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Alguns trabalhos recentes realizaram análises conceituais acerca do gene que se mostram tão estendidas que implicam uma nova linguagem para falar sobre sis- temas genéticos, na qual novas operações de distinção são feitas no mundo da experiência, conduzindo a novos esquemas categóricos e novas ontologias. Essas novas linguagens decompõem os sistemas genéticos em novas categorias e, assim, organizam nossa compreensão por meio de conjuntos de conceitos que diferem daqueles usados ao longo do século XX. De um lado, isso pode resolver ou até mes- mo dissolver problemas e limites impostos pela nossa linguagem atual sobre ge- nes, marcada por dificuldades que podem resultar, em parte pelo menos, do modo como categorizamos fenômenos. De outro lado, é de se esperar que haja dificulda- de de tradução da linguagem já estabelecida nos campos da Genética e da Biologia Molecular para essas novas linguagens. Essa dificuldade, por sua vez, pode ser um obstáculo para a compreensão e eventual aceitação dessas novas maneiras de

falar pelos cientistas que se ocupam dos sistemas genéticos. Assim, um aspecto crucial para o sucesso dessas propostas é a manutenção de pontes suficientes en- tre velhas e novas maneiras de falar sobre genes. Afinal, maior continuidade impli- ca maior facilidade de tradução entre essas linguagens.

Para além do gene: o functor genético

Em 2007, Keller e Harel propuseram uma linguagem para falar de sistemas genéticos na qual o conceito de gene não é preservado.13 Essa linguagem está ba-

seada no conceito de functor genético14 ou genitor, que é definido como uma tri-

pla ordenada G = (O, D, B), onde O = organismo de um tipo especificado (i.e., com propriedades genéticas e comportamentais especificadas); D = um dene; e B = um bene. O dene é um enunciado sobre o DNA de O (ou, mais precisamente, uma fun- ção com valor de verdade da(s) sequência(s) de DNA de O) e o bene, um enunciado sobre o comportamento de O (ou, mais precisamente, uma função com valor de verdade do tempo de vida de O).

Nessa linguagem, o gene é substituído por um conceito proximamente rela- cionado, embora situado num nível lógico inteiramente distinto, o dene, que tam- bém pretende capturar as bases da transmissão genética, mas, diferentemente do gene, não denota somente um segmento de DNA. Um dene é um tipo de enunciado geral sobre o DNA que representa características muito mais intricadas dessa mo- lécula do que aquelas capturadas pelo simples enunciado de que ela contém uma subsequência particular que é expressa. Os elementos constitutivos do dene são encontrados no DNA, mas eles podem referir-se a todo o genoma de um organismo, ou a alguma porção contígua ou disjunta dele, podem conter superposição ou iteração de subsequências, e seus contornos podem ser fixos ou variáveis. Além disso, o dene inclui sequências que possuem significado funcional, mesmo que não sejam expressas. É por meio dessa flexibilidade do dene que Keller e Harel pretendem acomodar desafios ao conceito molecular clássico.

Embora seus elementos constitutivos sejam encontrados no DNA, não se pode localizar o dene nesta molécula, porque ele é um enunciado a seu respeito,

13 Portanto, dois anos após ter apresentado uma visão mais otimista sobre o futuro do gene, Keller retornou à mesma posição encontrada em O século do gene, a de que o conceito de gene deve ser abandonado. 14 Na teoria das categorias, um functor é um tipo especial de mapeamento entre categorias, que pode ser

informalmente definido como mapas entre categorias que preservam estruturas, ou, alternativamente, como um homomorfismo entre categorias. (MARQUIS, 2011)

uma propriedade atribuída a ela. A proposta de Keller e Harel combina, em suma, duas tendências de reformulação do conceito de gene discutidas acima: eles tanto realizam uma análise conceitual que conduz a novas distinções acerca dos sistemas genéticos, quanto propõem passar de um discurso sobre genes, que assumiu caráter fortemente ontológico ao longo do século XX, para um discurso sobre denes, que, como enunciados, não são objetos de uma ontologia, mas de uma epistemologia.

Outro aspecto a considerar é que a linguagem proposta por Keller e Harel propicia uma clara separação entre estrutura, o que o organismo é em termos es- táticos, o que é materialmente herdado, e função, o que o organismo faz em ter- mos dinâmicos com aquilo que é herdado, i.e., sua funcionalidade e seu comporta- mento. Por si só, o dene nada diz sobre função. Ele está focado apenas na estrutu- ra, correspondendo a um enunciado sobre o DNA como uma entidade estática. O papel de especificar o comportamento associado a uma sequência de DNA – por- tanto, à sua função, e não à estrutura – é atribuído ao bene, que é um enunciado sobre como o organismo se desenvolve, vive, comporta-se em termos dinâmicos. O bene inclui qualquer coisa que o organismo O faça que seja uma manifestação – mesmo que seja bastante indireta – do fato de que seu DNA possui as caracterís- ticas especificadas pelo dene. O functor genético ou genitor, G = (O, D, B), cumpre o papel de unificar estrutura (expressa pelo dene) e função (expressa pelo bene) num organismo O, ou seja, de conectar aspectos estáticos (relativos ao seu sistema de memória) e dinâmicos dos sistemas vivos.

Essa linguagem tem a importante vantagem de evitar o determinismo genético. A relação entre bene e dene, como enunciados, é tal que o primeiro não segue simplesmente do segundo. O bene apenas possui o dene como uma de suas partes, lado a lado com o ambiente, os mecanismos desenvolvimentais, os processos epigenéticos de O, em conformidade com a tese da paridade causal de Griffiths e Knight (1998). Como um enunciado amplo e rico, que se refere a características modais e temporais complexas do comportamento do organismo ao longo do tempo, o bene não pode ser reduzido a enunciados simples sobre a transcrição do DNA em RNA ou a tradução do mRNA na estrutura primária de proteínas, por exemplo.

Temos na proposta de Keller e Harel, em suma, uma contribuição importante para a construção de uma visão sobre a estrutura e dinâmica do genoma, bem como sobre sua relação com a função celular, o desenvolvimento, a construção do fenó- tipo, que se mostra compatível com o que temos aprendido sobre a complexidade

dos sistemas vivos. Ela pode desempenhar um papel importante, pois, na construção de uma “biologia de sistemas” digna do nome. O principal desafio a ser enfrentado diz respeito à dificuldade de assimilação dessa nova linguagem pela comunidade de geneticistas e biólogos moleculares, na medida em que ela traz dificuldades de tra- dução em relação à velha linguagem sobre genes e, além disso, emprega estratégias lógicas com as quais aqueles cientistas não estão, em geral, familiarizados.

Codificação e regulação: gene, genon e transgenon

Scherrer e Jost (2007a, 2007b) desenvolvem uma nova linguagem para fa- lar sobre genes a partir da distinção entre dois aspectos envolvidos na produção de polipeptídeos, codificação e regulação. Diante do problema histórico de que foi atribuída uma diversidade muito grande de significados a um único termo, “gene”, eles realizam uma análise conceitual que implica novas operações de distinção, as quais, por sua vez, são tomadas como fundamento de uma nova linguagem.

A partir de uma distinção entre função gênica, de um lado, e mecanismos de armazenamento e expressão de informação, de outro, Scherrer e Jost relacionam o gene principalmente ao aspecto funcional. Eles argumentam, então, que não po- demos encontrar ao nível do DNA uma unidade que possa explicar a função gênica. O gene emerge – defendem esses autores – como unidade funcional ao nível dos RNAs maduros, após seu processamento.15 Essa é uma proposição que busca pre-

servar o conceito de unidade genética, mas ao custo de uma reformulação radical de nossa compreensão sobre genes. De um lado, ela guarda alguma semelhança com as propostas de Fogle (1990) e de Pardini e Guimarães (1992), mas é mais cla- ra quanto à natureza e localização do gene. De outro, ela difere destas propostas por manter o conceito de unidade genética.

Genes que codificam proteínas emergem quando uma sequência de nucleo- tídeos processada, não interrompida, resulta do processamento de RNA. A maioria

15 Scherrer e Jost chegam a afirmar que sua proposta de localizar genes como unidades no RNA conduz à “definição e ao significado únicos e exclusivos do termo ‘gene’”. (SCHERRER; JOST, 2007a, p. 3) A ideia de situar genes no RNA se defronta, contudo, com uma série de problemas, os quais, em nosso enten- dimento, podem ser resolvidos. Não temos espaço, contudo, para discutir esse ponto no presente texto, deixando-o para trabalhos futuros. Também não temos como discutir aqui a repercussão das propostas de Scherrer e Jost, que foram abordadas criticamente, por exemplo, em vários artigos, incluindo um número especial de Theory in Biosciences. (BILLESTER, 2009; FALK, 2010; FORSDYKE, 2009; GROS, 2009; JOAQUIM; EL-HANI, 2010; NOBLE, 2008, 2009, 2011; PROHASKA; STADLER, 2008; SCHERRER; JOST, 2009; STADLER et al., 2009; VICUÑA, 2011)

dos desafios ao gene molecular clássico é superada na proposta de Scherrer e Jost, na medida em que o gene não é localizado no DNA, mas no RNA processado.

Sequências não interrompidas de mRNA de fato funcionam como unidades estruturais para a tradução. Para Scherrer e Jost, então, são estas sequências não interrompidas de RNA que constituem as unidades de função e análise genética, uma vez que são o equivalente da cadeia polipeptídica que é sintetizada. No caso de genes de RNA, a situação é um pouco mais complexa porque alguns RNAs fun- cionais não são processados, embora a maioria dos RNAs o seja. Quando há pro- cessamento, a situação é idêntica aquela dos genes que codificam proteínas, locali- zados ao nível do RNA processado. Quando o transcrito de RNA não é processado, seria possível, em princípio, localizar o gene no DNA, mas, para fins de coerência e generalidade, é melhor situar o gene ao nível do RNA funcional, afirmando que, em casos excepcionais nos quais não ocorre processamento, há uma equivalência entre um domínio genômico (no DNA) e um gene (no RNA). Um domínio genômico é definido por Scherrer e Jost (2007b, p. 106) como um “[...] domínio de DNA que contém fragmentos de um ou vários genes coordenados por controles em cis [i.e, na mesma molécula de DNA], frequentemente uma unidade de transcrição e, em alguns casos, de replicação”. Diante desses argumentos, podemos afirmar simples- mente que o gene corresponde a uma sequência de nucleotídeos bem delimitada num RNA funcional, não importando se este será traduzido na estrutura primária de proteínas (como ocorre no caso do mRNA).

O segundo aspecto envolvido na produção de polipeptídeos, a regulação da expressão gênica, está relacionado à produção do gene no RNA a partir de peda- ços do genoma, ou, mais precisamente, de domínios genômicos no DNA. Scherrer e Jost (2007a, p. 3) destacam o papel de um programa que se encontra no transcrito de RNA, junto com o gene, e “[...] assegura a geração do gene, no espaço e no tempo celulares, através das muitas etapas da expressão gênica. Esse programa é captu- rado em seu conceito de “genon” (uma contração dos termos “gene” e “operon”.16

16 A noção de “programa”, em particular quando concebida nos termos de um “programa genético” é al- tamente controversa (GRIFFITHS; NEUMANN-HELD, 1999; KELLER, 2002; NIJHOUT, 1990; OYAMA, [1985]2000), mas não podemos estender a discussão a seu respeito aqui, porque nos desviaria de nossos objetivos neste trabalho. Scherrer e Jost não oferecem maiores elaborações sobre o conceito de “progra- ma”. Eles comentam que o genon e o transgenon constituem um programa flexível, e não rigidamente definido, podendo ser modificado por mecanismos epigenéticos de expressão gênica, sem quaisquer mu- danças no nível do DNA, a exemplo da metilação de sequências de DNA correspondentes ao genon e da adição e eliminação de fatores que compõem o transgenon de acordo com o compartimento celular, o contexto fisiológico, a idade da célula etc.

O genon constitui a informação adicional necessária para a expressão gênica e está contido dentro de cada RNA como um conjunto de sinais em sua sequência de nucleotídeos que constitui sítios potenciais de ligação de proteínas, RNAs ou ribonucleoproteínas regulatórias. No RNA, o genon pode ser encontrado como elemento à parte ou estar superposto à sequência codificante. Há um genon úni- co para cada mRNA e polipeptídeo distinto e, assim, para cada gene, embora os mesmos domínios genômicos possam ser usados em combinações diferentes ao longo das vias de expressão de genes similares ou diferentes, como foi discuti- do por Fogle (1990, 2000) e Pardini e Guimarães (1992). Logo, quando a célula constrói genes a partir de sequências de DNA (geneia), ela também constrói os genons correspondentes.

O genon se encontra no mesmo cromossomo a partir do qual o transcrito pri- mário de RNA é sintetizado, ou seja, ele é um programa regulatório que atua em cis. No entanto, há também um conjunto de fatores regulatórios, codificados em outros cromossomos, que potencialmente reconhecem e atuam sobre os sinais em cis de um dado genon, o transgenon. Quando o genon de um mRNA é mergulhado num pool de fatores que atuam em trans (nos termos de Scherrer e Jost, o holo-transgenon), parte desses fatores se mostram capazes de reconhecer sinais ou “oligomotivos” na sequ- ência de nucleotídeos e podem, então, atuar sobre genes e genons. Desse modo, um transgenon específico é selecionado por cada genon. Da interação específica entre genon e transgenon emerge a regulação da expressão gênica.

A proposta de Scherrer e Jost expande consideravelmente o vocabulá- rio sobre genes. Como Pearson (2006) observa, essa parece ser uma estratégia usada por muitos cientistas diante dos desafios ao conceito de gene: adicionar adjetivos ao termo “gene” de modo a acomodar o amplo e diversificado espectro de entidades e processos relacionados ao gene. O vocabulário que Scherrer e Jost introduzem é, contudo, extenso e complexo. Mencionei aqui apenas alguns termos principais. Uma dificuldade importante, como posto acima, é a comuni- dade científica adotar a série de distinções e, logo, denominações, incluídas nes- sa nova linguagem para falar de genes. Contudo, parece ser uma vantagem da abordagem de Scherrer e Jost em relação à de Keller e Harel (2007) o fato de que seu vocabulário mantém mais contato com a linguagem genética atual e suas estratégias usuais para definir termos.

Em termos gerais, vimos que a superação dos problemas que desafiam o conceito de gene requer esforços de análise conceitual, que possam distinguir os

vários significados amalgamados no termo “gene” ao longo do século XX. Diante desses avanços conceituais, mudar nossas maneiras de falar sobre genes pode ser o preço inevitável a pagar para superar a crise desse conceito.