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5 REFLEXOS E DESDOBRAMENTOS DA CULTURA PATRIARCAL

THE MORALITY OF RURAL PATRIARCHY ROOTED IN BRAZIL: A READING BY GILBERTO FREYRE AND SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

5 REFLEXOS E DESDOBRAMENTOS DA CULTURA PATRIARCAL

Em geral, identificamos os valores o patriarcalismo com o pensamento conservador. Contudo, o conservadorismo, em sua origem, está ligado à busca pelo passado, pelo modo de vida e de produção medieval. Nesses termos, segundo Ferreira e Botelho:

(...) Estruturado como reação ao Iluminismo e às grandes transformações impostas pela Revolução Francesa, o conservadorismo valoriza formas de vida e de organização social passadas, cujas raízes se situam na Idade Média. É comum entre os conservadores a importância dada à religião; a valorização das associações intermediárias situadas entre o Estado e os indivíduos (família, aldeia tradicional, corporação) e a correlata crítica à centralização estatal e ao individualismo moderno; o apreço às hierarquias e a aversão ao igualitarismo em suas várias manifestações; o espectro da desorganização social visto como consequência das mudanças vividas pela sociedade ocidental. (FERREIRA; BOTELHO, 2010, p. 12).

No Brasil, principalmente no século XIX, a divergência entre conservadores e liberais pautava-se, essencialmente, na questão política, de organização do Estado. Enquanto os conservadores defendiam a centralização do poder na figura do imperador, os liberais lutavam pelo poder dos oligarcas, descentralizado. Isso porque não houve um rompimento no modo de vida da sociedade brasileira como ocorreu na Europa com as revoluções burguesas do século XVIII. Mesmo após a independência, houve uma continuidade, “tanto em termos políticos, coma permanência da monarquia encabeçada pelos Bragança, quanto socioeconômicos, com a

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persistência da escravidão, do latifúndio, da agricultura de exportação.” (FERREIRA; BOTELHO, 2010, p. 13).

Com efeito, o projeto liberal logrou êxito após a proclamação da república, sendo instalado no Brasil o período conhecido como coronelismo, no qual o poder se baseava nos proprietários de terra, que, muitas vezes, tinham mais influência que o próprio poder político constituído nos governadores dos estados.

Contudo, em matéria comportamental, afetiva, familiar, sexual, não havia dissensão nesse período. Tanto os chamados conservadores quanto os liberais partilhavam das mesmas ideias, da superioridade do homem branco chefe da família. Somente no final do século XIX é que se começa a falar em direitos das mulheres, principalmente no tocante ao voto feminino. Não se pensava em igualdade de gênero, nem em meio aos conservadores nem aos liberais.

Tanto no período da economia rural colonial quanto no mundo capitalista da produção industrial, a superioridade do homem se faz presente, conforme descreve Saffioti, em uma leitura feminista e marxista do patriarcado:

Pode-se dizer que esta corrente sustenta que o patriarcado não resume a dominação da mulher, a submissão da mulher ao ‘poder do macho’, à disseminação de uma ideologia machista, mas esta também é um instrumento importante de exploração econômica que tem como principal beneficiário o homem branco, rico e adulto. Neste sentido, a violência contra a mulher seria fruto desta socialização machista conservada pelo sistema capitalista, desta relação de poder desigual entre homens e mulheres, que estabelece como destino natural das mulheres a sua submissão e exploração pelos homens, forçando-as muitas vezes a reproduzir o comportamento machista violento. (SAFFIOTI, 1979, p. 150).

Esse cenário começou a se modificar na década de 1960, com os movimentos de contracultura, a ida da mulher branca para o mercado de trabalho formal, a liberdade feminina promovida pela descoberta da pílula anticoncepcional, a institucionalização do divórcio e outros movimentos, como o rock androll, os grupos pacifistas, dentre outros, principalmente nos Estados Unidos da América.

No âmbito jurídico brasileiro, as mudanças foram paulatinas e dependeram da jurisprudência de vanguarda, para, posteriormente, as leis se adequarem às novas realidades sociais. Por exemplo, o divórcio somente passou a ser permitido em 19771. O Código Civil de 1916 vigorou até 2002 (Século XXI), e ainda falava em “pátrio poder”, concubinato e filhos

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ilegítimos. A mulher casada era considerada relativamente capaz e precisava de autorização do marido para trabalhar. (BRASIL, 1916).

No entanto, apenas com a Constituição Federal de 1988 teve início um novo paradigma das relações entre os gêneros e no tocante a família, uma vez que baseou as relações afetivas, em primeiro lugar, no princípio da dignidade humana, considerando a família como o ambiente de socialização e de realização pessoal dos indivíduos.

Conforme aponta Maria Berenice Dias, o conceito de família mudou após o marco constitucional de 1988:

A Família é o grande agente socializador do ser humano, deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade. È conhecida como base da sociedade e recebe especial atenção do Estado, conforme disposto no art. 226 da Constituição Federal de 1988. Tanto é estrutura pública como relação privada, pois identifica o indivíduo como integrante do vínculo familiar e também como partícipe do contexto social. O Direito de Família por dizer respeito a todos os cidadãos revela-se como recorte da vida privada, que mais se presta as expectativas e mais está sujeito a críticas de toda sorte. (DIAS, 2017, p. 69).

A Constituição de 1988 abriu o caminho para uma série de novos questionamentos, pois se baseia na dignidade da pessoa humana. As relações com os filhos passaram a se basear no afeto do que na biologia. Passou-se a falar em alienação parental e a necessidade dos pais darem amor a seus filhos. Novas formas de entidade familiar passaram a serem aceitas, pela lei e pelos tribunais, como as famílias monoparentais, famílias formadas por irmãos ou apenas pela convivência entre pessoas unidas pelo afeto e solidariedade.

Muito se avançou desde o início do século passado e as discussões identitárias estão cada vez mais em voga. Novas pautas de identidades sexuais e entidades familiares surgiram para reclamar o reconhecimento do Estado e da sociedade: famílias homoafetivas, poliafetivas, direitos dos grupos transexuais e transgêneros.

No entanto, mesmo nesse novo paradigma e após muitos avanços, a ideia da superioridade do homem heterossexual, branco e integrante da elite ainda hoje está entranhada em nossa cultura. De fato, ainda existe um padrão moral do homem médio brasileiro que, em última instância, se vincula aos valores da sociedade patriarcal. Esses padrões não se alinham a uma sociedade plural e democrática, não quando pretendem se aplicar sobre todas as pessoas.

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Na realidade social, verificam-se inúmeros reflexos dos padrões morais herdados do patriarcalismo: o grande número de crimes sexuais e violência doméstica, as cobranças sociais acerca do casamento e do “ter filhos”, a proibição ao aborto e às campanhas de educação sexual que abordem a diversidade sexual, a violência contra a população LGBTQ+, a dificuldade na inserção da população transexual e transgênera no mercado de trabalho, dentre outras tantas. São reflexos do pensamento de superioridade do homem branco e heterossexual que vigorou e vigora tão fortemente em nossa cultura.

Esses padrões morais advindos do patriarcado e do cristianismo, aliados ao controle estatal sobre o comportamento dos indivíduos, se traduzem em inúmeras dificuldades, quando se está diante de um Estado que se intitula democrático, mas se mostra incapaz de superar as enormes desigualdades econômicas e sociais entre as pessoas, bem como de proteger a diversidade de pensamento e comportamento.

Ou seja, as pautas progressistas ainda possuem muitas barreiras no Brasil. Aborto, igualdade de gênero, pautas LGBTQ+, famílias plurais. Muitas dessas discussões não são enfrentadas por nosso Parlamento. Algumas dessas pautas eventualmente estão sendo reconhecidas pelo Judiciário, como a união estável homoafetiva, que teve sua constitucionalidade declarada em 20112 e o casamento homoafetivo, efetivado pelo STJ em 20123.

Contudo, muitas outras demandas passam ao largo do reconhecimento social e estatal. Quando se fala em reconhecimento, se fala em respeito, em igualdade de oportunidades, de possibilidades, de efetivação de direitos. Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça decidiu pela impossibilidade de se reconhecer aas uniões poliafetivas como entidade familiar, entendendo que a existência da família depende da chancela estatal, que deve ser dada apenas quando houver a concordância da maioria social.4

O cerne da questão é o pensamento enraizado de que o homem branco, heterossexual e pertencente às classes dominantes, é superior aos demais indivíduos. O padrão moral herdado do patriarcalismo rural brasileiro se reflete não apenas no machismo e a desigualdade

2 Decisão do Plenário do STF na ADPF n° 132/RJ e ADI n° 4.277/DF. (BRASIL, 2011). 3

Decisão do STJ no RESP nº 1.183.378. (BRASIL, 2012).

4 Decisão do Conselho Nacional de Justiça no processo nº 0001459-08.2016.2.00.0000. (CONSELHO NACIONAL

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entre homens e mulheres, mas também na discriminação contra negros, pobres e a população LGBTQI+.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No pensamento brasileiro, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda descrevem, em suas obras, a importância crucial da família patriarcal na constituição da nacionalidade brasileira e identidade dos brasileiros. Demonstram como toda a organização econômica e social foram pautadas pela família patriarcal rural católica. Esta foi, durante séculos, a estrutura basilar da sociedade brasileira.

Assim, restou marcada em nossa cultura a superioridade do homem branco e heterossexual em relação aos demais indivíduos. Além disso, restaram enraizados em nossa sociedade valores como a castidade das mulheres (e a liberdade sexual dos homens), a virgindade para as mulheres, divisão de papéis sociais de acordo com os gêneros masculino e feminino, o casamento e o filhos como objetivos de vida e como indicadores de sucesso, dentre tantos outros valores.

Esses valores foram desafiados pela modernidade, que ao estabelecer o individualismo como valor preponderante, permitiu a busca das pessoas por suas formas individuais de expressão, de intimidade e de sexualidade. O marco desses movimentos ocorreu nos anos de 1960, quando surgiram movimentos de liberdade sexual e igualdade de gênero.

Aos poucos, muitos desses ideais progressistas foram conquistados nos países ocidentais e também no Brasil, principalmente após a promulgação da Constituição da República de 1988, que trouxe a dignidade da pessoa humana como valor fundamental. Contudo, padrões morais conservadores ainda dificultam e impedem as discussões e efetivações das demandas progressistas em matéria sexual e afetivas, bem como outras que desafiam a ideia da superioridade do macho.

Esses choques de valores foram evidenciados principalmente no período das eleições presidenciais de 2018, visto que talvez nunca se discutiu tanto os valores “morais” da nossa sociedade. Candidatos foram valorizados ou repudiados por se manifestarem contra ou a favor das regras contidas nesse padrão moral herdado do patriarcalismo. Foi possível verificar como

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questões relacionadas ao aborto, à liberdade sexual, as pautas de gênero, foram relevantes para as definições dos rumos do país.

As eleições demonstraram, mais do que nunca, que os padrões morais conservadores, os mesmos que imperaram por tantos anos na formação do país, conforme as descrições dos autores estudados neste trabalho prevalecem na sociedade brasileira, marcadamente nas questões envolvendo liberdade sexual e igualdade de gênero, ou seja, até hoje se encontram enraizados em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

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08.2016.2.00.000. Pedido de providências. União estável poliafetiva. Entidade familiar.

Reconhecimento. Impossibilidade. Família. Categoria sociocultural. Imaturidade social da união poliafetiva como família. Declaração de vontade. Inaptidão para criar ente social. Monogamia. Elemento estrutural da sociedade. Escritura pública declaratória de união poliafetiva. Lavratura. Vedação. Relator: Min. João Otávio de Noronha. [Brasília], 2018. Disponível em:

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______________________ Recebido em 18/02/2020 Aceito em 28/02/2020