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4. CONSTITUIÇÃO DO CAMPO

4.2 IMPRESSÕES E CARACTERIZAÇÃO DO CAMPO

4.2.2 Relações interpessoais e com o lugar

Ao analisar as entrevistas concedidas pela equipe, é possível notar uma grande preocupação em oferecer as condições adequadas para contribuir com a promoção da saúde de pessoas com as quais o grupo criou vínculos de amizade, de respeito e, em alguns casos citados, de amor. Esse vínculo que busca compartilhar momentos de alegria, mesmo no acolhimento e no atendimento dentro do serviço de saúde, é um dos fatores que parece transformar essa unidade em um local de extrema dedicação ao cuidado. Ser profissional de saúde nesse contexto parece superar o pensamento de ser uma mera atividade laboral ou uma atividade técnica desvinculada dos sentimentos e da amizade construídos com os membros da sociedade. Os autores dessa equipe de saúde evidenciam, diante dos relatos, ter consciência do poder de transformação e se apropriam de variadas estratégias de educação e comunicação que exigem longas análises, afinal, uma evidente preocupação desse coletivo está relacionada a um apurado senso de cuidado. São pessoas nascidas no lugar ou que construíram uma relação afetiva e o citado vínculo com uma população, até pouco tempo atrás, assistida basicamente por ações voluntárias e por um posto de primeiros socorros.

Em diversos comentários, a equipe fez questão de evidenciar como os moradores cuidam e acolhem as pessoas que chegam de fora, inclusive os profissionais da unidade recém-chegados, independentemente da sua origem e de qualquer título acadêmico. A unidade de saúde não é vista como mera prestadora de serviços, mas é considerada, também, como mais um espaço de continuidade e fortalecimento de relações construídas, ao longo dos anos, em diversas oportunidades e, por isso, a importância do vínculo. A equipe de saúde aparenta estar satisfeita com o trabalho por fazê-lo para pessoas que consideram merecer o melhor, em uma relação de mútuo carinho e respeito, ou seja, propícia a um diálogo repleto de encontros e conflitos em busca de melhorias coletivas.

Seu Farinha, que fez a opção de mudar-se para o lugar, cita motivações como a “vontade de vir pro campo morar” ou o fato do “pessoal aqui [ser] muito hospitaleiro” e ter “um nível de gratidão maior do que o de qualquer outro lugar que eu já tenha conhecido”. O autor entrevistado compartilha um relato sobre sua maneira de agir.

O fato de eu ser médico foi muito legal, porque a comunidade tinha uma carência inacreditável […]. Então, isso abriu as portas e o fato de eu atender todo mundo e ser muito brincalhão [...], além disso, uma pessoa acessível e alegre, pronto. […] Da

mesma forma como o pessoal do posto me trata, [...] brincando comigo, do mesmo jeito na rua. O povo daqui gosta de brincar comigo, gosta de me abusar, gosta de pregar peça.

Dona Paciência revela sua “paixão por interior, porque é uma vida mais tranquila, uma qualidade de vida, sem engarrafamento, sem violência, uma boa alimentação.” A sua escolha por mudar-se para o lugar também teve relação com o fato de já ter feito passeios e já ser “apaixonada pela natureza, pelo estilo de vida, por comer mais saudável, pelo posto de saúde”. Além desses fatores, algumas reflexões específicas propiciaram uma percepção deste, como

um lugar que você sente mais, que você se volta mais pra você, se volta mais pra viver em conjunto, em comunidade. Prestar mais atenção de que vida você está levando, se está apenas vivendo, né? Mas o que é que você quer de sua vida, de que forma você quer viver a sua vida […]. As pessoas me receberam aqui super bem, fui muito bem acolhida, […] eu sinto que o pessoal gosta, confia em mim, confia no trabalho do posto, principalmente, e de todo mundo. E eu me sinto daqui mesmo, parece que nasci aqui, cresci aqui, vivi aqui e só tou há 3 anos.

No caso de Seu Canuto, um terceiro profissional que se agregou à equipe, são relatados, como fatores de motivação para a mudança, “as belezas naturais, a questão da tranquilidade do lugar, a receptividade da comunidade e a questão da diversidade cultural. O que você tem aqui […], em termos de troca, o nível de informação você consegue em qualquer capital, eu acho, do mundo.” Ao comparar com outros lugares onde desenvolveu atividades, cita que “não teve esse envolvimento” e um dos motivos pode estar relacionado ao fato de ter chegado à unidade “em uma época muito difícil, com poucos recursos, uma demanda reprimida enorme, que continua grande essa demanda, pela interrupção constante dos serviços”. Essa carência pode ter contribuído para a criação de vínculos e construção de sentimentos de gratidão por parte das pessoas e um sentimento recíproco por parte do profissional. Ao comentar sobre os momentos em que precisa viajar ou passar muito tempo fora ele afirma sentir “saudade [do lugar], porque você chega, você sente aquela alegria, aquele pulsar. [...] eu me sinto abraçado o tempo inteiro pelas pessoas e pelo lugar”.

É possível notar a forma como os três expõem o respeito, a interação amorosa e essa criação de vínculos como marcante para a sua decisão de permanecer no

lugar. Porém, nesse quesito, um detalhe pertinente para a discussão é o fato dos profissionais graduados e melhor remunerados por sua função, não terem nascido no lugar. Essa colocação não visa questionar o sentimento de pertencimento desses profissionais agregados à comunidade, tão respeitados e, por muitos, tratados como nativos. Apontar para essa situação busca evidenciar a necessidade de descentralizar oportunidades de acesso à educação para evitar a obrigatoriedade de mudanças, daqueles interessados em continuar com os estudos, para lugares com menor condição de acolhimento no sentido amplo da palavra. Sem estas oportunidades há mais dificuldade de contar com profissionais comprometidos e amorosamente empenhados na busca pela melhoria da qualidade de vida da população na localidade em que atuam. No caso desta unidade, parece haver uma benéfica aceitação mútua entre os profissionais e a população, mas essa é uma reflexão necessária para todas as unidades de saúde em que não há, pelos mais diversos fatores, a construção de vínculos.

Para a maioria das pessoas do grupo é muito mais interessante poder permanecer e exercer suas atividades laborais no lugar onde nasceram, pois, segundo Dona Lia, “você tem afinidade, [...] você gosta e não tá no meio assim, de tanta violência [...], mas eu tenho contato direto com muitas pessoas de outros lugares e que me convida pra ir [...]. Não vou, mas eu aprendo muito.”

Porém, a falta de opções para continuar com os estudos universitários força os citados processos migratórios, algumas vezes mais complicados e pouco efetivos pelos transtornos trazidos por ter que se moldar a novas formas de relação social e de condições de vida sem muitas opções de escolha. É possível observar a situação no relato de Dona Lua.

O que eu sinto falta aqui é de oportunidades de crescimento a nível de estudo, sabe? De fazer uma faculdade, alguma coisa assim, mas no modo geral, eu gosto daqui. Eu passei 10 meses lá em Salvador, eu quase entrei em depressão, eu não saía pra nada, eu ficava presa no quarto o dia todo, assim, que eu não tinha vontade de sair pra nada e voltei. Assim, eu gosto daqui. […] Acho que tô presa aqui, as raízes fincadas. Minha família toda nasceu aqui, minha mãe, meus avós, minha bisavó que morreu com 103 anos. Nasceram todas aqui, se criaram aqui e morreram aqui. Então eu só não nasci aqui, mas eu sou daqui, sou nativa.

Atento a essa problemática, este estudo é desenvolvido em conjunto com uma equipe que vivencia uma situação diferenciada em relação à maneira como foi criado um vínculo profundo com a população. É possível que muitos dos aspectos tratados nesta pesquisa sejam influenciados pela escolha dos profissionais em morar no lugar e viver todas as suas interações. Essa perspectiva da formação de vínculos com todos os profissionais da saúde da família é um ponto importante para análise e uma categoria pertinente a ser pensada para qualquer estudo realizado sobre o SUS.