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Charbel Niño El-Hani

Introdução

O conceito de gene desempenhou um papel central na Biologia do século XX, a ponto de Gelbart (1998) e Keller (2002) o caracterizarem como o “século do gene”. Hoje, ao completarmos a primeira década do século XXI, esse conceito ainda é lar- gamente usado no discurso científico. Ele tem sido, contudo, objeto de preocupa- ções diversas. De um lado, um discurso sobre genes se integrou ao imaginário da mídia e da opinião pública de uma maneira que dificulta a compreensão da com- plexidade da relação entre genes e características fenotípicas, em virtude do pre- domínio de uma visão determinista genética. (KELLER, 2002; LEWONTIN, 1983; MOSS, 2003a; OYAMA, 2000) Esse discurso prejudica o entendimento informado e crítico de questões sociocientíficas relacionadas aos genes. De outro lado, há dú- vidas persistentes sobre o poder explicativo e a fertilidade desse conceito diante da compreensão dos sistemas genéticos que emergiu da pesquisa biológica das úl- timas duas décadas, mais especificamente, na chamada era pós-genômica.

O conceito de gene se encontra, agora, entre a cruz e a espada. (EL-HANI, 2007). Tanto há propostas de simplesmente eliminá-lo do discurso biológico, por ter se esvaziado de significado e poder heurístico – como vemos, por exemplo, em Gray (1992), Portin (1993), Gelbart (1998) e Keller (2002) – quanto vários autores buscam salvá-lo, mas sem desconhecer os inúmeros problemas que tal conceito enfrenta. (FALK, 2000, 2001; HALL, 2001; KNIGHT, 2007) Contudo, tem sido cada vez mais reconhecido que, para ser mantido no discurso biológico, o conceito de

gene deve sofrer reformulações. (EL-HANI et al., 2009; GRIFFITHS; NEUMANN- HELD, 1999; HALL, 2001) Como expressa Hall, de modo algo dramático, o gene está vivo, mas órfão, sem lar e buscando um porto de onde possa partir rumo ao seu lar “natural”, a célula, como unidade morfogenética fundamental.

Não é tarefa fútil reformular nossa compreensão dos genes nessa direção: significa contrapor-se a um discurso hiperbólico sobre genes e DNA, transforma- dos em controladores todo-poderosos do desenvolvimento e da função celular, de tal modo que precisariam ser praticamente homúnculos no núcleo celular a dirigir com mãos firmes os destinos das células. Trata-se de considerar não somente o que genes fazem, mas também o que eles não podem fazer (MOSS, 2003a), como entidades que não são agentes mestres nos sistemas celulares, mas fornecedores de matérias-primas, mais especificamente, sequências de ribonucleotídeos (em RNAs) e aminoácidos (em proteínas). (NIJHOUT, 1990) Trata-se de ter na devida conta que o controle nos sistemas celulares não está concentrado em uma molé- cula qualquer, mas é difuso (BRUGGEMAN et al., 2002), realizando-se por redes complexas de relações entre proteínas, RNAs e outras moléculas (não se devendo esquecer que o DNA não participa dessas redes como agente, dado que não tem capacidade catalítica, mas como sistema de memória).

Os problemas enfrentados pelo conceito de gene estão relacionados, prin- cipalmente, com sua interpretação como um segmento de DNA que codifica um produto funcional, seja uma cadeia polipeptídica ou uma molécula de RNA única. Esse modo de compreender os genes foi chamado de conceito molecular clássico de gene na literatura sobre Filosofia da Biologia. (GRIFFITHS; NEUMANN-HELD, 1999; NEUMANN-HELD, 1999; STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004) Dos anos 1950 aos anos 1970, parecia aceitável compreender o funcionamento do siste- ma genético em termos de relações simples e diretas de um-para-um (função = polipeptídeo/RNA = cístron = gene = segmento contínuo de DNA). Esse conceito de gene capturava tais relações de modo poderoso (tanto explicativa quanto pre- ditiva e heuristicamente), ao tratar o gene como unidade ininterrupta no genoma, com começo e fim claros, e com função única (atribuída diretamente ao produto gênico e, indiretamente, ao gene). Esse conceito se mostrava tão poderoso pelo modo como unificava definições estruturais e funcionais do gene, que teve impor- tante papel ao longo de sua história (FALK, 1986), o gene molecular tinha estrutu- ra bem definida, não sendo difícil localizar onde começava e terminava no DNA, e a ele podia ser atribuída (indiretamente) uma função única, que emergia na célula

a partir de uma mecânica de transcrição e tradução que já fora bem compreendi- da nos anos 1960. Além disso, certa unidade entre Genética Clássica e Genética Molecular era propiciada por este conceito de gene, na medida em que superpu- nha uma compreensão molecular a uma ideia de unidade genética que vinha da genética mendeliana clássica. (FOGLE, 1990)

Não se deve perder de vista, pois, que esse conceito de gene, embora se tenha tornado problemático em período posterior da história da genética, teve importante papel teórico e empírico ao longo de quatro décadas de pesquisa por motivos bastante razoáveis. Por isso, ele se tornou largamente aceito na Biologia, chegando à ciência escolar (na educação superior e básica), bem como à mídia e opinião pública, em associação frequente com a chamada “concepção informacio- nal do gene” (STOTZ; GRIFFITHS; KNIGHT, 2004), de acordo com a qual os genes, por serem unidades estruturais e funcionais no genoma, são também unidades in- formacionais, ou seja, mensagens únicas encontradas em trechos do DNA, que co- dificam sequências de ribonucleotídeos e aminoácidos. A combinação entre con- ceito molecular clássico e concepção informacional está associada ao que Gericke e Hagberg (2007) chamam de modelo “neoclássico” da função gênica ou, como preferimos, modelo “molecular-informacional”. (SANTOS; JOAQUIM; EL-HANI, 2012)

Contudo, é bem conhecido que as práticas científicas que se estruturam em torno de determinado arcabouço teórico com frequência terminam, após certo intervalo de tempo, por produzir dificuldades empíricas e teóricas para os próprios conceitos que contribuem para sua estruturação. Nos termos de Kuhn (1996), a crise de um paradigma é decorrência da própria ciência normal reali- zada sob sua égide. Podemos descrever desse modo a emergência de anomalias ou desafios ao modelo molecular-informacional entre os anos 1970 e os dias de hoje, como decorrência da própria pesquisa em Genética, Biologia Molecular e mais recentemente no chamado campo das -ômicas (Genômica, Proteômica, Metabolômica etc.). Essas anomalias surgiram na medida em que a pesquisa se moveu de procariotos para eucariotos que por possuírem núcleo e sistemas de endomembranas não mostram a ligação íntima entre transcrição e tradução que observamos em bactérias e, mais do que isso, apresentam sistemas gené- ticos com propriedades consideravelmente distintas destas últimas, a exemplo da presença de genes que não são contínuos no DNA. Mais recentemente, mais anomalias têm resultado da disponibilidade de técnicas de coleta de dados e

analíticas que permitem olhares cada vez mais globais sobre sistemas genéticos, revelando uma interdependência dinâmica antes insuspeita entre regiões de DNA e seus produtos.

Podemos classificar as anomalias que confrontam o modelo molecular-in- formacional em três tipos, todos relacionados a evidências contrárias a uma re- lação unitária entre genes, produtos gênicos e função gênica (EL-HANI, 2007; PARDINI; GUIMARÃES, 1992): (i) correspondências de um-para-muitos entre segmentos de DNA e RNAs/polipeptídeos (por exemplo, na emenda alternati- va [alternative splicing] de RNA; (AST, 2004; BLACK, 2003; GRAVELEY, 2001) (ii) correspondências de muitos-para-um entre segmentos de DNA e RNAs/polipep- tídeos (por exemplo, rearranjos genômicos nos quais vários segmentos de DNA são combinados para gerar diversidade de receptores de antígenos em linfócitos); (COOPER; ALDER, 2006; MURRE, 2007) (iii) falta de correspondência entre seg- mentos de DNA e RNAs/polipeptídeos (por exemplo, edição de mRNA. (HANSON, 1996; LEV-MAOR et al., 2007)

Este texto tem como objetivo uma discussão de propostas de revisão do conceito de gene, como meio de mantê-lo na estrutura conceitual da Biologia diante de tais anomalias. Por meio desta discussão, esperamos oferecer uma vi- são geral sobre mudanças importantes que vêm ocorrendo na Genética e Biologia Molecular na virada do século XX para o XXI, com consequências não somente para a estrutura teórica, mas também para as práticas epistêmicas nesse campo da ciência.