• Nenhum resultado encontrado

Nossa compreensão do que são genes e de como eles funcionam tem sido marca- da por variação conceitual e ambiguidades através de sua história. Carlson (1966, p. 259), por exemplo, oferece uma lista impressionante de diferentes interpreta- ções sobre genes na história da Genética (e, note-se, apenas até os anos 1960):

O gene tem sido considerado uma unidade não definida, um caráter unitário (unit-character), um fator unitário, um fator, um ponto abstrato num mapa de recombinação, um segmento tridimensional de um cromossomo anafásico, um segmento linear de um cromossomo interfásico, um saco de genôme- ros, uma série de sub-genes lineares, uma unidade esférica definida pela teoria alvo, uma quantidade dinâmica funcional

de uma unidade específica, um pseudo-alelo, um segmento cromossômico específico sujeito a efeito de posição, um re- arranjo dentro de uma molécula cromossômica contínua, um cístron dentro do qual estrutura fina pode ser demonstrada e um segmento linear de ácido nucléico especificando um pro- duto estrutural ou regulatório.

A última interpretação corresponde ao conceito molecular clássico. Outro aspecto que vale notar é que muitas dessas interpretações são construtos opera- cionais, relacionados a práticas epistêmicas determinadas e ao que a investigação dos genes por meio delas demanda em termos de significação atribuída a estas entidades. O próprio conceito molecular clássico não escapa a essa natureza ope- racional, já que foi construído a partir da disponibilidade de técnicas que permi- tiam identificar regiões de DNA que codificam aminoácidos – quadros de leitura aberta, Open Reading Frames (ORFs). Parece-me apropriado, então, considerar genes como “objetos epistêmicos” da Genética e Biologia Molecular, como pro- põe Rheinberger (2000), isto é, como entidades introduzidas e concebidas como alvos da pesquisa, para as quais significados são construídos à luz de um conjunto inter-relacionado e complexo de práticas epistêmicas utilizadas por comunidades científicas particulares.1 Isso ajuda a explicar a variação conceitual: diferenças nas

práticas experimentais usadas por diferentes comunidades científicas levam à di- ferença na constituição do significado e na aplicação do “gene”, como objeto epis- têmico. (STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004)

Por exemplo, o termo “gene” é usado na genética de populações de maneira instrumental, concebendo-se genes como determinantes de diferenças fenotípi- cas (e abstraindo-se toda a complexidade da relação entre genótipo, desenvolvi- mento [em multicelulares] e fenótipo). Esse uso instrumental tem lugar porque isso é suficiente para dar conta do interesse principal dos modelos construídos nesse campo, em geral, compreender a relação entre mudanças de frequências gênicas nas populações ao longo do tempo e modificações nos fenótipos dos in- divíduos que formam as populações. A tendência nos modelos da genética de populações é, então, de tratar de genes como marcadores de efeitos fenotípicos, enfatizando o resultado da presença de determinadas sequências de DNA para os

1 Não podemos nos estender nesse ponto aqui, mas esta interpretação está de acordo com estudos herme- nêuticos e etnometodológicos da ciência que tratam da constituição de significado a partir de conjuntos de práticas epistêmicas. A este respeito, ver Ginev (2006).

sistemas nos quais elas estão contidas, ou seja, assumindo uma visão mais distal da função gênica. Biólogos moleculares, por sua vez, concentram sua atenção sobre genes no DNA e seus produtos e interações moleculares, enfatizando a natureza estrutural dos genes e seus papéis nos sistemas celulares dos quais são parte. Essa é uma visão mais proximal dos genes, que conduz a uma relutância à identificação de genes por meio da consideração apenas de suas contribuições para níveis rela- tivamente distantes de expressão. (BURIAN, 2002; STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004) Desse modo, nas comunidades de geneticistas de populações e biólogos moleculares, o termo “gene” se refere a diferentes objetos epistêmicos, levando à variação conceitual.

A variação conceitual está relacionada às mudanças de modelos científi- cos ao longo da história da ciência. É importante, pois, dizer como entendemos “modelos” e sua relação com “teorias” e “conceitos”. Modelos são concebidos aqui como construtos criados pela comunidade científica com a intenção de represen- tar aspectos relevantes da experiência, em particular, fenômenos e mecanismos/ processos que podem ser usados para explicá-los e/ou prevê-los. Decerto, esse é apenas um dentre os significados do termo “modelo”, que em sua polissemia captu- ra distintas relações entre elementos do conhecimento.2 Na interpretação usada

neste artigo, um modelo captura a relação entre um sistema simbólico (uma repre- sentação) e fenômenos, processos, mecanismos ontologicamente tratados como partes do mundo ou da natureza. Modelos são construídos por meio de processos de generalização, abstração e idealização que envolvem a seleção de um conjunto de entidades, variáveis, relações associadas com uma classe específica de fenô- menos e processos/mecanismos que serão incluídas no modelo, enquanto outras serão excluídas. Essas entidades, variáveis e relações são capturadas por concei- tos científicos, de tal modo que um modelo pode ser visto como um sistema de conceitos relacionados. Nessa perspectiva, conceitos adquirem significado, pois, por serem usados na construção de modelos, ou seja, como contribuintes para a estrutura de modelos. (HALLOUN, 2004) Por fim, modelos são incluídos em te- orias, interpretadas – de acordo com a abordagem semântica – como famílias de modelos. (DEVELAKI, 2007; SUPPE, 1977; VAN FRAASSEN, 1980)

Neste capítulo, o fenômeno em questão é a função gênica e, assim, nos re- ferimos a modelos de função gênica. Na estrutura desses modelos, um elemento

2 Para ver mais sobre esse assunto, sugerimos consultar Black (1962), Dutra (2009), Grandy (2003), Halloun (2004, 2007) e Hesse (1963).

central é o conceito de gene. A expressão “variação conceitual”, por sua vez, refe- re-se ao espectro de significados diferentes atribuídos a um conceito, seja ao lon- go da história de uma ciência, seja num mesmo período, mediante uso de distintos conceitos em distintos contextos de aplicação.

Para alguns autores, a variação conceitual tem sido heuristicamente útil ao longo da história da Genética. (BURIAN, 1985, 2002; FALK, 1986; GRIFFITHS; NEUMANN-HELD, 1999; KITCHER, 1982; STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004) Isso sugere não ser necessário ou desejável ter uma definição única para o termo “gene”, uma vez que diferentes conceitos de gene e diferentes modelos sobre fun- ção gênica são úteis em diferentes áreas da Biologia, com diferentes compromissos teóricos e práticas epistêmicas. Contudo, a variação conceitual também pode re- sultar em problemas relacionados a ambiguidades e confusões semânticas, como, por exemplo, aquelas que resultam da mistura de características incomensuráveis de diferentes modelos de função gênica. Ou seja, pode haver incomensurabilidade semântica entre conceitos e modelos, de tal modo que, quando são combinados, podem resultar inconsistências lógicas ou conceituais. Por essa razão, alguns auto- res veem na atribuição de uma diversidade muito grande de significados ao termo “gene” uma das origens das dificuldades enfrentadas pelo conceito de gene. (FALK, 1986; SCHERRER; JOST, 2007a, 2007b)

Assim, mesmo que reconheçamos as contribuições trazidas pela variação conceitual, ainda é o caso de que devemos distinguir claramente diferentes mo- delos de função gênica e conceitos de gene. Se entendermos genes como objetos epistêmicos cujo significado é constituído pelas práticas epistêmicas de distintas comunidades científicas, torna-se claro que distintos conceitos de gene cumprem diferentes papéis em jogos explicativos distintos da ciência, possuindo domínios de aplicação diversos. O fato de que a variação conceitual pode desempenhar pa- pel positivo não deve levar-nos a negligenciar a preocupação com a possibilidade de que ela também leve a dificuldades. Falk (1986, p. 173), por exemplo, considera que a visão pluralista sobre genes que se constituiu a partir da década de 1970 “[...] nos trouxe [...] perigosamente para perto de concepções e compreensões equivo- cadas”. Fogle (1990, p. 350) argumenta que, “[...] a despeito das vantagens metodo- lógicas [...] da justaposição de conceitos de ‘gene’, é também verdade [...] que con- fusão e consequências ontológicas seguem quando a intenção clássica para ‘gene’ se combina a um ‘gene’ molecular com significado fluido”.