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Tentativas de organizar a polissemia em torno dos modelos de função gênica são rele- vantes, seja para as comunidades científicas que investigam genes, seja para o ensino a respeito deste conceito central da Biologia. Gericke e Hagberg (2007), partindo da definição de Cadogan (2000), trazem uma tentativa dessa natureza, tomando como ponto de partida uma ideia que consideram fundamental na Genética, a de que o gene é uma unidade biológica básica de hereditariedade à qual uma função específica pode ser atribuída, interpretando-a como o fenômeno da função gênica. Esse fenômeno pode ser representado de variadas maneiras em diferentes modelos explanatórios, os quais empregam, por sua vez, diferentes conceitos de gene. Para identificar tais mode- los, eles consideram aspectos epistemológicos que variam entre modelos de função gênica: a relação entre estrutura e função no gene; a relação entre nível de organiza- ção biológica e definição de função gênica; a abordagem empregada para definir a fun- ção do gene; a relação entre genótipo e fenótipo; o caráter naturalista ou idealista das relações representadas; a aceitação e natureza da redução explicativa no modelo; e a relação entre fatores genéticos e ambientais no desenvolvimento e na construção do fenótipo. Considerando variantes de tais aspectos, eles identificam cinco modelos de função gênica ao longo da história da Genética, que denominam “mendeliano”, “clássi- co”, “bioquímico-clássico”, “neoclássico” e “moderno”.

No começo do século XX, o gene mendeliano era tratado como a unidade res- ponsável pela transmissão e determinação de uma característica, ou seja, como o potencial para o surgimento de uma característica entre os descendentes. Esse era, contudo, um conceito instrumental, uma unidade abstrata útil para a manipulação apropriada dos cálculos realizados em experimentos de cruzamentos. (FALK, 1986) Ele era capaz de explicar as regularidades observadas na transmissão de caracterís- ticas fenotípicas, mas não era acompanhado de hipóteses sobre entidades materiais reais que poderiam corresponder àquelas unidades instrumentais. Essa visão ins- trumentalista foi assumida por Johannsen, ao introduzir a distinção entre genótipo e fenótipo em 1908 e, em seguida, o termo “gene” como unidade constitutiva do ge- nótipo, em 1909. Como comentam Gericke e Hagberg (2007), descrever a função dos genes dentro dos organismos é de menor importância no modelo mendeliano, mais focado na explicação da transmissão genética, ou seja, no fenômeno da heran- ça. Tal modelo concebia, além disso, a presença do gene como condição necessária e suficiente para a manifestação da característica, não levando em consideração qual- quer outro fator (por exemplo, ambiental) além dos genes abstratos e instrumentais.

Encontramos nesse modelo, portanto, uma ideia que, embora empregada desde an- tes, marcou a história do conceito de gene no século XX, a saber, a de uma relação unitária entre genes e características. Essa ideia era anterior, contudo, ao próprio conceito de gene, estando presente no conceito que ele substituiu, a partir do tra- balho de Johannsen, o de “caráter unitário”, que misturava as ideias de uma caracte- rística presente num organismo que se comporta como uma unidade indivisível de herança mendeliana e da entidade na célula germinativa que produz aquela caracte- rística, confundindo, pois, o potencial de exibir a característica com a própria carac- terística. Essa confusão foi posta de lado com a distinção entre genótipo e fenótipo, mas a ideia de uma relação unitária permaneceu.

Com o estabelecimento da teoria cromossômica da herança por Thomas Hunt Morgan e seu grupo, em 1911, uma nova compreensão sobre genes emer- giu, a partir de uma combinação de resultados obtidos por meio de estudos de Citologia, Embriologia e Reprodução, além de análises de cruzamentos entre orga- nismos (CARLSON, 1966), sobretudo entre mosca-das-frutas, Drosophila melano- gaster, tornada por Morgan e seus alunos na Universidade de Columbia o animal- modelo para os estudos em Genética. (KOHLER, 1994) Mais do que encontrar um animal modelo, contudo, Thomas Morgan e seus colaboradores sistematizaram a estrutura conceitual da genética para gerações futuras de pesquisadores, em seu livro seminal The mechanism of Mendelian heredity, de 1915, e estabeleceram um conjunto de práticas experimentais que viriam a caracterizar o trabalho de geneti- cistas por um longo tempo, cumprindo papel importante na constituição do signifi- cado dos genes como objetos epistêmicos. Gericke e Hagberg (2007) denominam o modelo de função gênica que emergiu do laboratório de Morgan “modelo clás- sico”. Ele foi caracterizado por um deslocamento na direção de uma visão realista do gene, não obstante a hesitação do próprio Morgan, que oscilava entre visões realistas e instrumentalistas. (FALK, 1986) De acordo com esse modelo, o gene é uma partícula indivisível, como indica a evocativa metáfora do cromossomo como um colar de contas.3 Não obstante a transição (em andamento) para uma visão

3 A similaridade com a ideia de uma unidade constitutiva última da matéria, como o átomo ou o elétron, não é coincidência: a expectativa era, então, de que genes poderiam cumprir o papel de unidade fundamental da matéria viva. (KELLER, 2002) Essa é também uma expectativa que acompanhou o conceito de gene ao longo do século XX, tendo sua parcela de contribuição para a construção de visões que exageram o papel dos genes na matéria viva, como nas hipérboles comuns em visões deterministas que retratam genes como controladores inteiramente poderosos de processos celulares e determinadores de fenótipos, como se eles estivessem pré-formados na informação genética. (KELLER, 2002; NIJHOUT, 1990; SMITH, 1994)

realista, a estrutura molecular dos genes era inteiramente desconhecida àquela altura. Havia somente uma ideia vaga de que genes poderiam ser ou atuar como enzimas ao determinar uma característica. A função gênica era definida, pois, a partir das características fenotípicas. Mais do que isso, os próprios genes eram in- feridos a partir dos fenótipos que eles determinavam, de acordo com esse modelo. De qualquer modo, genes eram tratados como entidades mais ativas na determi- nação das características do que no modelo mendeliano.

Após os anos 1940, a compreensão dos genes foi cada vez mais influenciada pelo conhecimento crescente sobre reações bioquímicas, o que fez com que o foco de atenção na genética se deslocasse da transmissão de características hereditá- rias para a função gênica (uma tendência que se mantém até hoje). O foco sobre o aspecto funcional do gene é, pois, uma das diferenças cruciais entre os modelos que Gericke e Hagberg (2007) denominam “clássico” e “bioquímico-clássico”. Esse último modelo explica a função gênica mediante sua redução à relação entre uma enzima específica produzida pelo gene e a determinação de uma característica fenotípica. No entanto, o modelo não explicava os processos bioquímicos, ainda que concebesse o gene como produtor ativo de enzimas. Consequentemente, as ferramentas conceituais da Genética clássica ainda são usadas nesse modelo, ape- sar de ser baseado em achados bioquímicos. Além disso, o gene permanecia como uma entidade com estrutura molecular desconhecida. À medida que a compreen- são molecular do gene foi se aprofundando, a ideia de que um gene produzia uma enzima que, então, determinava uma característica foi sendo refinada. Quando se tornou claro que o produto gênico não era sempre uma enzima, passou-se da cor- respondência entre um gene e uma enzima para aquela entre um gene e uma pro- teína e, subsequentemente, entre um gene e um polipeptídeo, quando se mostrou que havia proteínas constituídas por várias cadeias polipeptídicas, codificadas por diferentes genes. Por fim, já no domínio do modelo molecular-informacional, a descoberta de que RNAs também podem ser produtos gênicos terminais levou à ideia de uma correspondência entre um gene e um polipeptídeo ou um RNA. O conteúdo compartilhado em todos estes casos é o de uma unidade genética, que, como vimos, é anterior ao próprio conceito de gene. Esta ideia não foi posta em questão pelos avanços da Genética na primeira metade do século XX, mas, ao con- trário, foi reforçada, com um passo decisivo para sua formulação em termos mo- leculares tendo sido dado no modelo da estrutura do DNA proposto por Watson e Crick (1953), que atualizou a ideia de unidade como parte de uma compreensão

molecular dos genes. (FOGLE, 1990) Mas, antes de Watson e Crick, a ideia do gene como unidade já vinha sendo refinada, com práticas e ferramentas da Genética clássica que levaram a uma reconstituição do significado dos genes: antes conce- bidos como unidades de função, mutação e recombinação, eles foram ressignifica- dos como unidades de função (ou cístrons, um termo largamente usado até hoje) a partir dos estudos de Benzer (1957) sobre a estrutura fina dos genes.

O modelo molecular-informacional inclui, como vimos acima, um conceito de gene, o conceito molecular clássico, e uma ideia mais vaga, a concepção infor- macional (por isso, denominada concepção em vez de conceito).4 Ele foi resultado

direto da proposta do modelo da dupla hélice por Watson e Crick (1953), que ex- plicou, de uma só tacada, vários aspectos dos sistemas genéticos: a natureza da sequência linear de genes, que já havia sido estabelecida na teoria cromossômi- ca da herança, a partir dos mapas de ligação genética, construídos por Morgan e colaboradores a partir da frequência de recombinação entre diferentes regiões cromossômicas, que tornava possível inferir a ordem dos genes num cromosso- mo (MORGAN et al., 1915); o mecanismo da replicação gênica, necessária para a herança, e da síntese de RNA a partir de sequências de DNA, necessária para a função gênica; e a distinção entre mutação, recombinação e função ao nível mole- cular. Além disso, com o modelo da dupla hélice, uma visão realista sobre os genes foi firmemente estabelecida, na medida em que havia agora um correspondente material claro para o conceito de gene. O cenário estava pronto para uma defini- ção molecular dos genes, de tal maneira que genes não precisavam mais ser inferi- dos com base em características fenotípicas, como nos primeiros anos da genética, mas podiam ter seu significado constituído a partir de uma perspectiva molecular correspondente ao conceito molecular clássico, que apresentamos acima.

Essa perspectiva molecular sobre os genes desempenhou papel central na transição de uma era anterior da pesquisa genética, a chamada Genética clás- sica, para uma nova era em que a Genética se tornaria inseparável da Biologia Molecular. A partir dessa perspectiva, os genes eram tratados como unidades estruturais e funcionais dos sistemas genéticos, como discutido acima, e, com a introdução de um vocabulário informacional na Biologia (KAY, 2000), com sua ple- tora de metáforas carentes das bases conceituais que uma teoria da informação biológica poderia propiciar (GRIFFITHS, 2001), os genes passaram a ser tratados

também como unidades de informação. Ou seja, a concepção informacional foi su- perposta ao conceito molecular clássico, resultando no modelo molecular-infor- macional de função gênica. Nos termos desse modelo, a partir da função de codifi- car a estrutura primária de polipeptídeos e RNAs, os genes atuam como conjuntos de instruções ou programas para o funcionamento celular e o desenvolvimento.

Desde Watson e Crick, contudo, essa ideia estava presente, com o gene sendo tratado simultaneamente como matéria física e informação, como subs- tância química e programa de controle dos sistemas vivos. Essa ideia, a chama- da concepção informacional (STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004), dificilmente é trivial e, na falta de uma teoria da informação biológica, pode dar vez a im- portantes confusões, a exemplo da ideia de que a informação seria “imaterial” e, assim, poderia corresponder ao sopro divino, encontrada em livro didático publicado pela Sociedade Criacionista Brasileira. (JUNKER; SCHERER, 2002) É preocupante, pois, a grande frequência em que essa concepção é encontrada em livros didáticos de Biologia Celular e Molecular do ensino superior larga- mente utilizados em todo o mundo (PITOMBO; ALMEIDA; EL-HANI, 2008a, 2008b), livros didáticos de Biologia do ensino médio de seis países (GERICKE et al. 2014; GERICKE; HAGBERG, 2010a, 2010b; SANTOS; EL-HANI, 2009; SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012) e concepções de estudantes de Biologia do ensino superior. (JOAQUIM, 2009)

Outra preocupação diz respeito à relação entre a concepção informa- cional e visões deterministas genéticas. Desde o começo da Biologia Molecular, a “informação” foi identificada com sequências de nucleotídeos que constituem genes. Contudo, quando a informação é concebida dessa maneira, torna-se difícil identificar outros tipos de informação na célula ou no organismo como um todo. Mesmo que apontemos outras moléculas “informacionais”, como RNAs e prote- ínas, a “informação” que elas supostamente “contêm” ou “carregam” pode ser di- retamente reduzida ao DNA. Em suma, quando a informação é conceitualizada dessa maneira, o DNA se torna uma espécie de reservatório de onde toda a “in- formação” numa célula flui e para o qual ela pode ser em última análise reduzida. Essa visão sobre a “informação genética”, construída sobre bases teóricas frágeis e de caráter principalmente metafórico, está intimamente relacionada, pois, com o determinismo genético (OYAMA, 2000), que é um elemento importante do dis- curso sobre genes na mídia e opinião pública. (KELLER, 2002) Afinal, ela favorece visões hiperbólicas sobre o papel do DNA nos sistemas vivos, que tomam o DNA

como um “programa de desenvolvimento” ou um “controlador” do metabolismo celular,5 metáforas comuns em livros didáticos do ensino médio e do ensino su-

perior. (PITOMBO; ALMEIDA; EL-HANI, 2008a, 2008b; SANTOS; EL-HANI, 2009; SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012) Tendemos a negligenciar, então, o fato de que o DNA parece funcionar não como um programa que controla a célula, mas como uma base de dados, ou um sistema de memória celular (ATLAN; KOPPEL, 1990), desempenhando papéis que são obviamente importantes, mas que não po- dem ser corretamente descritos se o tomarmos como agente ou molécula-mestre nos processos celulares. (NIJHOUT, 1990) Trata-se, em suma, de não perdermos de vista que não é o DNA que faz coisas para a célula, mas, antes, é a célula que faz coisas com o DNA. (EL-HANI; QUEIROZ; EMMECHE, 2009)

A despeito da utilidade da compreensão da informação propiciada pela teoria matemática da comunicação (SHANNON; WEAVER, 1949) para diferen- tes propósitos na pesquisa biológica (ADAMI, 2004), ainda permanecemos sem uma teoria da informação biológica que possa dar conta das dimensões semân- ticas e pragmáticas da informação, que para vários autores, são indispensáveis para uma compreensão da informação em sistemas vivos. (EL-HANI; QUEIROZ; EMMECHE; 2006, 2009; HOFFMEYER; EMMECHE, 1991; JABLONKA, 2002; KORZENIEWSKI, 2001) Ou seja, em sistemas vivos, uma teoria da informação deve ter como foco o significado das “mensagens” (sejam elas o que forem, em termos sintáticos) e o contexto no qual elas são interpretadas (podendo a inter- pretação variar de acordo com o contexto). Podemos considerar a situação do conceito de informação biológica mais complicada do que aquela do conceito de gene, na medida em que a Biologia não possui uma riqueza de conceitos semân- ticos e pragmáticos de informação que seja comparável àquela de conceitos de gene. (JABLONKA, 2002)

O modelo “moderno” de Gericke e Hagberg (2007) diz respeito à crise atual do conceito de gene. Contudo, não nos parece que, neste caso, o conceito de “mo- delo” seja adequado. Afinal, não é possível ainda identificar um modelo de função gênica que tenha sido largamente aceito pela comunidade científica, em substi- tuição ao modelo molecular-informacional. O conceito de gene se encontra ainda em fluxo, mudando de significado à medida que novas práticas científicas produ- zem novas interpretações da estrutura e dinâmica dos sistemas genéticos. Se nos

5 Para crítica dessa maneira de representar o DNA e os genes, ver, entre vários outros trabalhos, El-Hani (1997), Griffiths e Neumann-Held (1999), Keller (2002), Nijhout (1990), Oyama (2000), Smith (1994).

perguntarmos o que um estudante de Biologia deve aprender sobre a situação do gene nos dias atuais, a resposta mais apropriada será a de que ele deve aprender que não há ainda um novo significado constituído para o conceito de gene, que se configura, pois, como um campo controverso e contestado, no qual diferentes ideias se confrontam. No restante deste texto, nos debruçaremos sobre ideias contemporâneas sobre genes, as quais, nesse campo de controvérsias, configuram diferentes reações aos problemas enfrentados por este conceito central no pen- samento biológico.