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Gestão compartilhada: organização da equipe e o processo de decisão

4. CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

4.2 IMPRESSÕES E CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO

4.2.4 Gestão compartilhada: organização da equipe e o processo de decisão

A maneira como as pessoas do lugar se relacionam parece ter trazido reflexos diretos para a organização da equipe. Nas entrevistas, diversas falas contribuíram para entender melhor como as relações buscam superar a ideia de utilizar as hierarquias para demarcar territórios de poder. Essa desconstrução cria uma outra lógica de organização e contribui para o trabalho ser desenvolvido com base no reconhecimento compartilhado da importância de cada atividade, além de possibilitar

a participação direta na definição das prioridades de ação, dos propósitos e dos métodos. Isso propicia um ambiente diferenciado e resulta em uma forma de organização em que tanto as responsabilidades quanto os benefícios são compartilhados de acordo com decisões coletivas.

Com frequência, as organizações precisam reavaliar seus métodos para conseguir lidar melhor com os problemas e confrontos gerados pela maneira como se conduz o processo de tomada de decisão. Em algumas situações, de hierarquia bem demarcada e em que existem os papéis definidos dentro da estrutura de poder na instituição, pode ser inviabilizado o processo de construção coletiva e de incentivo à participação social. Essa situação pode interferir diretamente na cultura de participação dentro da sociedade por meio da naturalização das relações de poder, pois esse aprendizado é influenciado pelas experiências cotidianas. Se a cultura institucional é permeada por práticas impositivas dentro do processo político e social, o sujeito contará com menos referências na busca por sua autonomia e pode submeter-se a uma relação de dependência, avessa a processos de transformação do modelo de sociedade (MOTTA, 1981).

Esse cenário tornar-se-ia um limitador para a discussão a respeito das formas de organização social, caso restringisse o debate político, ao omitir divergências científicas e ideológicas. Nessa condição, parece ser indiferente, para a maior parte dos eleitores, se a gestão, ao ocupar seus cargos, mantem a mesma estrutura hierárquica e se promove ou inviabiliza a participação social na formulação de políticas públicas.

É importante, também, registrar a incoerência de se discutir uma comunicação dialógica no interior de culturas organizacionais baseadas em perspectivas hierárquicas de centralizar decisões. Afinal, não existiria muito sentido em pessoas ou grupos, que se dizem promotores da participação social, chegarem ao poder com adoção das mesmas práticas centralizadoras dos projetos colonizadores e ditatoriais. A demarcação das hierarquias, que privilegiam individualidades ao invés de projetos, precisa ser analisada, em cada ação tomada, caso exista o interesse em propor um modelo de sociedade com uma participação social mais efetiva.

No caso da equipe da unidade de saúde, as práticas de educação e de comunicação sofrem influência direta da forma como as decisões são tomadas e como é construído um processo mais autônomo em que todas as pessoas da equipe se tornam autoras dos projetos desenvolvidos, em especial os de educação. Dona

Dora torna-se porta-voz de uma resposta bastante direta a respeito da tomada de decisões na equipe, que foi unânime em todas as entrevistas. Segundo ela é “tudo na reunião”. Dona Lia confirma: "aqui tudo se decide em equipe". Essa é uma postura comentada, também, por Dona Socorro: "aqui sempre tudo é discutido em reunião. Eles nunca fazem as coisas sozinho".

Seu Farinha destaca o fato da equipe ter "uma possibilidade de um relacionamento direto sem esses autoritarismos desagradáveis" e ao comentar sobre a pessoa com atribuições mais relacionadas com a gestão dos processos, afirma ser "uma pessoa tremendamente inclusiva e democrática. Então, pronto, a coisa ficou perfeita."

A forma de organização é citada por Dona Paciência, ao comparar a perspectiva adotada pelo grupo da unidade, com outras equipes com as quais desenvolveu atividades no passado. Além disso, cita a importância de desconstruir a ideia do poder simbólico resultante da profissão ou do cargo.

Em outros lugares que eu trabalhei sempre tinha uma hierarquia assim na vertical, né? Sempre que as pessoas mandavam fazer, a gente desempenhava algumas funções que era mandado. E aqui na unidade, todas as decisões elas são compartilhadas. A equipe decide junto, qualquer coisa que for decidida tem que ser na reunião, a gente tem reunião toda semana. Toda sexta-feira pela manhã tem reunião e tudo se discute e decide nesta reunião. A palavra do médico não é mais do que a recepcionista. A moça que trabalha na limpeza não é menos que a enfermeira. Todo mundo tem o mesmo valor, tem a mesma importância [...]. Igualitário, aqui. Todo mundo contribui, todo mundo decide junto. Se não agradou é na reunião que fala, se quiser fazer alguma coisa a mais é na reunião que fala, só faz se for concordado por todo mundo.

Seu Canuto, reforça que para a tomada de decisões “não temos uma hierarquia. A comunicação, ela flui em qualquer dos núcleos do posto”. Ele ainda comenta sobre a importância da abertura para a equipe poder interferir nos processos de decisão, “porque isso acaba dando empoderamento para qualquer dos membros.”

Dona Borboleta também considera a reunião periódica "muito importante pra desenvolver o trabalho de cada um e melhorar.” Para ela a perspectiva de tomar decisões coletivamente contribui para melhorar “o trabalho do agente de saúde, o trabalho de cada um e na comunidade também, a gente tem muito amor, bem bonito quando se faz um trabalho desse."

Em busca de reduzir o impacto das hierarquias nos processos organizacionais, a equipe considera apenas a existência de diferentes atribuições. Porém, na tomada de decisão, ao participar de atividades e mesmo quando há possibilidade do grupo receber prêmios ou recursos extras, os benefícios são divididos de maneira igual, ao contrário de outros exemplos citados por eles, em que são criadas categorias para garantir percentuais diferenciados de acordo com uma hierarquia que define a importância de cada atribuição. Para o grupo, todas as atividades são importantes e o funcionamento da unidade depende da satisfação de toda a equipe com as atividades desenvolvidas, pois é consenso que a remuneração não é suficiente para garantir bom desempenho.

Contudo, foram relatados problemas na relação com a gestão municipal, principalmente, em períodos próximos de eleições em que a maior parte dos membros da sociedade resolvia apoiar a oposição à gestão que estava em fim de mandato ou à recém-eleita. Foram citadas situações como a instabilidade no repasse de verbas e a falta de materiais em determinados períodos, o que prejudicava a saúde das pessoas e a execução regular dos projetos planejados. Porém, nenhuma dificuldade enfrentada foi suficiente para a equipe deixar de oferecer o devido cuidado para a população. Para Dona Lia, “apesar de às vezes não ter muito apoio da prefeitura, a gente faz por a gente, tipo assim, pensando na comunidade”. Essa afirmação demonstra a necessidade de superar as dificuldades de maneira autônoma para garantir as ações de cuidado. Em paralelo a essa tentativa de buscar alternativas inspiradas na autogestão, continuavam a ser promovidas pressões junto aos gestores municipais para garantir a qualidade e ampliação dos serviços, conforme as necessidades e a demanda. Seu Canuto faz um comentário que exprime questões fundamentais para esse debate. Para ele,

o SUS é maravilhoso, é perfeito. Eu acho que é um dos melhores sistemas de saúde no mundo, só que na teoria. Na prática, a gente tá longe. Teoricamente é um, já tá lá, eu acho que muito pouca coisa precisa ser modificada, mas na prática a coisa não funciona, existe uma dificuldade muito grande de efetivar as políticas. Principalmente, por causa das desigualdades na distribuição dos serviços e de renda […]. No nosso caso aqui, a gente lida o tempo inteiro com carência de recurso, mas a gente não para. Se a gente tem, hoje, falta de um determinado material, a gente vai, durante as discussões, durante as reuniões de equipe, tentando ver em termos de estratégias pra solucionar nossos problemas em saúde, o que é viável naquele momento, o que é que a gente pode fazer.

Então, a gente trabalha o tempo todo com isso. Dentro dessa viabilidade, mas a gente precisa que se discuta essa questão dessa superação da iniquidade na distribuição.

Essa postura autônoma, que resulta em uma maior iniciativa para enfrentar problemas e lidar com as situações, parece fazer parte da cultura local e decorrer do fato de ser um grupo social que construiu práticas solidárias a partir das dificuldades sociais vivenciadas ao longo de sua formação. Esse modo de agir refletiu-se, também, na perspectiva autogestionária que tornou-se necessária para estruturação e manutenção da rádio em que foram desenvolvidos os programas.

A gente começou, foi aprimorando e um doava uma coisa, outro emprestava outra e aí [...] funcionou só por volta de 7 meses. [...] Começava a anunciar recadinhos de reunião, começava já a oferecer música e tal, e começou que o pessoal via como uma brincadeira [...]. Daí como eu trabalhava como guia também, todo mundo que eu guiava eu [...] falava sobre a rádio. […] Aí o que é que aconteceu, comecei a ter uma ajuda da comunidade, a comunidade sempre apoiou. [...] Daí, foi surgindo várias doações, um doava um microfone […], o pessoal emprestava alguns aparelhos, tipo aparelho de cd, microsystem, microfone, caixa amplificada que [Seu Farinha] emprestou. […] [Uma colaboradora], que sempre apoiou também a rádio com apoio da associação de comerciantes, ela sempre conseguia com eles várias coisas que [...] precisava, tipo pedestal de microfone, microfone novo. Ela pedia pro pessoal aí, então a gente conseguiu um md [...], ela conseguiu um dia uma mesa nova, porque a minha tinha dado problema e ela conseguiu. Então, sempre, sempre ela apoiou [...] a rádio (SEU IAMANDU).

Em decorrência do apoio de diversas pessoas e organizações, a rádio conseguiu melhorar sua estrutura e construir uma relação diferenciada com a população, condição que possivelmente contribuiu para uma maior legitimidade desse meio de comunicação. Para alguns dos membros da equipe de saúde, o fechamento da rádio aconteceu em decorrência da intervenção da política partidária e de um sistema de concessões que favorece instituições em detrimento dos interesses coletivos. Essa visão parece fazer parte da percepção da existência de práticas clientelistas. De acordo com Dona Lua, o processo de legalização depende “muito de política, de vontade política e infelizmente até agora nada”.

Seu Farinha considera que irá demorar “até que o governo resolva dar a licença, sem ter um deputado atrás” e isso gera uma sensação de que há

necessidade de buscar por intermediários para ter acesso a determinados direitos. Este autor chegou a me pedir, durante a entrevista, que, no caso de encontrar “algum cara importante por aí”, tentasse lhe perguntar: “como é que pode impedir que a comunidade tenha acesso a um negócio desse?”

Cara, eu tenho saudade desse programa de rádio, puta merda, eu tenho muita saudade, era muito legal, muito legal, tou doido pra que resolva-se essa questão, porque a gente já recebeu uma correspondência do ministério dizendo que foi um equívoco terem tirado os aparelhos e que eles iam resolver a situação, só que já tem mais de 3 anos e eles não resolvem a situação. É uma merda isso, porque a rádio era essencial para a comunidade. O povo adorava a rádio, era muito legal. […] Eu já pensei em escrever uma carta pra Dilma sobre isso, sabia? Não sei se vai adiantar, mas eu já pensei em escrever uma carta para a própria presidente. Eu sei que ela nem lê, mas ela podia encaminhar pro lugar certo.

A partir dessas considerações parece haver um entendimento que as vias institucionais acabam sendo permissivas a abordagens clientelistas, ao gerar uma dependência direta de interação com indivíduos que exigem benefícios em troca de determinados “favores”. É fundamental ampliar a discussão sobre as consequências das intervenções político-partidárias na qualidade dos serviços e das posturas adotadas na relação dos membros da sociedade com a gestão pública.