alguma sequência molecular no DNA que age como uma unidade de transcri- ção, fornecendo moldes moleculares para a síntese de produtos gênicos. Ou seja, genes-D são usualmente entendidos nos termos do conceito molecular clássico. O que é mais importante para o presente argumento, contudo, é o fato de que ge- nes-D – tipicamente – não determinam características fenotípicas por si mesmos, como deixa claro o princípio da paridade.

A importância de distinguir claramente entre gene-P e gene-D segue do argumento de que, embora seja útil pensar nos genes dessas duas maneiras, a

11 É importante deixar claro que a distinção entre gene-P e gene-D não é idêntica à distinção entre gene clássico e gene molecular. Entidades moleculares podem ser tratadas como genes-P, como ocorre quando nos referimos, por exemplo, ao gene para fibrose cística. (MOSS, 2001, 2003a)

confusão entre esses dois conceitos de gene nada produz de bom. (MOSS, 2001) Gene-P e gene-D são conceitos distintos, com diferentes domínios de aplicação, em diferentes jogos explanatórios da ciência. A confusão entre eles tem consequ- ências sociopolíticas importantes, por ser uma das principais fontes do determi- nismo genético, cujas implicações ideológicas na arena social e política têm sido apontadas há um longo tempo. (LEVINS; LEWONTIN, 1985; LEWONTIN, 1983; LEWONTIN; ROSE; KAMIN, 1984)

Análises de livros didáticos de Biologia do ensino médio mostram como essa confusão tem lugar e quais suas consequências. (GERICKE et al. 2014; SANTOS; EL-HANI, 2009; SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012) Em livros didáticos de seis diferentes países (Brasil, Suécia, Austrália, Canadá, Estados Unidos e Grã- Bretanha), o uso do conceito de gene-P era bastante comum, mas, mais do que isso, ao longo dos livros ele era usado em combinação com o conceito molecular clássico, sem qualquer referência aos contextos de aplicação e às limitações des- ses distintos modos de conceitualizar genes. A natureza de um uso válido e ade- quado da ideia de genes para características dificilmente se mostra de modo claro no discurso dos livros didáticos. Uma das razões reside na ausência de um trata- mento histórica e epistemologicamente informado dos genes, nem mesmo com o objetivo modesto de ensinar com modelos científicos e sobre modelos científicos.

Nesses livros, um padrão muito comum consiste em tratar do papel dos genes como unidades de herança, no domínio da Genética clássica e nos termos do modelo mendeliano, e então avançar na direção de um tratamento molecular dos genes, geralmente alinhado com o conceito molecular clássico. Desse modo, usualmente os estudantes aprendem sobre genes como determinantes de fenóti- pos ao aprender e resolver exercícios sobre heredogramas, sem qualquer pista de que estejam lidando com um modelo específico, com suposições simplificadoras da relação genótipo-fenótipo que somente podem ser aceitas no domínio de apli- cação daquele modelo. À medida que o discurso dos livros didáticos sobre genes se desenvolve, eles são localizados no DNA como unidades estruturais e funcio- nais. Assim, a propriedade de ser um determinante de fenótipos é simplesmente transferida do conceito de gene-P para o conceito molecular clássico. O cenário está pronto para a educação de deterministas genéticos: o uso da mesma palavra, “gene”, sem qualquer discussão do papel de modelos na ciência, com seus contex- tos específicos de aplicação, e sem qualquer menção a modelos de função gênica, conduz à confusão entre gene-P e gene-D.

Esse é um problema muito relevante no ensino de Genética, que é uma das fontes do determinismo genético tão comum no discurso popular sobre genes e, inclusive, nos próprios livros didáticos. (ABROUGUI; CLÉMENT, 1996; CÁSTERA et al., 2008; CONDIT; OFULUE; SHEEDY, 1998; CONDIT et al., 2001; FORISSIER; CLÉMENT, 2003; GERICKE; HAGBERG, 2010a, 2010b; GERICKE et al., 2014; KELLER, 2002; NELKIN; LINDEE, 1995; SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012) Numa análise dos diferentes significados do conceito de gene em jornais britâni- cos e noruegueses entre 2003 e 2006, Carver, Waldahl e Breivik (2008, p. 946) verificaram que o significado determinista era “[...] o mais sucinto e sensacional”, sendo “comumente encontrados em reportagens ao estilo tabloide”. À medida que a aprendizagem sobre genes se torna profundamente contaminada com uma vi- são determinista genética, estudantes têm menor probabilidade de desenvolver uma visão crítica de questões sociocientíficas relacionadas à genética (SADLER; ZEIDLER, 2004, 2005; SADLER, 2011) ou de se tornarem capazes de decisões socialmente responsáveis (SANTOS; MORTIMER, 2001) em situações que envol- vem conhecimentos sobre genes e suas funções em sistemas vivos. Como Nelkin e Lindee (1995, p. 197) discutem:

Os achados da ciência da Genética – sobre comportamento humano, doenças, personalidade e inteligência – se tornaram um recurso popular precisamente porque se conformam a, e complementam crenças culturais existentes sobre identida- de, família, gênero e raça [...] o desejo de previsão, a necessi- dade de fronteiras sociais e a esperança de controle do futuro humano [...] Se tais proposições são de fato consistentes ou não pode ser irrelevante; seu apelo público e apropriação po- pular refletem seu poder social, e não científico.

A Genética é conectada com questões sociocientíficas de central importân- cia, como a clonagem, a pesquisa com células-tronco, os organismos geneticamen- te modificados, a engenharia genética, o uso de testes genéticos na sociedade, a eugenia e a reprogenética. Sadler e Zeidler (2005) verificaram que os padrões de raciocínio dos estudantes sobre questões sociocientíficas relacionadas à engenha- ria genética são influenciados por seus conhecimentos de Genética. Isso mostra a importância de que aprendam sobre genes de uma maneira apropriada, para sua vida futura não somente como estudantes, mas como cidadãos que precisam es- tar informados por uma compreensão científica consistente sobre o assunto para

participar ativa e plenamente das tomadas de decisão democráticas. Esta compre- ensão consistente não será alcançada se confusões como esta entre gene-P e gene- -D não forem sanadas no ensino de Genética.

Devemos considerar, por fim, que o trabalho de Moss tem sido alvo de críti- cas importantes, como a que encontramos, por exemplo, em Knight (2007). Meyer, Bomfim e El-Hani (2013) discutem essas críticas em detalhe e concluem que, apesar delas, a distinção entre gene-P e gene-D ainda tem um papel relevante a desempe- nhar na pesquisa biológica e na educação científica, como argumentamos acima. Cientistas podem ter dificuldade em lidar com a confusão entre gene-P e gene-D, como mostra, por exemplo, sua presença em livros escritos por cientistas, seja para o ensino médio (AMABIS; MARTHO, 2005; FROTA-PESSOA, 2005; SANTOS; El-HANI, 2009; SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012), seja para o ensino superior (ALBERTS et al., 2002; LODISH et al., 2003;a este respeito ver PITOMBO; ALMEIDA; EL-HANI, 2008a, 2008b). Logo, o que dizer de estudantes, professores e outros cidadãos com muito menos experiência em lidar com a natureza complexa e sutil dos modelos e con- ceitos da Genética? É pertinente, pois, fazer uso da distinção entre gene-P e gene-D, como proposta por Moss, nas práticas da ciência e na educação científica, ainda que com ressalvas que seguem de críticas como a de Knight (2007).12