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GILBERTO FREYRE E A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA PATRIARCAL RURAL NO PERÍODO COLONIAL

THE MORALITY OF RURAL PATRIARCHY ROOTED IN BRAZIL: A READING BY GILBERTO FREYRE AND SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

2 A IMPORTAÇÃO DO PATRIARCADO PARA O BRASIL COLONIAL

3 GILBERTO FREYRE E A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA PATRIARCAL RURAL NO PERÍODO COLONIAL

Antes de se iniciar a análise de Casa-Grande & Senzala, vale ressaltar a descrição de Paulo Prado sobre os primeiros tempos da colonização. Segundo ele, não havia instituições em solo brasileiro, nem mesmo a instituição familiar havia se consolidado. Era um período de experimentações dos portugueses que chegavam ao Brasil, bem como de interações com a cultura indígena que aqui se encontrava.

Era essa a sociedade informe e tumultuaria que povoava o vasto território cem anos depois de descoberto. Do Pará até Cananéia poucos estabelecimentos se desenvolviam, em meio de desertos desolados. Habitavam-no cinco condições de gente, informa o autor dos Diálogos, testemunha de vista: os marítimos, os mercadores, os oficiais mecânicos, os salariados, os proprietários rurais, — uns, simples lavradores de mantimentos ou criadores de gado, e outros, ricos, senhores de engenho. A camada inferior da população era formada por escravos, indígenas, africanos ou seus descendentes. Caracterizava o europeu o desamor à terra, aquilo

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que o nosso historiador chamou de transoceanismo: o desejo de ganhar fortuna o mais depressa possível para a desfrutar no além-mar.

(...)

Eram certamente os que constituíram a estrutura básica racial, os primeiros colonos — degredados, desertores, náufragos — gente da Renascença, que o crime, a ambição ou o espírito aventureiro fizera abandonar a Europa civilizada. Apresentavam um produto humano fisicamente selecionado, tendo resistido aos perigos, tribulações e sofrimentos da longa e incerta travessia.

(...)

Por outro lado, nenhum obstáculo encontravam para a satisfação dos vícios e desmandos que na Europa reprimiam uma lei mais severa, uma moral mais estrita e um poder mais forte. Entregavam-se com a violência dos tempos à saciedade das paixões de suas almas rudes. (PRADO, 1981, p. 43-44).

Interessante ressaltar a descrição de Paulo Prado sobre a mulher nesse período inicial, marcadamente pela subordinação feminina tanto na cultura europeia quanto na cultura indígena e como tal característica se manteve no período colonial, mesmo após a consolidação da família rural.

De fato, só o macho contava. A mulher, acessório de valor relativo, era a besta de carga, sem direitos nem proveitos, ou o fator incidental na vida doméstica. Fenômeno androcêntrico, de origem portuguesa e indígena, que por tanto tempo perdurou na evolução étnica e social do país. (PRADO, 1981, p. 45).

Após esse período, as mulheres portuguesas começaram a vir para o Brasil e com o advento da economia baseada na cana-de-açúcar, formaram-se os engenhos, que eram comandados pelo senhor de engenho. Assim, durante muitos anos o Brasil vivenciou certa continuidade no tocante à sua estrutura social, qual seja: o estabelecimento da família patriarcal rural, com a economia baseada no latifúndio, na monocultura e no escravismo.

Gilberto Freyre, na obra Casa-grande & Senzala, descreve a sociedade patriarcal rural como a base da organização social e econômica do Brasil colonial. As cidades eram secundárias em importância e poder. A grande propriedade rural ditava as ordens, centralizando na figura do grande proprietário de terras o poder sobre todos os que se encontravam em seus domínios, incluindo mulher, filhos, familiares agregados, empregados livres, escravos, animais, a produção rural e a própria terra.

Segundo ele, assemelhava-se a um regime feudal. O latifundiário possuía o poder sobre a vida e morte das pessoas. Atuava como legislador, julgador e executor de seus comandos. Ditava as ordens, o comportamento e os destinos de todos. Não havia poder, nem do governo central da metrópole nem da Igreja, que suplantasse o dos senhores.

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“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. Os Senados de Câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorventes.” (FREYRE, 2003, p. 40).

Assim, tudo se desenvolvia sob as ordens do patriarca. A propriedade produzia seus próprios bens de consumo, havia um comércio interno, havia seu próprio capelão e igreja, empregados livres, agregados de todo tipo e escravos. Sérgio Buarque de Holanda também descreve esse período:

Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismos completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre-mestre desasnava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, frequentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesa proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas: (...) (HOLANDA, 2014, p. 94).

Ricardo Benzaquen, ao estudar a obra de Gilberto Freyre, também nos traz importantes informações acerca da visão, contida em Casa-Grande & Senzala, sobre essa constituição feudal das propriedades rurais brasileiras.

É interessante notar que, nesta citação, reaparece um tema discutido em CGS, o do caráter feudal de que se revestiu a colonização portuguesa no Brasil. Este feudalismo, porém, precisa ser duplamente qualificado: primeiro porque, como já foi examinado, ele privilegiava a autarquia em detrimento da vassalagem, adquirindo um aspecto singularmente anárquico; além disso, como Gilberto indica na página 38 de SM, aquela independência dos “senhores rurais” não parece ter se originado única e exclusivamente da hybris e conseqüentemente da indisciplina que distinguiam o português, visto que “nisso os favoreceu por longo tempo a Coroa, interessada nos lucros dos grandes proprietários e necessitando deles e de seus cabras e índios de arco e flecha, para a segurança da colônia, contra as tentativas de invasão de estrangeiros” (idem, p. 38). (ARAÚJO, 1994, p. 110-111).

Outra questão importante da colonização do Brasil é a influência do catolicismo, principalmente por meio da Companhia de Jesus. De fato, a unidade territorial e cultural do Brasil talvez não tivesse êxito não fosse pelos jesuítas, os quais foram capazes de percorrer e se

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estabelecer pelo vasto território e formar uma conformação no aprendizado e na difusão da fé católica. Nesse sentido, esclarece Freyre:

“Os jesuítas foram outros que pela influência do seu sistema uniforme de educação e de moral sobre um organismo ainda tão mole, plástico, quase sem ossos, como o da nossa sociedade colonial nos séculos XVI e XVII, contribuíram para articular como educadores o que eles próprios dispersavam como catequistas e missionários. Estavam os padres da S. J. em toda parte; moviam-se de um extremo ao outro do vasto território colonial; estabeleciam permanente contato entre os focos esporádicos de colonização, através da ‘língua-geral’, entre os vários grupos de aborígenes. Sua mobilidade, como a dos paulistas, se por um lado chegou a ser perigosamente dispersiva, por outro lado foi salutar e construtora, tendendo para aquele ‘unionismo’ em que o professor João Ribeiro surpreendeu um das grandes forças sociais da nossa história.” (FREYRE, 2003, p. 45).

A fé católica, portanto, atuou como elemento integrador do país, principalmente em termos culturais, consolidando em terras brasileiras os padrões morais católicos como regras de conduta a serem observadas por todos. Nas palavras de Gilberto Freyre: “Daí ser tão difícil, na verdade, separar o brasileiro do católico: o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade.” (FREYRE, 2003, p. 45-46).

Citando Sílvio Romero, Freyre ressalta que foram o catecismo dos jesuítas e as Ordenações do Reino que “garantiram desde os primórdios a unidade religiosa e a do direito.” (FREYRE, 2003, p. 46).

Sobre a participação dos jesuítas na colonização, vale também mencionar a contribuição de Paulo Prado:

Aqueles, pelo derivativo da fé missioneira, em que no desenfreamento das paixões do Novo-Mundo o jesuíta representou o poder moderador, o elemento de cultura moral, de exaltado misticismo com que aqui chegaram os primitivos missionários de Coimbra e Évora. Não cabe nas considerações resumidas deste ensaio indagar melhor da influência do jesuíta na formação da nossa nacionalidade. Passados os tempos primitivos e apostólicos em que desembarcaram com Tomé de Sousa os primeiros padres, a ação da Companhia, amoldando-se à forma da sociedade, à rebeldia dos insubmissos, foi sempre ativa, direta, constante, exercendo-se em cada família e cada indivíduo para ser eficaz sobre a coletividade. Pregavam pela palavra e pelo exemplo: a abnegação, o desprendimento de si foram entre eles qualidades nunca desmentidas. (PRADO, 1981, p. 62).

Dessa forma, verifica-se que Gilberto Freyre atribui enorme importância à família patriarcal rural na formação da nacionalidade brasileira, tendo em vista o seu protagonismo durante séculos de período colonial. Esse protagonismo começa a decair no início do século XIX,

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e principalmente, no período da virada para o século XX, em decorrência da rápida industrialização experimentada no Brasil, tendo como consequência a transição do poder das fazendas para as cidades. Este ponto será tratado no próximo item.

4 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E A TRANSIÇÃO DOS VALORES DO PATRIARCADO PARA A