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Oitavo round a aprendizagem das lutas: “ Agora sei derrubar algué m”

4 SOBRE AS LUTAS: CONHECENDO O DOJO

6.8 Oitavo round a aprendizagem das lutas: “ Agora sei derrubar algué m”

Ora, mas o que os alunos aprenderam nas aulas de lutas? Analisar esses discursos é compreender efetivamente o que se atingiu com a proposta inicial do planejamento de ensino do professor, ou seja, ocorreu aprendizagem a partir do proposto nas aulas?

A maioria dos depoimentos relatou a aprendizagem de movimentos específicos da luta, neste caso, golpes de diversos tipos, ordenados dos mais para os menos citados: o-soto-gari, imobilização, agarramento, projeções e desequilíbrio. Embora menos predominante, Atena, Elektra e Carl Johnson também destacaram jogos e brincadeiras praticados nas aulas, especificamente, a briga de galo e o cabo de guerra humano.

A aprendizagem do golpe o-soto-gari demonstrou ter sido um sucesso na opinião dos alunos, pois, além de ser o único golpe ensinado nas aulas, possibilitou a vivência específica do judô, particularmente, possibilitando aos alunos o status de

“aprender se defender” e “saber derrubar alguém”, o que para Talita pareceu bem útil

quando afirmou: “eu aprendi a me defender, aprendi coisas que eu não sabia que podia usar, ou que eu podia fazer [...] Ah, tipo derrubar uma pessoa eu não sabia”.

Imobilização também foi uma técnica mencionada por alguns alunos (Hulk,

Anderson, Bruce Lee e Ranger Verde). Embora elemento não tratado na intervenção diretiva da professora, foram constatados alguns ensaios de imobilizações na periferia do dojo, como a luta entre Bruce Lee e Carl Johnson. Todavia, o que nos chama atenção é a fala de Ranger Verde, que, mesmo na ausência do conteúdo nas aulas, pesquisou na internet sobre imobilizações.

Além dos movimentos do judô devidamente mencionados, Elektra, Bruce Lee, Elisabete e Liliana discursaram em uma perspectiva mais próxima da filosofia das lutas:

“Aprendi o significado de Judô que é caminho suave, que não precisa muito esforço

para derrubar o oponente, que é mais na tática, na flexibilidade”. (Elektra)

“Como posso falar? O que eu aprendi que... não adianta você estar com medo, tiver

com dar nervoso, tem que aprender mais a conhecer os negócios, as práticas. Se abrir

mais”. (Bruce Lee)

“Ter equilíbrio na hora que você tá lutando assim, você prestar bastante atenção, tipo,

o golpe que a pessoa te dar, você conseguir lá e pá. [...] Tem que usar a mente também, a força para tentar derrubar o adversário no chão e que para ganhar luta”.

(Elisabete)

Que luta não é só agressivo assim. É, luta tem que respeitar um ao outro”. (Liliana)

Estes alunos não apenas valorizaram os gestos aprendidos nas aulas de judô, mas privilegiaram os fatores psicológicos de controle do medo, da concentração, do respeito com o outro. Tais questões não foram o foco do trabalho da professora, pois ficou claro nas observações em classe que o enfoque para o judô não teve um viés filosófico ou de controle de emoções. Não é possível saber ao certo quais foram as fontes de aprendizagem que relacionaram o viés filosófico das lutas com as aulas de judô ministradas pela professora, senão a própria prática dos alunos. Uma característica da lógica interna da luta é que o próprio sujeito é um alvo a ser atingido pelo oponente (alvo intrínseco), sendo assim, lutar envolve o risco de ser atingido, o que pode provocar dor. Com tal anseio, esses alunos concluíram que é preciso estar sob controle emocional para melhor analisar e reagir às situações de ataque-defesa na luta, sendo assim, é preciso “não estar com medo”, “usar a mente”, “ter atenção”, “equilíbrio”, “respeitar um ao outro”.

Sobre essa aprendizagem, procuramos entender “o que significa ser um aluno

que estuda lutas nas aulas de Educação Física”. Nessa direção, indaguei aos alunos:

“se você fosse contar para seu pai/mãe/tio/irmão sobre o que você aprendeu nas aulas de lutas, o que você contaria para ele/a?”. Em comum, todos os alunos relataram a aprendizagem de golpes, em especial do o-soto-gari. Ora, mas se o o-soto-gari foi o

único golpe ensinado durante as aulas, o que explica a palavra “golpe” no plural? Daí advém a interferência da “periferia do dojo”. Novamente, muitos foram os alunos que aprenderam e compartilharam novos golpes no fundo da sala; entretanto, quem nos verbalizou de maneira específica sobre isso foi Morfeu e Bruce Lee: “É chave de braço que eu lembro [ter aprendido] [...] a gente aprendeu lá no fundo”.

(Morfeu).

“O Stalone ele também lutava [...] Ele também mostrou um golpe de lançamento que

pegava o adversário pela camisa e lançava pelas costas (técnicas de quadril)”. (Bruce Lee).

Além dos golpes mencionados, Stalone, Chuck Norris, Hulk, Anderson, Lucas, Bruce Lee compartilharam com seus familiares conteúdos como: diferença entre as lutas, as faixas como hierarquia do judô, pontuação de um combate, significado do judô.

Falaria que aprendi o ‘ippon’, quando você derruba que cai as costas inteira no chão, ia ser ‘ippon’, porque ia ganhar a luta direto. (Stalone).

Ah, das faixas, dos golpes. Hã, vamos ver [...] do esquema dos árbitros, como funciona o tatame lá. (Chuck Norris).

Falaria das regras, os pontos, quantos pontos eu fiz, quantas pessoas eu derrubei [...] dos pontos, das regras, as faixas também (Hulk).

Que eu aprendi o golpe de Judô, a marcação de pontos, os golpes, o ippon, o que vale mais, que tem três juiz no tatame. (Anderson)

Ah, eu aprendi muitos golpes, aprendi a disciplina lá, as faixas, essas coisas. (Lucas) Ah pai, ah mãe, aprendi os golpes, o que significa o Judô, o que significa os golpes, as pontuações dos golpes, os golpes que acabam a luta na hora. (Bruce Lee).

Curiosamente, Morfeu, Ana e Talita não citaram o golpe o-soto-gari, mas o referenciam: “Eu aprendi a lutar” (Morfeu); “Que eu aprendi a me defender.” (Ana);

“Que eu saberia derrubar uma pessoa agora.” (Talita).

Para esses alunos, não houve preocupação em enunciar ou definir qual era o golpe, mas de valorar como de maior importância sua função e utilidade, como se um

aluno tivesse aprendido as operações matemáticas e dissesse que aprendeu a calcular; nesse caso, aprendeu o o-soto-gari e disse que aprendeu a lutar.

Ancorado ao questionamento anterior, indaguei se tal explicação concedida ao pai/mãe/irmão/etc., poderia ser exposta verbalmente ou necessitaria de demonstração. Todos os alunos entrevistados utilizariam o recurso da demonstração para explicar os movimentos aprendidos, especialmente o o-soto-gari. Entende-se, por parte dos alunos, que ao mostrar o-soto-gari por meio de gestos e movimentos tornaria mais compreensível para o sujeito aprendente, além de ser igualmente facilitador para quem ensina, uma vez que, não haveria uma conversão de movimentos em palavras, como exemplificam algumas falas a seguir:

“Precisaria mostrar [...] por causa falando eu não sei, mostrar eu sei [...] porque falar a gente tem que pensar, é muito difícil falar também.” (Paulo).

“Porque acho que fica até mais fácil de aprender. Ou mesmo, ver como que é. [...]

Acho que precisaria mostrar para ficar mais fácil.” (Chuck Norris).

“Porque eles teriam dificuldades de entender, assim, ippon, o que é isso? Aí, por

exemplo, eles falariam: - não entendi. Aí eu teria que mostrar como se faz o golpe.”

(Seagal).

“Teria que mostrar, porque falando não ia conseguir lembrar [...]: Pra ficar mais interessante, pra ela entender melhor.” (Julia).

“Porque acho que falando não dá muito pra se expressar como se faz direito” (Liliana). Como até o momento tratavam-se de questões hipotéticas56, que se valeram

do futuro do pretérito em seus enunciados, Elektra e Elisabete trataram de trazer os verbos condicionais para o passado. Ao serem questionadas sobre o que contariam sobre as aulas de judô para seus familiares, ambas se anteciparam afirmando já terem feito esse compartilhamento. Elektra e Elisabete praticaram o golpe o-soto-gari com mãe e pai, respectivamente:

“Mostrei o golpe pra minha mãe, fazendo ela cair no chão. Apliquei o-soto-gari na minha mãe [...] Acho que ela não ia entender só explicando. Ela até poderia prestar

atenção, falar que entendeu, mas não ia entender”. (Elektra)

“Aí eu falei para ele que aprendi alguns golpes, aí eu brinquei com ele ainda, mas

como ele é fortão, ele não fez o que deveria fazer assim, como uma competição. A gente só brincou mesmo, e eu mostrei o que aprendi para ele”. (Elisabete)

56 Se você fosse contar para seu pai/mãe/tio/irmão sobre o que você aprendeu nas aulas de lutas, o que você contaria para ele/a? Você conseguiria explicar só falando ou precisaria mostrar?

Morfeu foi o único aluno que explicou verbalmente a metodologia de aplicação da chave de braço: “tipo, pega o braço assim. Tipo, joga a perna em cima da outra,

prende e puxa o braço. Aí, se você vê que não tá sentindo, você puxa para o lado, daí

ele vai sentir que tá torcendo”. Crente que estava se saindo bem na explicação, o

aluno ouviu de mim: "mas você tá mostrando agora". A medida que o aluno falava, seus braços e pernas gesticulavam sincronizadamente, como se a fala narrasse seus movimentos ou vice-versa.

Como o-soto-gari é apenas mais um dos temas entre outros que seriam falados

ou demonstrados aos pais, Chuck Norris e Ranger Verde, ao compartilharem os conhecimentos sobre as faixas, a pontuação e combate do judô, declararam que utilizariam recursos na internet para explicá-los, tais como sites e vídeos: “eu ia

precisar ver na internet”. (Chuck Norris); “eu ia pôr vídeos da internet pra eles verem, das olimpíadas. [...] Eu ia falando e ia mostrar também”. (Ranger Verde).

Conforme Charlot (2000, 2001, 2009), o aprender se apresenta em figuras, em três formas: possuir um saber-objeto (saberes enunciados, livros, etc.), dominar uma

atividade (desmontar um motor, andar, lutar); dominar um dispositivo relacional

("paquerar", mentir, ser simpático). Distinguindo as diferentes formas de aprender, o

o-soto-gari é um golpe que foi aprendido em forma de domínio de uma atividade, e

consequentemente, é muito difícil de ser enunciado em saber-objeto, e tal característica justifica a dificuldade dos alunos de explicar verbalmente a metodologia

de aplicação de golpes. Repetindo a fala de Morfeu: “pega o braço assim [...] joga a perna em cima da outra, prende e puxa o braço”. Ora, lendo ou escutando esse trecho

seria impossível saber que se trata do golpe “chave de braço”.

Além disso, a diferença entre as lutas, as faixas como hierarquia do judô, pontuação de um combate ou o significado do judô são conteúdos mais fáceis de serem enunciados, transformados em textos e compartilhados linguisticamente, como posse (e não domínio) de um saber-objeto. Ademais, tais temas foram explicados aos alunos de forma expositiva. Isso justifica a utilização da internet e da fala, sugerido por Chuck Norris e Ranger Verde, para o trato desses conteúdos.

Todavia, a aprendizagem desses elementos considerados saber-objeto (significado do judô, pontuação, hierarquia, etc.) só se apresentam como saberes- objetos pelo seu método de ensino, isto é, verbal (linguístico). O conceitos de ippon,

wasari, yuko, koka (tratados na aula expositiva) poderiam tornar domínio de uma atividade se fosse vivenciado no tatame. O que se quer dizer com isso é que o modo

da aprendizagem de algo pode determinar como se ensina; se alunos aprendem o significado do judô por meio de textos e aula expositiva, provavelmente, explicarão aos seus pais da mesma forma. Já para um praticante de judô, seria árduo explicar o significado de sua modalidade de maneira verbal ou textual, uma vez que, são saberes sentidos e, por isso, demandam maior complexidade.

Se o aluno aprende o o-soto-gari como um saber de domínio, a tendência é que a explique por meio de demonstrações, já que sua apropriação está inscrita no corpo. Segundo Schneider e Bueno (2005), quanto mais uma atividade está inserida no corpo, maior será a dificuldade de enunciação linguística.

Contudo, não se trata de transitar dos saberes-domínio para os saberes-objetos amparado pela maior valorização que os segundos costumam ter na comunidade escolar e extra-escolar. Charlot (2009) já afirmou que o saber-domínio presente na Educação Física gera desvalorização frente às outras disciplinas; entretanto, sugere que se destaque essa singularidade do saber-domínio como mais uma forma de apropriação do patrimônio humano.

Em estudo etnográfico, Oliveira (2010) demonstrou empiricamente o quanto é importante valorar e reconhecer o saber-domínio como elemento central das aulas de Educação Física. Na investigação, o professor observado sentiu-se afetado pela desvalorização da disciplina em contraposição às demais, e, então, decidiu mudar sua conduta para aulas diretivas dentro de sala de aula, com leitura de textos, exercícios escritos, etc. Não durou muito tempo. O professor recebeu duras críticas dos alunos, para os quais a aula de Educação Física precisa ser desenvolvida em movimento e em ambiente externo.

Sendo a Educação Física uma disciplina que também envolve saberes-domínio e por isso, desvalorizada perante às outras disciplinas, questionei se as aprendizagens propostas nas aulas de lutas possuíam importância na vida dos alunos. A grande maioria dos entrevistados (13 dos 17 entrevistados) atribuíram importância ao conteúdo, a partir de duas justificativas principais: (a) o judô nas aulas de Educação Física é importante como experiência inicial para buscá-la em outras instituições formais (academias, escolas de luta, etc.) e; (b) o judô é importante como defesa pessoal contra as adversidades da vida.

A primeira justificativa, de maior predominância, entende que caso optem por prosseguir carreira na arte marcial, seja como atleta ou praticante, as aulas de judô seriam importantes como um período de maturação ou de base para procurá-lo depois

fora da escola. Este é o caso de Stalone, Chuck Norris, Hulk, Anderson, Ranger Verde, Julia e Elisabete, conforme alguns depoimentos:

“Sim, porque algumas pode ser que eu acabe fazendo aquele esporte, ou algo desse

tipo [...] daí virar esportista daquele esporte, algo desse tipo. (Chuck Norris)

Eu posso querer ser um atleta, eu também posso aprender outras artes e tentar a

sorte no MMA” (Hulk).

“Por exemplo, se eu for um lutador de Judô, eu vou saber algumas coisas já”. (Anderson)

“Ah, você ter um futuro melhor também. Você pode ganhar um futuro também”. (Ranger Verde)

“Porque iria aprender mais, saber mais e quem sabe um dia eu não posso fazer uma

aula”. (Julia).

“Sim, se eu continuar fazendo a aula, assim, saindo daqui, fazendo pra fora outra aula,

também será importante porque eu posso levar pro resto da vida, posso ir em campeonato em escolas também, pode tá praticando também. Eu acho importante”.

(Elisabete).

Nota-se que nesta categoria todos os discursos usam verbos condicionais (iria, poderia) ou conjunções subordinadas condicionais (se), indicando que não é uma certeza a prática de lutas fora da escola, dessa forma a importância das lutas seria condicional.

Uma segunda justificativa é a importância das aulas de judô como defesa

pessoal. Para Elektra, Morfeu, Ana e Talita, o período de aulas proporcionou-lhes

maior embasamento para defender-se de adversidades da vida:

“Acho que mais pra defesa pessoal, porque que nem depois as aulas de lutas. Meu primo veio tentar me bater, eu usei o golpe que a professora ensinou pra bater nele” (Elektra).

“Assim de na rua… só para se defender também. E também, se os outros forem brigar

com você, você se defende” (Morfeu).

“É importante para se defender [...] porque tem muita gente que gosta de dar uma de

brigão e querer bater” (Ana).

“Pra se defender também” (Talita).

Vale ressaltar que estes alunos posicionaram-se igualmente na entrevista inicial, entendendo a luta como método de defesa pessoal. Entretanto, a primeira categoria - que compreende as aulas de judô como um período de familiarização com a arte marcial para procurá-la fora do ambiente escolar - não esteve presente na

entrevista inicial, indicando que o trabalho do tema lutas despertou interesse de participação desses sujeitos.

Todavia, Atena, Paulo e Carl Johnson (3 dos 17 entrevistados – 18%) não conferiram devida importância ao conteúdo de lutas, conforme depoimento de Paulo: “Por causa que as aulas de lutas é mais para divertir um pouco também, né? Aprender alguns golpes também, mas não serve para vida, não”. Assim como na entrevista

inicial, estes alunos reduziram o mundo e a vida às relações de trabalho, especialmente no privilégio de profissões tradicionais com predomínio de saberes enunciados (medicina, engenharia, direito, etc.).