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4 RESÍDUOS SÓLIDOS: UMA TEMÁTICA AMBIENTAL E SOCIAL

4.3 A GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS: REFLEXÃO À LUZ DO PAPEL DO ENTE MUNICIPAL

A discussão em torno da gestão dos resíduos sólidos no Brasil passa, necessariamente, pelo estudo do Estado e do papel dos gestores públicos locais na consecução dos interesses coletivos por meio das políticas públicas. De acordo com a legislação brasileira, a gestão dos resíduos sólidos domiciliares é atribuição do Estado, precisamente do ente municipal. Entretanto, a relação desse com a gestão dos resíduos sólidos vai além, ao perceber-se que esta guarda em si interferências políticas para a operacionalidade dos modelos de gestão no país (WALDMAN, 2012).

Assim, a gestão dos resíduos envolve uma relação próxima com o município, sendo essencial que se reflita em torno dos aspectos que abrangem as políticas públicas em nível local. Para tanto, no presente tópico, será

destacado o estudo das políticas públicas. Constatada a complexidade envolvida no desenho de uma política, será ressaltado o papel do ente municipal diante do contexto da descentralização iniciada após a Constituição de 1988. Esse item busca demonstrar a ocorrência de uma alteração da natureza das relações intergovernamentais e o desenho de novas bases do Estado federativo no Brasil, com a transformação dos municípios em entes autônomos com capacidade de gestão.

Conforme Souza (2006), não existe uma definição única para as políticas públicas. Essas podem ser conceituadas de formas variadas, podendo-se entendê-las como ações formuladas para responder às demandas da sociedade e que, normalmente, envolvem o dispêndio de recursos públicos. Uma política pública é, assim, uma diretriz elaborada pelo Estado para enfrentar um problema. Em Deubel (2002, p. 19) é possível perceber o Estado enquanto uma instituição que formaliza as regras do jogo, sendo as políticas públicas a realização concreta de decisões:

El Estado es una institución que formaliza unas reglas de juego en ámbitos que pretende regular. Lo hace por medio de la promulgación de textos jurídicos y administrativos, de la creación de organizaciones y redes de interacción que sirven de enlace (relais) (Crozier, Friedberg, 1977: 166ss) entre la organización y el entorno pertinente en el cual desea desarrollar su acción. De modo que se consideran las leyes, el derecho en general, e las instituciones estatales como un intento formal de modificación, en un cierto sentido, de las reglas de juego en los ámbitos escogidos. Las políticas públicas, entendidas como programas de acciones, representan la realización concreta de decisiones, el medio usado por un actor en particular llamado Estado, en su voluntad de modificar comportamientos mediante el cambio de las reglas de juego operantes hasta entonces.

A atuação do Estado envolverá, portanto, a tomada de decisões, que priorizarão certas alternativas de ações em detrimento de outras. Assim, sempre existirão possibilidades diversas para o tratamento de um problema. Além disso, sempre haverá múltiplos atores envolvidos na formulação de uma política, seja direta ou indiretamente, que influirão nesse processo como forma de confirmar seus interesses no tocante à política discutida. Assim, “La decisión es el fruto de un largo y complejo proceso” (DEUBEL, 2002, p. 73). Por tal motivo, a formulação de uma política pública, no que tange à tomada de

decisão, encontra-se intimamente relacionada à atividade política. Para Deubel (2002, p. 74):

Por lo general la selección es el resultado de una actividad política en la cual los actores entran en conflicto, amenazan, buscan aliados, chantajean, negocian acuerdos, juegan con sus capacidades comunicativas, de propaganda, de movilización, de información, etc.

Tal afirmação encontra correspondência direta com as ideias defendidas por Frey (2000), quando o autor, ao explicitar a abordagem da “Policy analysis”, diferencia três dimensões da política: os conceitos de “polity”, para as instituições políticas, “politics” para os processos políticos e “policy” para o conteúdo da política. Afirma Frey (2000) que, embora distintas no que tange à conceituação, tais dimensões são entrelaçadas e se influenciam na prática da elaboração de uma política pública.

Os aspectos referidos – diversidade de atores e interferência da política na formulação das políticas públicas – são mais bem compreendidos quando escolhemos um modelo de análise e estudamos as políticas públicas de forma detida. Como observou Souza (2006), alguns modelos tentaram explicar as ações dos governos no âmbito das políticas públicas. Um dos modelos detalhados pela autora e que será aqui explorado é o “ciclo das políticas públicas”, por meio do qual essas são percebidas como um circuito formado por diversos estágios, tais como definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das opções, implementação e avaliação (SOUZA, 2006).

Conforme Frey (2000), as propostas são várias quanto às fases do ciclo das políticas públicas, mas todas elas encontram em comum a formulação, implementação e avaliação. Frey (2000) adota as seguintes fases: percepção e definição de problemas, agenda-setting, elaboração de programas e decisão, implementação de políticas e, finalmente, a avaliação de políticas e a eventual correção da ação.

Quanto à primeira fase, percepção e definição de problemas, o autor aponta como algumas temáticas se destacam, podendo ser percebidas pelos mais diversos grupos de atores e tendo relevância atribuída geralmente pela mídia. Mas é na fase da “agenda-setting” que se decide se um tema deve ser

inserido ou excluído da agenda, levando em conta os custos e benefícios dessas opções (FREY, 2000). Na fase seguinte (elaboração de programas e decisão), deve-se escolher dentre as várias alternativas de ações para dado problema. No que se refere à análise do processo de implementação, o autor cita as abordagens que enfocam a qualidade material e técnica da ação, e ainda enfoques que visam às estruturas político administrativas e os atores envolvidos. Por fim, na avaliação, analisam-se os impactos efetivos da política, levando à conclusão ou reinício de um novo ciclo (FREY, 2000).

A compreensão do ciclo de políticas públicas enquanto modelo de análise dessas ações estatais torna possível vislumbrar os diversos fatores envolvidos nesses processos. Nesse sentido, pode-se afirmar que não foi delegada ao Estado uma tarefa fácil, qual seja, a solução dos problemas públicos, mas a gestão de uma complexa engrenagem que depende de aspectos múltiplos para seu efetivo funcionamento.

Destaque-se que não só a tomada de decisão importa ao estudo das políticas, já que, como apresentado, o modelo do “ciclo das políticas públicas” abrange uma diversidade de etapas às quais devem ser dadas a devida atenção para o efetivo funcionamento da engrenagem.

Outra fase a ser aqui destacada é a implementação de uma política pública que, para Deubel (2002) é tratada, em vários casos, como um problema puramente administrativo, técnico e de simples execução. Porém, em via contrária, é nessa fase que a política pública se concretiza em uma realidade palpável. O autor explica que parte dos estudos sobre políticas públicas se originaram da constatação de que, apesar das decisões tomadas para a remediação de problemas concretos, estes, muitas vezes, não eram resolvidos, ocorrendo um gap na implementação dessas políticas. Ou seja, ocorre uma lacuna entre a decisão tomada e a realidade apresentada após sua implementação. Assim, a implementação, enquanto fase da política pública em que são gerados os atos e efeitos desenhados na fase da formulação, deve ser percebida com a cautela igualmente necessária à sua formulação.

Mas, como pode o Estado avaliar o êxito de uma política? É justamente o ato da avaliação a ser posto em prática pela gestão pública que permite que se esboce, com menor subjetividade, os efeitos da ação estatal. É certo que as

políticas públicas – mais do que se concretizar, ou seja, mais do que ser implementadas –, devem ser pautadas na busca pela efetividade, eficácia e eficiência. Para Deubel (2002), a avaliação de uma política constitui-se da coleta, verificação e interpretação de informações sobre a execução e eficácia da ação estatal, sendo instrumento valioso para conhecer e melhorar as ações públicas.

Dessa forma, pelo que foi apresentado, é possível perceber que o trabalho com as políticas, quaisquer que sejam elas, impõe um saber complexo e um trabalho multidisciplinar. Este, por sua vez, envolve não apenas a necessidade de conhecer a área específica em que se desenvolverá a política pública, mas também um conjunto de saberes acerca do desenho, implementação e avaliação de uma ação estatal. Contudo, nem sempre a administração pública consegue dar respostas adequadas aos problemas públicos, tornando-se necessário que aspectos internos da própria administração sejam revistos, a fim de readequar a capacidade estatal de solucionar os problemas coletivos.

A Constituição brasileira de 1988 consolidou a tendência descentralizadora, definindo um novo arranjo federativo para o país, transferindo funções, poder decisório e recursos para o ente municipal. Os municípios, a partir de então, passaram a ter maiores responsabilidades, necessitando atender a marcos regulatórios e ter capacidade política, financeira e técnica para formular, implementar, monitorar e fiscalizar as políticas, o que remete à necessidade de conhecer e colocar em prática cada elemento necessário ao ciclo de uma política. Com isso, ocorreram mudanças significativas na gestão pública, sendo os municípios revalorizados politicamente como espaços legítimos de governo, entes políticos importantes para uma maior eficácia e eficiência das políticas. Isso requer que a gestão pública local esteja preparada para assumir os encargos a ela transferidos.

A partir da promulgação da atual Constituição, foram criadas no Brasil novas institucionalidades no que se refere à esfera local. Nos anos 1990, diversas políticas foram transferidas para a escala municipal com base nas diretrizes constitucionais. A Constituição de 1988 enfatizou as competências comuns ou concorrentes entre os três entes federativos; outras competências

foram atribuídas exclusivamente aos municípios. Assim, a Carta Magna ampliou as atribuições dos municípios, conferindo-lhes responsabilidades nas mais diversas áreas, como saúde, educação, assistência social, e urbanismo, fixando, ainda, um significativo aumento da participação do ente local nas receitas tributárias.

Porém, esse aumento foi módico frente aos novos encargos transferidos. Posteriormente, importantes normativas jurídicas, atribuíram outras responsabilidades ao ente municipal que, somadas às demais políticas, constituem uma larga carga de tarefas a ser cumpridas. Nesse sentido, analisar o papel que vem sendo desempenhado pelos governos locais no que tange à formulação e implementação de políticas públicas não é tarefa fácil em função da diversidade de contextos existentes nos municípios brasileiros.

Para Filgueiras e Andrade (2010), a fragilidade financeira e a precariedade da máquina administrativa dos governos municipais estão entre os elementos que prejudicam a gestão local. O sistema tributário e fiscal brasileiros, introduzidos na Constituição instituíram um sistema de repartição de receitas que diminuiu a capacidade de gasto do governo federal e aumentou as transferências de recursos para o nível municipal. Os municípios assumiram alguns impostos, o que lhes deu a possibilidade de aumentar a arrecadação. Contudo, tais mudanças geraram situações distintas entre os municípios, em razão do porte diferenciado e da respectiva capacidade de arrecadação. Conforme explicitam as autoras:

Os municípios de pequeno porte, em sua grande maioria, tiveram suas atribuições aumentadas, sem que tenha ocorrido, contudo, aumento na capacidade financeira. Por sua vez, com maior autonomia fiscal, alguns municípios de médio e grande porte tiveram oportunidades de adotar uma agenda de iniciativas e projetos com mais independência (...). (FILGUEIRAS e ANDRADE, 2010, p. 125).

São diversos os entraves relacionados à descentralização. Filgueiras e Andrade (2010) afirmam ser necessário fortalecer a gestão local, isso porque é o governo municipal que desempenha função essencial na prestação de certos serviços como formulador/implementador de diversas outras políticas. Como afirmam, “no modelo brasileiro, é o governo local que operacionaliza o acesso

do cidadão aos bens e serviços urbanos e sociais aos quais ele tem direito” (FILGUEIRAS e ANDRADE, 2010, p. 123). Por isso, deficiências existentes nesse âmbito de governo podem gerar sérios problemas à consecução dos fins públicos.

Prova de tais deficiências é a constatação de que vários programas de descentralização fracassaram devido à falta de capacidade gerencial e técnica no âmbito local para absorver as funções atribuídas a seus gestores. É certo que o município, por se tratar de uma esfera local e mais próxima ao cidadão, pode se apresentar como menos burocrático, com uma estrutura organizacional menos dispendiosa sendo mais sensível na detecção dos problemas públicos e ágeis em sua resolução. Além do fato de que, em função da proximidade com os cidadãos, a política municipal pode se tornar mais transparente e participativa. Contudo, nem sempre, nos municípios, é possível contar com recursos humanos, infraestrutura e recursos financeiros adequados à formulação e implementação de políticas eficientes, de maneira que os aspectos anteriormente citados que fundamentam as opiniões positivas em prol da descentralização quedam em elementos figurativos diante de cenários municipais estagnados.

Como anteriormente apresentado, diversos são os elementos que entravam o avanço das políticas locais, devendo-se buscar um variado conjunto de soluções para que tais entraves não impeçam o desenvolvimento local. No tocante à gestão dos resíduos sólidos, tem-se agora uma atribuição explícita ao município das ações relacionadas à gestão desses materiais. Tal gestão deverá se basear em certos princípios e diretrizes esboçadas na legislação nacional (Lei 12.305/2010 - PNRS). Como bem destacaram Abramovay, Speranza e Petitgand (2013, p. 23):

A PNRS prevê que Estados e municípios elaborem e publiquem suas orientações gerais e os mecanismos pelos quais apoiarão a gestão integrada de resíduos sólidos. É óbvio que existem dificuldades imensas na elaboração desses planos, pela falta de capacitação técnica de pequenos municípios e, sobretudo, pela inércia a que conduz o vínculo entre as prefeituras e as formas já consolidadas (mesmo que pouco eficientes) de coleta e destinação dos materiais. Até julho de 2013 pouco mais de 10% dos municípios brasileiros encaminharam seus planos de gestão de resíduos ao governo

federal. Cria-se, assim, um círculo vicioso em que eles não recebem recursos para melhorar essa gestão, o que acaba por perpetuar a gestão ineficiente.

Nesse sentido, e sob tais premissas, no capítulo que segue, serão discutidos os dados coletados e as análises obtidas com base em pesquisa de campo no município de Natal/RN. Objetiva-se a análise das ações municipais que visam a inclusão socioprodutiva de catadores, investigando se essas proporcionam ao indivíduo a realização do trabalho decente, podendo-se afirmar – ou não – a existência de uma ocupação dentro dos parâmetros constantes nos princípios do emprego verde.

5 INCLUSÃO SOCIAL DE CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS EM