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4 SOBRE AS LUTAS: CONHECENDO O DOJO

6.9 Nono round: “tudo, tudo diferente”

Nos momentos que antecediam as aulas de judô, a expectativa dos alunos era aprender características “técnico-táticas” da luta e se resguardarem de possíveis atos violentos dos colegas que lhes poderiam causar danos físicos e, por consequente, esperavam momentos de constrangimento e discórdia.

De fato, o ensino de técnicas aconteceu; embora timidamente, o o-soto-gari foi ensinado aos alunos. Os danos físicos previstos decorrentes da violência intrínseca das lutas não ocorreram, pelo menos nas aulas diretivas da professora; todavia, na periferia do dojo a violência foi expressa na briga entre Bruce Lee e Carl Johnson. Nesse caso, a periferia do dojo, sendo tempo e espaço de não-diretividade docente, representou a reprodução de estereótipos já presentes no universo das lutas, tais como: masculinização, esportivização, espetacularização, seleção dos mais aptos; e, talvez, o mais grave, a violência.

Nesse sentido, diversos são os alunos que reconheceram ter criado expectativas e medos sobre a possibilidade de se machucarem por causa de um golpe indevidamente aplicado. No entanto, durante e depois das aulas de judô surpreenderam-se com o benefício de manterem-se intactos mesmo após o desferimento e trocações57 do golpe o-soto-gari e dos jogos de lutas. Especificamente,

os alunos também pensavam que o judô incluía golpes de lutas que visam o

57 Trocação é uma expressão específica das lutas. De modo geral, significa “trocar golpes”, e

detalhadamente: “arte de atingir o oponente com golpes de contundência como socos, chutes, cotoveladas, joelhadas e cabeçadas [...] No MMA (artes marciais mistas), sua aplicação pode ser feita em pé [...] ou no chão (MMA BRASIL, 2013).

afastamento (como no karatê, boxe, kung fu, taekwondoo) e não à aproximação do adversário (como no judô, jiu-jitsu, sumô).

“Eu achei que ia me machucar bastante. Não me machuquei” (Elektra).

“Ah, que foi só de leve também, né? Tipo, jogar no chão sem maldade assim. Tipo,

empurrar...jogar no chão devagarzinho para não machucar” (Morfeu).

“(Esperava)tudo, tudo diferente, tudo [...] Eu esperava que fosse só brigar, essas

coisas, bater, mas não é. A professora colocou brincadeira no meio, a gente se divertiu

muito” (Ana).

“Hã...eu pensava que tipo assim que eu ia me machucar...sei lá. Que tipo assim, ia

cair e essa pessoa que me derrubasse ia me derrubar forte pra me machucar [...] (mas) foi diferente, a pessoa teve mais cuidado comigo” (Talita).

“Eu esperava diferente, por causa que eu achava que era violento, só. Pensei que

fosse violento, mas não era nada disso. [...] Quando eu vi, quando eu lutei com meus amigos eu não achei tão violento. Eu pensei que fosse de soco, chute forte, essas

coisas” (Lucas).

“O jeito que eu vi assim que algumas pessoas falava era bem mais diferente.

Poderia dar soco, poderia dar alguns golpes a mais [...] Eu achei que era bem diferente o Judô, mas quando eu vi aqui, não tinha nada a ver [...] você vai lá com

certas regras” (Elisabete).

“Pensei que luta você de machucar, essas coisas. Mas não, luta é tranquilo. [...]

Aconteceu que foi tudo em paz. Ela explica certinho e você sai de lá sem nenhum

arranhão” (Liliana).

Ao invés de agarramentos, imobilizações e desequilíbrios, os alunos esperavam que estes ou outros golpes poderiam machucá-los. Nesta perspectiva, está claro que antes do trato do judô, os alunos possuíam uma visão limitada em referência à identificação e diferenciação das diversas lutas. Obviamente, não é possível acessar a origem dessa representação de lutas em cada aluno, no entanto, deve-se considerar que o esporte e a mídia possuem uma relação simbiôntica, em que ambos se apoiam mutuamente para valorização do esporte. Sendo assim, o esporte que tem mais se relacionado com as mídias nos dia de hoje é o MMA (Artes marciais mistas). Emissoras de televisão aberta e fechada têm transmitido lutas de MMA de brasileiros no UFC58, bem como têm discursado sobre a luta em seus

programas esportivos. Como já presente no próprio nome, as artes marciais mistas

58 Abreviação para Ultimate Fighter Championship. Trata-se de uma empresa pertencente a um grupo de empresários que organiza e combina combates entre seus lutadores (empregados). Para cada categoria de peso existe um cinturão, que é almejado por todos lutadores.

(MMA) juntam diversas lutas e decorrente disso, cria-se um novo padrão de lutar: mais técnico-tático e sem doutrinações59.

Como a televisão aberta possui grande abrangência nas residências das pessoas, possivelmente estes alunos conhecem o MMA. Ademais, sabe-se por Coelho (1981)60 citado por Betti (1998, p.38) que o modo que a televisão transmite

seu conteúdo resume-se em um modo “efêmero, rápido e transitório, com rápidas mudanças de planos e imagens, a realidade é reconstruída e transmitida de maneira

fragmentada, sem antecedentes e consequentes”.

Com base nisso, pode-se explicar a dificuldade dos alunos em identificar e diferenciar as diversas lutas presentes no mundo, pois o modelo de luta que assistem mostra-se “misturadas”, e representada em um novo padrão de lutar. No MMA, cada lutador possui no mínimo conhecimento de uma modalidade de luta em pé (karatê, boxe, muay-thai, kick-boxing) e uma em solo/chão (jiu-jitsu, judô, wrestling). Todavia, por uma questão de eficiência técnico-tática do MMA, os lutadores se comportam de uma maneira parecida, não expressando-se como mandam suas respectivas modalidades de lutas (doutrinas). Até é possível, mas não é vantajoso, por exemplo, utilizar uma guarda61 do boxe para lutar MMA, já que o tronco estaria exposto a sofrer

chutes baixos e quedas. Nesse sentido, como já é objetivo da televisão propor uma realidade já pronta para atingir o número máximo de telespectadores, torna-se difícil acessar as diversas modalidades de lutas em um combate de MMA, quiçá que os alunos identifiquem essas diferenças.

Outra expectativa não consolidada refere-se ao aluno Chuck Norris, que não esperava que houvesse aula “teórica”, pois acreditava que as aulas seriam abordadas somente na quadra, com os gestos das lutas. Na realidade, o aluno criou essa expectativa quando a professora solicitou aos discentes a levarem uma camisa larga como traje específico para aulas de judô. Esta solicitação foi proposta uma aula antes do conteúdo; entretanto, a primeira aula foi expositiva e dentro da sala de vídeo: “a

59 O lutador e ator Bruce Lee, no livro Jeet Kune Do, acusa as modalidades de lutas e artes marciais de se fecharem excessivamente em seus próprios estilos. Tal limitação obriga o praticante a seguir diversos rituais tradicionais de treino, que, igualmente, restringem a liberdade de expressão individual, como uma doutrina (LEE, 2005).

60 COELHO, T. J. O que é indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1981.

61 “Guarda”, para Houaiss (2009), é a “maneira de postar o corpo e posicionar os braços ou a arma de

própria professora disse que a gente ia para o tatame e depois que eu fiquei sabendo

que ia para o teórico” (Chuck Norris).

Já Ranger Verde esperava o contrário, talvez o mais comum vivenciado em sua carreira estudantil. Para ele, as aulas de lutas ficariam apenas ao nível do discurso, privilegiando-se as aulas expositivas: “Eu não sabia que ia fazer esses golpes com alguém. [...] achei que ia só falar” (Ranger Verde). Na entrevista inicial constatou-se

no conteúdo "ginástica", que os alunos apenas assistiram algumas aulas expositivas e resolveram as questões do Caderno do Aluno. Fica claro que há certas deficiências no trato de conteúdos da cultura de movimento de pouca tradição e presença nas práticas pedagógicas da Educação Física escolar (lutas, danças, ginástica, le-parkour, etc.), induzindo o professor a trabalhar plenamente apenas os conteúdos com que têm maior afinidade. Betti (1999) aponta a demonstração como um recurso pedagógico que, em grande medida, define o trato ou não-trato de um determinado conteúdo, seguindo o seguinte critério: se for possível ao professor demonstrá-lo, então será trabalhado.

Em trabalho anterior sobre os saberes docentes com o conteúdo lutas, constatamos que o professor sem vivência em lutas – sem o pleno recurso pedagógico da demonstração – privilegia as aulas expositivas como um modo compensatório da sua não-experiência corporal. O motivo desse privilégio se dá pela construção do

conhecimento específico do conteúdo de modo enunciado linguisticamente, por meio

da apropriação de conteúdos de livros, sites e do Caderno do Professor, e não de vivências motoras. Este modo de elaboração do conhecimento específico do conteúdo induz à conduta de ensinar do mesmo modo que o professor aprendeu (SO, 2010).

Tendo em vista que as aulas superaram as expectativas dos alunos, em especial por dissociarem luta de violência e, portanto, permitir-lhes aprendizagens sem medos e receios, indaguei também sobre as insatisfações das aulas de lutas e as possíveis sugestões.

O discurso predominante apontou insatisfação pela insuficiência de aulas e de vivências do judô. Para Paulo, Stalone, Hulk Elektra, Morfeu, Anderson, Lucas, Carl Johnson e Elisabete (9 dos 17 entrevistados) seriam necessárias mais aulas:

“Que a professora poderia ter ensinado mais de golpe pra gente, também” (Paulo). “Acho que ela devia ter ensinado mais golpes. Foi pouco, mas deu para entender melhor” (Hulk).

“Eu acho que poderia a gente ter aprendido um pouco mais e ter tido mais tempo.

[...]Um pouco mais sobre os golpes, não sobre os golpes em si, mas praticar os golpes” (Elektra).

Questionei a professora por que o o-soto-gari foi o único golpe ensinado. A professora nos esclareceu que a princípio planejava ensinar-lhes mais dois golpes,

entretanto por conta do tempo reduzido, teve que “enxugar” o conteúdo.

De acordo com a proposta da professora, Stalone foi o que melhor esboçou as

dicotomias entre aula “teórica” e “prática”, pois, do ponto de vista do aluno, as aulas que foram ministradas em sala de aula (aulas 1 e 4) poderiam ser facilmente incorporadas nas aulas de vivências motoras (aulas 2 e 3).

Teve mais aula teórica do que prática. Ela podia dar aula prática e teórica ao mesmo tempo. Ela podia falar e a gente podia fazer, e não a gente podia só escrever ou só fazer. Ela tinha que misturar a prática com a teórica. E acho que ela devia passar mais tarefa sobre a luta e não ficar só na escrita na aula, mas fazer escrita em casa e prática na aula. A prática e teórica na aula, e a escrita assim, tipo como um trabalho para

fazer em casa” (Stalone).

Fica claro pela fala de Stalone que os saberes-objetos, como a prova/atividade da aula 4, poderiam ser tratadas como lição de casa, enquanto os saberes-domínio deveriam prevalecer em todas as aulas de Educação Física. Nesse sentido, o aluno

sugeriu que se tente abordar a “teoria” e a “prática” de maneira integrada, já que muito

do que se foi ministrado na aula expositiva, poderia facilmente ser transposto para dentro do dojo. Por exemplo, Chuck Norris, ex-praticante de karatê, relembrou que aprendeu as cores das faixas nos próprios treinos da academia e não em aula expositiva como sucedeu na escola: “A parte teórica que eu me lembre, acho que eu não tive [na academia]. Eu fui direto na prática, tanto que eu aprendi o esquema de

faixas na prática”.

Parece que esse é o grande desafio da Educação Física, integrar o discurso sobre o fazer/movimento no próprio saber-fazer, como já afirmava Bracht (1996, p.27):

uma educação crítica no âmbito da Educação Física teria igual preocupação com a educação estética, com a educação da

sensibilidade, o que significa dizer, “incorporação” não via discurso, e sim via “práticas corporais” de normas e valores que orientam gostos, preferências, que junto com o entendimento racional determinam a relação dos indivíduos com o mundo

Já Elektra e Elisabete criticaram o modo de organização determinado pela professora para a prática das aulas 2 e 3: uns fazem e outros aguardam. Principalmente na aula 3, o tempo de espera tornou-se um fator de desmotivação: “Bom, a professora pegou uma dupla (por vez) [...] depois senta pra aí dá tempo de ir

todo mundo, mas as pessoas que queriam ir de novo ficaram querendo ir. Não deu pra ir mais vezes. [...] Acho que com mais aulas dava pra ir mais” (Elektra).

“Muitas pessoas ficaram sentadas como eu fiquei algumas aulas. Aí acho que a

pessoa brincava (na carteira) enquanto o outro lutava e não prestou muita atenção

por não tá praticando” (Elisabete).

Em entrevista final, a professora alegou insuficiência de tempo para desenvolver o conteúdo. Entretanto, as aulas de voleibol foram ministradas em nove aulas enquanto as de judô em quatro, isto é, menos da metade do tempo dedicado ao voleibol. Conforme o Caderno do Aluno do 4° bimestre do 7° ano, sugere-se que o conteúdo de voleibol e judô sejam abordados entre 6 a 8 aulas (SÃO PAULO, 2009). Partindo desse referencial, houve então duas alterações: aumento das aulas de voleibol e diminuição das aulas de judô.

Além disso, após as aulas de voleibol, sabendo-se que restariam apenas quatro aulas disponíveis para o fim do semestre, a professora deveria privilegiar as aulas que incluíam a vivência do judô. Daí advém a crítica de Lucas sobre a aula expositiva (aula 1): “Ah, não deveria ter passado muito daqueles vídeos, eu acho. Só ter falado das linha amarela, essas coisas. E ter passado mais luta pra aprender mais”.

Outra vontade de alguns alunos foi a participação de todos nas atividades propostas, em especial das meninas, já que quando não se auto excluíam, adotavam uma postura menos ativa. Hulk, Ana, Julia e Liliana gostariam que as meninas integrassem a prática:

“Ah, (esperava aulas) mais agitadas, com todo mundo fazendo, as meninas, os

meninos. [...] Ah, eu pensei que a professora ia pedir pra gente, pra um grupo ir ali e lutar. Derrubar um ao outro. E também pensei que as meninas iam lutar porque valia

nota, mas eu duvidei e fui muito ingênuo” (Hulk).

“Tá bom. Mas as meninas deviam participar mais” (Ana).

“Como eu acho que poderia ter sido? Ah, poderia todo mundo ter participado. Que

muita gente não participou” (Julia).

Ainda, Liliana sugeriu que professora fizesse essa intermediação entre luta e alunas que não demonstraram mobilização: “Eu acho que é de ir lá e conversar com

as meninas. Perguntar o “porque” delas não estarem fazendo, algumas coisas que ela não gostaram” (Liliana).

Sem dúvida, o conteúdo lutas é bem receptivo no trato das questões de gênero e sexualidade. Ferretti (2011) entende a luta como uma manifestação de predominância masculina, já que o controle da dor e a agressividade de seus movimentos são características julgadas como pertencentes ao gênero masculino. Segundo o estudo, a presença de mulheres praticantes não deixa o ambiente da luta mais feminino, pelo contrário, são elas que se adaptam ao ambiente masculino. A partir disso, poderiam ser abordadas questões como: mulheres podem praticar lutas? Por que há mais homens do que mulheres praticando? Por que o número de mulheres praticantes de lutas vêm aumentando?

A ausência dos temas filosóficos das lutas/artes marciais nas aulas incomodou o aluno e ex-praticante de judô, Stalone. O discente julga como essencial a presença do caráter filosófico da luta no desenvolvimento do sujeito: “Eu ia falar para ela explicar o motivo da luta, as regras da luta, tipo, tem toda uma filosofia da luta. No Judô é derrubar o oponente com o mínimo de esforço, aí, ela podia falar mais sobre isso, ela

falou uma vez, aí, ela podia falar” (Stalone).

A sugestão de Stalone é pertinente, compreender o sentido da luta e suas inter- relações com a sociedade mostra-se importante para desmistificação de certos estereótipos e pode proporcionar uma base de conhecimento para reflexão crítica sobre os saberes presentes nas lutas.

Em contraposição às queixas sobre a quantidade de aulas, a não-participação das meninas e a ausência de filosofia no trato do judô, Atena, Bruce Lee e Ranger Verde mostraram-se satisfeitos com as aulas. Talvez não por coincidência, esses alunos foram ou ainda são praticantes de lutas e tiveram participação intensa e efetiva durante o período de observação. Vale ressaltar que o tempo de espera imposto para todas as duplas na aula 3 foi transgredido por este trio de alunos, que transformaram o tempo livre em atividades na periferia do dojo. Nesse pano de fundo, entende-se que vivenciaram as lutas com maior intensidade, em comparação aos outros alunos e, portanto, por distração ou engajamento nas atividades, não tiveram oportunidade de observar a não-participação das meninas e a ausência de aspectos filosóficos.