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4 SOBRE AS LUTAS: CONHECENDO O DOJO

6.4 Quarto round: descrição das aulas

6.4.3 Golpe o-soto-gari (aula 3)

Aproveitando que os alunos estavam sentados, a professora demonstrou o golpe o-soto-gari com o aluno Ranger Verde. O golpe consiste em puxar o colega para si, tirando-lhe o equilíbrio, depois passar a perna atrás dele e finalizá-lo empurrando. Conforme sugere a figura a seguir:

Figura 3: Golpe o-soto-gari

Nesta atividade, os alunos iam de dois em dois ao centro da sala, em cima do

“tatame” formado por colchonetes, tentavam realizar o golpe o-soto-gari no formato de um combate, uma luta. Estes colchonetes sempre se desarrumavam, e cabia à professora e aos alunos os realinharem a cada vez. Diante dessa dificuldade, a professora poderia ter utilizado as placas de EVA que estavam no fundo da sala, do mesmo modo que foram aproveitadas na aula anterior (aula 2), já que estes tinham encaixes que poderiam diminuir a mobilidade no chão.

Questionada sobre a opção de utilizar o colchonete ao invés das placas EVA, a professora argumentou que o material “dá impressão de ser mais macio” e, portanto, poderia oferecer maior segurança ao aluno que tem medo de cair, além disso, descartou o EVA por ter uma área menor em referência ao que os colchonetes poderiam lhe proporcionar.

O ensino do golpe o-soto-gari não é uma sugestão no Caderno do Professor, no entanto, a professora afirmou ter consultado alguns colegas universitários questionando-os sobre atividades de Judô que não ferissem a integridade física dos alunos. Mediante essa busca, os universitários propuseram o desenvolvimento do golpe o-soto-gari por se tratar de um golpe de equilíbrio/desequilíbrio de fácil execução.

Nota-se que a inclusão do golpe o-soto-gari representa uma (re)criação do currículo oficial sugerido (CEF-SP), isto é, fica claro um confronto e compatibilização entre currículo e saberes profissionais docentes, já que o CEF-SP foi adaptado, questionado, contestado, transformado pela professora. Tal atitude demonstra que o

CEF-SP não foi interpretado como uma ferramenta técnica-instrumental pela professora. Ademais, o golpe o-soto-gari, além de ser de fácil execução, deu uma identidade ao conteúdo judô no CEF-SP, uma vez que, as atividades sugeridas no Caderno do Professor limitavam-se à atividades de equilíbrio/desequilíbrio e de domínio de espaço sem uma contextualização mais específica.

Sugerido ou não pelo currículo, quando indagado aos alunos sobre o que foi aprendido nas aulas de judô, o o-soto-gari foi o mais mencionado, retribuindo positivamente com a proposta da professora da inclusão do golpe. Vale esclarecer que na entrevista, os alunos não sabiam dizer o nome do golpe, muitos esqueciam ou consideravam um termo difícil de pronunciar, restando-lhes demonstrar ou descrever o movimento. Por exemplo, a seguinte fala de Bruce era acompanhada de gesticulação: “Passar tipo, a rasteira [...] você segura o adversário na camisa e pega

a perna dele por trás e ele cai”.

A estratégia de organização da atividade proposta pela professora foi que uma dupla por vez se posicionasse no centro da sala para realizar o golpe. Havia aproximadamente 15 duplas, formadas pelos próprios alunos seguindo o critério da aula anterior: por sexo e semelhança de porte físico. Indagada sobre os critérios de escolha de duplas, a professora esclareceu que se sente insegura em relação aos resultados ou consequências que a diferença de porte físico poderiam ocasionar, como um hematoma, um ferimento, o que seria muito inconveniente no início do processo de aprendizagem de uma luta, já que se parte do pressuposto de que o aluno precisa perder o medo de se machucar. Nesse sentido, a professora entendeu que as diferenças físicas entre os sexos (altura, força, peso) poderiam favorecer que os alunos se machucassem:

“Então, porque no começo, eu acho que como eles não têm muita noção do que dá para fazer com o corpo, eu tenho medo de machucar. [...] Para tentar ver assim, mais ou menos equilibrado, porque se às vezes pega um muito magrinho, um muito gordinho, um mais alto, mais forte assim. E aí, eu realmente tenho muito medo de machucar e um machucado nessa primeira etapa aí, acaba logo, não vai fazer mais nenhuma aula. Ainda pode virar uma bola de neve, de vir pai reclamar que tá apanhando, que não sei o que. Então, é por segurança mesmo. Se você coloca mais ou menos equilibrado, do mesmo tamanho... Pela luta que tem a característica que tem, no começo, você não tem controle do que você pode fazer, depois acho que não tem muito a ver, mas no começo, eu prefiro, por segurança”.

No entanto, o CEF-SP sugere que na abordagem do tema de lutas, os alunos troquem de companheiros, justamente para poder sentir e traçar novas estratégias mediante estas diferenças físicas, - mais alto, mais baixo, mais leve, mais pesado etc. Este tipo de vivência seria interessante para uma possível reflexão posterior. Muitas vezes, o aluno que é considerado obeso e supostamente inabilidoso em outras modalidades pode se destacar no Judô, o que relativizaria suas qualidades. Indagada sobre o proposto, a professora lamentou o pouco tempo para abordar o conteúdo judô como justificativa para não sugerir a variação das duplas. Contudo, em nenhum momento mencionou sua intervenção pedagógica como condutora da troca de companheiros das duplas, pelo contrário, transferiu a responsabilidade aos alunos,

tratando o caso como um movimento “natural” e espontâneo decorrente do “cansaço”

dos mesmos parceiros, sendo assim, buscariam por si mesmos novos desafios, como trocar de parceiros.

Outra limitação que ocorreu na aula foi a relação entre a quantidade de duplas e o palco (dojo) de vivência. No único “tatame” só pisava uma dupla por vez, e isso aumentou o tempo de espera dos alunos. A dinâmica da atividade consistia em um da dupla atacar com o “o-soto-gari” e o outro não oferecer resistência na aplicação do

golpe, e posteriormente invertiam-se as posições.

A grande maioria dos alunos estava prestando atenção na aula; no entanto, não era o caso de Carl Johnson e Lion que conversavam no canto da sala sem ao menos olhar o que estava sendo feito na aula.

Durante a aplicação do golpe, a professora deu grande atenção a cada dupla, e nos momentos de dificuldades dos alunos procurou instruí-los com orientações verbais e, caso necessário, demonstrava novamente. Na vez de Elektra e Atena, a primeira aluna sentiu dificuldades para aplicar o-soto-gari; no entanto, após a orientação da professora e, posteriormente, na execução correta do golpe, Elektra demonstrou uma alegria intensa, com muita comemoração, que foi expressa em pequenos saltitos verticais com palmas e seguido do comentário: “luta é legal, eu

gosto da aula de luta, tá ficando divertido”.

Elektra e a professora não possuíam uma relação amigável e isto pôde ser percebido em dois momentos: durante a primeira fase da pesquisa de campo (período de adaptação ao ambiente escolar) e na entrevista inicial com a aluna. Nos momentos de observação preliminar antecedentes ao conteúdo Judô, Elektra não participava das aulas de Educação Física, alegando ter problemas na coluna vertebral. A professora

não acreditava, mas, incerta da argumentação da aluna, solicitava relatórios escritos sobre as aulas como meio de compensação pela ausência de Elektra nas atividades.

Entretanto, no conteúdo “lutas”, a aluna integrou-se espontaneamente nas atividades. O sentido de mobilizar ou recusar definitivamente não possui o mesmo significado para professor e aluno. Na fala da professora, Elektra só reintegrou-se às aulas de Educação Física por não suportar o tédio e a dificuldade de elaborar relatórios escritos sobre o tema de voleibol, e mais do que isso, ainda exaltou a eficácia de seu método de induzir o aluno a participar da aula. Entretanto, na entrevista inicial da aluna, Elektra afirmou que não gostava de voleibol e por isso, exagerou a gravidade de suas patologias médicas como justificativa para não participar das aulas, diferentemente das lutas, que repentinamente lhe trouxe a "cura".

O caso de Elektra nos mostra como um aluno pode estabelecer relações epistêmicas e identitárias com alguns conteúdos e de exclusão de outros. A aluna, já havia praticado Karatê com seu tio e sua sobrinha, o que contribuiu para a mobilização no conteúdo de lutas, mesmo possuindo uma relação social conturbada com a professora que não favorecia a mobilização em relação às aulas de Educação Física. Conforme expus em linhas anteriores, na entrevista inicial a aluna se dizia não tão mobilizada, por não compreender com clareza a explicação da professora, e por timidez preferia omitir-se e inventar complicações de saúde. Para reverter esse quadro, a aluna gostaria que a conduta da professora fosse diferente, como no depoimento a seguir:

"Eu acho que se ela passar, perguntar, perguntasse mais do que eu sei [...] acho que se ela explicasse, pegasse, tivesse mais tempo de aula de Educação Física [...], por exemplo, um aluno que tivesse com bastante dificuldade em vôlei, é pra ensinar, pra poder fazer aula junto com a turma, porque a maioria das turmas já sabe jogar vôlei e eu não consigo" (Elektra).

O que Elektra protesta é por um papel mais ativo do professor, o que significa ser mais paciente e privilegiar os menos habilidosos, no sentido de demonstrar mais vezes, oferecer melhores instruções, ter mais paciência, conhecer melhor o aluno, etc.

Ademais, Elektra acreditava que a professora seria mais atenciosa com os alunos porque são poucos que já fizeram lutas fora da escola em comparação ao voleibol ou ao futebol e, portanto a professora estaria em uma situação que a obrigaria a se dedicar mais para atender a maioria dos alunos. Charlot (2001, p.18) não

relações com os saberes”, mas que, “também é um lugar que induz relações com os saberes”; então neste caso, a professora e alunos foram induzidos a travar relações com os saberes da luta de modo diferente dos outros conteúdos, talvez com maior atenção, pois, quando comparados com os esportes coletivos, em que muitas vezes o professor espera que os alunos já tenham vivenciado em ambientes extra-escolares, ou seja, já tenham conhecimentos prévios, ou, nas palavras de Charlot, seriam "alunos dotados". E, de fato, Elektra estava certa, pois durante as aulas a professora demonstrou em todos os momentos paciência, e atenção a todos os alunos.

Enquanto a maioria dos alunos praticou o o-soto-gari apenas uma vez - uns por não desejarem repetir o golpe e outros impossibilitados pela relação entre tempo e quantidade de alunos - Atena pisou no tatame três vezes: inicialmente para praticar o

o-soto-gari com Elektra, como descrito anteriormente, depois com Kelly e finalmente

em desafio à Dirce.

Decididamente mobilizada, Atena também frequentou o fundo da sala, local40

onde os meninos realizavam golpes de judô e de outras lutas durante o tempo em que esperavam sua vez, e assim não ficavam sentados e parados. Entretanto, e contraditoriamente, Atena afirmou em entrevista inicial que não via sentido na aula de Educação Física, uma vez que os saberes ensinados não condiziam com a profissão que gostaria de seguir. A mesma opinião de negação aos saberes da Educação Física persistiu em sua fala mesmo mobilizando-se no conteúdo de lutas. Isto é, sua relação identitária com a disciplina é fragilizada por não encontrar um sentido na Educação Física, partindo da premissa que os empregos e cargos mais rentáveis na sociedade envolvam predominantemente a posse de saberes enunciáveis. Sendo assim, a Educação Física não pertencia aos seus planos de trabalho, já que também supõe predominantemente uma figura de aprender de domínio de uma atividade. Sobre esse pano de fundo, senti provocado a compreender como uma pessoa com relações epistêmicas, identitárias e sociais declaradamente desfavoráveis à Educação Física, apresentou uma mobilização acima dos demais alunos. Indagada sobre isso, a aluna é ríspida e direta em sua resposta, afirmou achar divertido aprender lutas, o que não significa ser importante ou útil. Nesse caso, apropriar-se da Educação Física tem

relação mobilizadora exclusivamente com o prazer que a disciplina pode lhe proporcionar.

Quando a maioria dos alunos já havia vivenciado o golpe o-soto-gari na aula, a

professora perguntou aos alunos se “mais alguém gostaria de fazer”. Foi uma

provocação para obter qualquer tipo de manifestação de algumas meninas que não participaram ativamente da aula: Santana, Julia, Elisabete e Liliana. No entanto, nenhuma delas se pronunciou.

Para finalizar a aula, a professora realizou a chamada, assim como registrou o nome das alunas que não participaram. Novamente, conforme ocorreu na aula anterior, durante a chamada de presença, alguns alunos ainda brincavam de luta nas placas de EVA no fundo da sala, entre eles, Bruce Lee.

Apesar da professora ter trazido um golpe do Judô para a aula, os alunos só tiveram uma única vivência, o que possivelmente foi insuficiente para a apreciação e aprendizagem do movimento. Um dos possíveis indicativos desta insuficiência foi expresso com os alunos lutando no fundo da sala no mesmo momento da atividade principal. Talvez, seria o caso de ter feito a atividade com várias duplas simultâneas, o que, por consequência, diminuiria o tempo de espera dos alunos e possibilitaria mais e novas experiências de movimento. Parece-me que a professora ficou presa ao espaço físico e o material disponível, no caso, o dojo (tatame). Além disso, também podemos levantar a hipótese de insegurança do professor em trabalhar este elemento da cultura de movimento. Por não deter suficientes conhecimentos específicos e pedagógicos sobre o conteúdo de lutas, a professora procurou reduzir as variáveis de imprevisibilidade para garantir atenção a todos. O que se quer dizer é que talvez, com receio de alguém machucar ou de perder a confiança dos alunos, a professora delimitou um espaço e uma quantidade pequena de alunos, dois por vez, para que se pudesse ter maior controle das situações.