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4 SOBRE AS LUTAS: CONHECENDO O DOJO

6.2 Segundo round: o CEF-SP e os saberes da professora

6.2.1 As lutas e os saberes da professora

A professora afirmou desenvolver o conteúdo de lutas nas aulas de Educação Física, conforme as modalidades sugeridas no CEF-SP. Entretanto, reconheceu que, antes do currículo ser implementado, o modo como tratava o conteúdo lutas era diferente. Antes, a professora reduzia o conteúdo a alguns jogos e brincadeiras que objetivavam trabalhar algumas capacidades ou habilidades físicas presentes nas lutas, como o "equilíbrio, o empurrar, segurar, força", o que não levava muito tempo, e nos esclareceu que dispendia cerca de duas semanas com esta matéria.

Questionada sobre seus saberes específicos sobre as lutas, a professora negou ter estudado este conteúdo em sua formação inicial e continuada. Justificou que, durante a faculdade, algumas disciplinas referentes à prática dos elementos da cultura de movimento, como as lutas, eram optativas, cabendo ao futuro professor escolher as que mais lhe interessavam.

Não parecendo dar muita importância ao fato, a professora informou ter feito um "workshop" de karatê com duração de uma semana. Contudo, esclareceu-nos que este curso de curta duração não a preparou para ensinar lutas na escola.

Seu pouco conhecimento específico em lutas refletiu-se na pequena quantidade de aulas ministradas deste conteúdo, que se reduziam a jogos e brincadeiras que envolviam o desenvolvimento de capacidades físicas das lutas. Fica claro que o fato de a professora não ter estudado lutas em sua formação acarretou um trato pedagógico mais superficial. De fato, há pouco tempo que os currículos de formação inicial de professores de Educação Física têm incluído disciplinas específicas de lutas.

Sem uma base de conhecimento para lutas, a professora afirmou que utiliza as informações e sugestões apresentadas pelo CEF-SP como amparo na formulação de suas aulas. Mencionou que o currículo é "auto-explicativo", o que nos leva crer que o material é parcialmente interpretado como uma ferramenta técnico-instrumental: "Então se você segue a sequência lá certinho, não tem como ter erro". Isto é, obedece a uma ordem de repertório de técnicas para se operar (CONTRERAS, 2002).

Tal interpretação leva a considerar o CEF-SP como um conjunto sequencial de procedimentos que põe em risco a autonomia do professor e desconsidera os contextos locais de cada turma e escola. Isso significa submeter-se à lógica hierárquica e dicotomizada entre professores/pesquisadores universitários

(elaboradores de currículos, teorias, livros, etc.) e professores escolares (aplicacionistas). Ademais, tal também implica uma concepção técnico-instrumental de currículo e uma postura técnico-aplicacionista, que nega os saberes próprios do trabalho docente, e assume para os professores um papel de aplicadores de saberes elaborados por outrem.

Entretanto, a professora também assegurou que faz adaptações de certas sugestões do CEF-SP, adequando-os conforme as característica dos alunos, da escola e com seus próprios saberes docentes, o que nos mostra a existência de uma compatibilização e confrontação dos conteúdos propostos com os saberes profissionais docentes. O saber da experiência do professor coteja o conhecimento curricular, o que determina como será o trato pedagógico de determinado conteúdo: "aí quando dá alguma diferença, a gente adapta, mas aí é prática, né [...]. Mas a gente

faz, assim, que pela prática do professor você sabe o que vai dar certo e o que não vai".

Trata-se de saberes oriundos da experiência de trabalho cotidiano, criadores de alicerces da prática, tornando-se “a condição para a aquisição e produção de seus

próprios saberes profissionais” (TARDIF, 2002, p.21). E é o que se espera no trabalho do professor que, ao invés de negar uma proposição curricular ou apenas aplicá-la, deve contestá-la, recriá-la, adaptá-la tendo em vista os diferentes contextos, valores e saberes próprios.

Como já é sugerido o ensino de lutas no CEF-SP, a professora entendeu ser importante ensiná-los, mas reconheceu que muitos professores não abordam o tema pela suposta violência intrínseca às lutas, o que poderia despertar no aluno supostas tendências violentas. Por mais comum que seja este argumento, a professora posicionou-se a favor do ensino das lutas, uma vez que se trata de uma oportunidade de desmistificar a associação com a violência, de diferenciar "luta" e "briga":

"É importante assim, mas depende de como você coloca, porque assim, tem muita gente que tem receio de trabalhar a luta porque a luta [...] vou trabalhar a luta, vou instigar a violência e a ideia que se você trabalha a luta direito é ... você desmistifica isso [...]você não vai tá promovendo a violência, pelo contrário, você vai tirar aquela visão que luta é briguento, até porque a luta como filosofia você tira a briga."

Tal argumentação da professora converge com a sugestão de Olivier (2000), de transferir ou dar novos significados às brigas que ocorrem no pátio, transformando- os em jogos de lutas com enfoque pedagógico, o que permitiria aos alunos a reflexão

crítica sobre temas associados à violência e sociedade. A intencionalidade da professora de desmistificar a relação entre luta e violência baseia-se em experiências anteriores com o ensino da luta, conforme seu depoimento:

"No primeiro colegial tem boxe, quer dizer no terceiro [...] é super legal trabalhar o boxe e não dá briga: - ai, mas vai dar briga. E não dá briga, eu acho assim que pelo contrário, você acaba tirando essa ideia deles [...]. Mesmo fazendo as práticas, algumas a gente pegou colchonete, bexiga, mas assim foi super legal, vou te falar: deu problema? Não, não deu e ninguém ficou mais violento por isso. E por outro lado, as pessoas perceberam assim, dá para perceber que a luta ela bem trabalhada, ela vai diminuir a violência e não o contrário".

De acordo com a professora, a luta como meio de diminuição da violência é resultante da prática da atividade em si; quer dizer, a luta ressignificaria alguns pré- conceitos impregnados, como a afirmação de que ela tem função de ataque-defesa contra um bandido, um inimigo etc. À medida que se pratica lutas, os objetivos iniciais, como a autodefesa, transformam-se em objetivos próprios e internos da luta: "Porque,

às vezes, você até fala: - vou fazer lutas porque se alguém vier brigar comigo, eu sei me defender. Quanto mais você faz as lutas, você vê que o objetivo não é esse, e aí

você muda sua postura quanto a isso”.

Indagada se a principal importância da luta estaria na inibição da violência, a professora negou esta única funcionalidade, e acredita que a luta é uma prática que envolve capacidades físicas específicas como a: "questão do limite, da resistência, do

equilíbrio". Também a igualou com outras atividades físicas, como mais uma opção

de modalidade para a manutenção da “forma física”. No entanto, a professora enalteceu o propósito terapêutico da luta como uma prática de controle de ansiedade e estresse:

“É uma maneira de descontar, porque você pega tudo de ruim que tá em você e quando você soca aquele saco de areia, você descarrega tudo aquilo de energia ruim que está dentro de você, então é uma maneira de eliminar o estresse também, por

que não?”

Tal ponto de vista da professora assemelha-se à justificativa de Olivier (2000), para quem o trato de lutas na escola possui um caráter funcionalista, isto é, desempenha um papel positivo em relação à pacificação e superação da violência. Assim, para a professora, o que justifica a implementação do conteúdo na escola não

é uma concepção da luta como manifestação da cultura de movimento, mas principalmente como compensação às tensões emocionais do dia-a-dia.

O discurso de que a luta possui uma função pacificadora e de controle emocional é algo amplamente veiculado nas mídias e nas falas de professores e praticantes. Contudo, tal afirmação encobre os casos de indisciplinas, como aqueles praticantes que utilizam os ensinamentos da luta para brigar na rua. Por exemplo, as torcidas organizadas de futebol já oferecem aulas de lutas para seus membros.

Portanto, dizer que a luta elimina a “energia ruim” em direção ao controle emocional é

uma afirmação insuficiente, pois além de existir casos de pessoas que praticam lutas para “brigar”, tal discurso não possui uma sustentação teórica pelo método científico, dessa forma, pode representar um argumento de senso comum.

Questionada sobre a contribuição do conteúdo das lutas na vida do aluno, a professora colocou o tema em nível de igualdade com outros conteúdos da Educação Física. Para ela, todos os conteúdos ajudam na formação do aluno para sua vida adulta, especialmente como método para manter uma vida saudável.

Entendo que este ponto de vista da professora, de colocar a luta em “pé” de igualdade com outros conteúdos é um grande avanço em termos de legitimação e consolidação dos conteúdos próprios da Educação Física, atendendo então ao apelo das diversas proposições teórico-metodológicas propostas nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil, que já sugeriam uma Educação Física com a finalidade de apropriação crítica dos elementos da cultura corporal de movimento.

Ademais, a professora também acredita que o conteúdo luta pode proporcionar algo peculiar em comparação aos demais elementos da cultura de movimento. A luta teria finalidade “disciplinadora”, pois praticar a luta de maneira regular e sistemática

para melhorar as habilidades motoras na modalidade exige "disciplina", no sentido de persistência.

Todavia, não é possível afirmar que a luta possui um caráter disciplinador ou de função terapêutica. Isso depende muito do método adotado por cada professor e instituição. Nesse sentido, vale a pena ler as palavras de Parlebas em Betti (2009, p. 63): “A prática do judô ou do rugby pode formar tanto patifes como homens perfeitos preocupados como o ‘fair-play’”. Por exemplo, existem academias de luta nas quais o

foco principal é a competição, e por isso, diversos rituais da luta (saudação, hierarquização) são dispensados. Também existem academias de

ginástica/musculação que oferecem aulas de luta, mas os alunos, na maioria das vezes, as procura com intuito de modelação estética do corpo.

Além disso, este discurso que associa luta com disciplina, com controle de ansiedade, possui uma relação de causa-efeito não comprovada30, como se a simples

prática da luta ou do esporte, independente de métodos pedagógicos, promovesse automaticamente tais benefícios.

Disciplina, persistência, garra, paciência estão igualmente presentes em outras modalidades esportivas; no entanto, tais elementos são exclusivamente valorizadas nas modalidades de lutas pela professora. Segundo a docente, quem joga futebol ou handebol conseguirá ao menos participar do jogo: "quem jogou uma vez, joga bem", já a luta depende de um ambiente formal com uma determinada regularidade para se atingir os níveis hierárquicos internos, como a graduação dividida em faixas. Portanto, a professora entende que a disciplina presente no sistema hierárquico das lutas é elemento que garante desenvolvimento ao praticante, em outras palavras, é como se a ação de treinar com regras rígidas assegurasse o êxito. Já para outras modalidades, especialmente os esportes coletivos com bola, haveria necessidade de um talento inato:

“Diferente do futebol, que você não vai virar profissional porque teve disciplina e

treinou sempre, você não vai melhorar seu nível. A luta te dá essa bagagem se você treinar certinho, treinar, e que vem pela frente, você vai conseguir melhorar seu nível, nesse ponto a luta é diferente, é igual balé [...] agora futebol tem nada ver, eu ser regular, se eu treinar três vezes por semana não vai me fazer diferente daquele que

joga uma vez por semana”.

Com a implementação do CEF-SP, indaguei se a professora vem modificando seu modo de ministrar aulas de lutas desde então. No depoimento da professora, percebe-se como o conhecimento pedagógico do conteúdo, isto é, o modo de conduzir, planejar e construir o conteúdo de maneira que os alunos compreendam, foi sofrendo alterações com a experiência docente:

"Acho que você vai melhorando a maneira de trabalhar, [no conteúdo esgrima], igual no primeiro ano, eu fiz igual o que estava na apostila, no segundo ano levei para academia, para ver uma luta, achei mais legal ver ao vivo do que em vídeos, no

30 Assim como vários discursos chavões na mídia: esporte é saúde; esporte tira os jovens das drogas”. Não há estudos que comprovem isto de modo cabal.

terceiro ano já levei para assistir campeonato de MMA, que teve aqui [na cidade], a gente vai melhorando, né?"

Dessa forma, suas estratégias para a construção do conhecimento pedagógico do conteúdo objetivam afetar os alunos em pouco tempo, já que o CEF-SP está sobrecarregado de conteúdos, e não há muito tempo para desenvolver as sugestões do material. Por isso, a professora propõe "fazer com que os alunos aprendam mais

em menos tempo" e "fazer de um jeito mais otimizado" para que se sintam provocados

a praticar fora da escola e/ou apreciar criticamente algum elemento da cultura de movimento em suas diversas manifestações, como um espetáculo televisivo de luta, por exemplo.