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GRÂNDOLA VILA MORENA

No documento CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL: (páginas 154-162)

3. ESCUTANDO AS VOZES DE QUEM RESISTE:

3.4 GRÂNDOLA VILA MORENA

Grândola Vila Morena, a canção-senha da Revolução dos Cravos, é a mais importante da história da música revolucionária portuguesa, valor que lhe é atribuído não somente pelo fato de ter sido escolhida como senha da revolução, mas também pela sua força na atualidade, sendo reconhecida por sua atemporalidade. Desde a Revolução dos Cravos até a presente data, essa é a canção de Zeca Afonso que mais versões apresenta, sendo gravada e interpretada em várias partes do mundo, possuindo, ao todo, mais de

vinte versões em idiomas diferentes.79

Além dessa ampla divulgação à esfera mundial, e com duas diferentes versões em português, essa força também pôde ser vista em alguns momentos em que essa canção foi lembrada pelo público também na atualidade, especialmente com a crise europeia, após o início do século XXI. Nessa ocasião, insatisfeitos com algumas medidas tomadas pelo governo, especialmente em 2012, um grupo de jovens portugueses criaram o movimento

Que Se Lixe a Troika para protestar contra a recessão e o desemprego. E foi este grupo

que entoou a canção Grândola Vila Morena durante uma sessão plenária ocorrida em 15

de fevereiro de 2013, interrompendo o discurso do então primeiro ministro Pedro Passos

Coelho, com transmissão ao vivo pela ARTV. Após alguns minutos, os jovens foram

retirados e a sessão foi retomada. Outra situação marcante ocorreu na mesma época, durante uma onda de protestos da mesma natureza na Espanha, em que uma orquestra sinfônica tocou a canção de Zeca Afonso como protesto contra o governo espanhol na Praça do Solem Madrid. Já em 2016, logo após os atentados ocorridos em Bruxelas, no dia 22 de março, um coral belga também apresentou a canção em praça pública, mas dessa vez em repúdio às ações terroristas do grupo do Estado Islâmico (EI), demandando, com

79 No site da Associação José Afonso encontra-se reunido pelo menos vinte e duas versões gravadas da Grândola Vila Morena, em idiomas diferentes, e até mesmo versões que são apenas orquestradas. Disponível em: http://www.aja.pt/20-versoes-para-grandola-vila-morena/

a canção, ideais de igualdade e liberdade, que têm sido perdidos ultimamente.80 Em situações diversas, e em épocas diferentes, podemos perceber a força da canção por conter expressões e valores gerais e sempre almejados. Além de seu caráter atemporal, destaca-se também que a mensagem da canção pode destaca-ser considerada universal. Num ensaio de Engelmayer (1999) é atribuída a canção uma ideia de um “futuro utópico”.

Esse valor atribuído à canção também lhe foi dado logo nas primeiras vezes em que foi apresentada ao público, em 1972, contribuindo para seu forte poder de mobilização, apesar da aparente singeleza de seus versos. A canção foi escrita em 1964, por ocasião da visita de Zeca Afonso à cidade de Grândola, composta, preliminarmente, três estrofes, tendo sido a última delas alterada antes de ser gravada em disco em 1971:

Original

Grândola, vila morena Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade

Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, vila morena Terra da fraternidade

Capital da cortesia Não se teme de oferecer Quem for a Grândola um dia Muita coisa há de trazer

Gravação em 1971

Grândola, vila morena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade O povo é quem mais ordena Terra da fraternidade Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade Grândola, vila morena Terra da fraternidade

Terra da fraternidade Grândola, vila morena

80 Tais informações estão registradas em sites de notícias, e algumas delas, com vídeos do ocorrido disponíveis no youtube: quanto ao primeiro episódio aqui descrito, sobre a interrupção da fala do primeiro-ministro: http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/grandola-vila-morena-interrompe-passos-coelho-no-parlamento=f712989. Sobre a canção entoada em Madrid, na Espanha, a notícia está disponível em

http://www.tsf.pt/internacional/europa/interior/grandola-vila-morena-com-sotaque-castelhano-video-3057894.html. E por último, sobre o coral belga:

Em cada rosto igualdade O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade Jurei ter por companheira Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade Jurei ter por companheira À sombra duma azinheira Que já não sabia a idade

Originalmente o poema, feito especialmente como uma forma de gratidão pelo acolhimento e receptividade dos habitantes de Grândola para com o cantor, seguiu uma forma simples, com três quartetos heptassílabos (redondilha maior). Esse tipo de versos, sob a ótica da métrica, é considerado simples por não precisar ter sílabas acentuadas simetricamente, o que estimula sua utilização em canções populares, como é o caso dessa canção, e esse estilo foi bastante utilizado em poemas de diversas épocas, tanto em Portugal como Brasil.

As rimas são alternadas em ABAB CBAB DEDE (com mudança de rima em apenas dois versos da segunda estrofe), com destaque para o fato de que nenhuma palavra

no poema rima com amigo. Em uma época em que o verso livre já era bastante utilizado,

inclusive por Zeca Afonso, em muitas de suas canções utilizava a métrica tradicional,

como foi no caso da Grândola, e, em poucas outras, apresentava versos livres, com

poucas rimas. Nesta canção, especificamente, o uso de versos com rimas e metrificados, assim como outras da mesma época, pode revelar uma necessidade do autor de se enquadrar em um “regime” fechado, em uma sociedade que não era livre – tudo devia ser rigorosamente respeitado.

Antes da gravação da canção em 1971, ela tinha sido cantada uma vez, já com a nova estrofe no final, porém sem os arranjos feitos para a gravação por José Mário Branco. Como a canção retrata uma cidade na região do Alentejo, José Mário Branco decidiu moldá-la de acordo com as características de uma canção alentejana, como a

repetição com inversão de estrofes – para ajudar na memorização – o ritmo lento, o coro

de vozes e os passos produzidos pelos cantores em cima da pedra britada.81O coro de

vozes é uma característica marcante no cante alentejano, por sua origem ser de pessoas

do trabalho agrícola, em que um dos trabalhadores costumava cantar uma parte e em seguida o restante do grupo entrava com suas vozes, formando um coro polifônico. Ressalta-se que, claramente, não havia qualquer acompanhamento instrumental, utilizando apenas de suas vozes para entoar as canções, e a respeito do coro, as vozes eram inteiramente masculinas ou inteiramente femininas – não havia a mistura entre eles (NAZARÉ, 1979). Seguindo essa tradição, José Mário Branco colocou a canção

Grândola Vila Morena nos moldes do Cante Alentejano, visto que a cidade de Grândola está situada na região do Baixo Alentejo:

[a canção] tinha aquela estrutura do modo alentejano, o que foi feito foi um trabalho de estrutura só da canção a partir do material que Zeca trazia, [...]. O nosso trabalho por proposta minha foi transformar a canção com a estrutura de modo alentejano, ou seja, com, digamos, a junção de vozes diferentes. [...] E por outro lado, a estrutura da letra, fazer aquela inversão das quadras que é comum nas modas alentejanas. E outro elemento que foi acrescentado também, por proposta minha, foi o elemento dos passos, que acompanhou o que se ouve na canção. (BRANCO, 2012, transcrição nossa)82

Sobre a inversão das estrofes, pode-se perceber na letra da canção gravada, que a segunda, a quarta e a sexta estrofes foram repetições dos versos anteriores, porém com

ordens aleatórias. As rimas continuam em sua maioria alternadas em ABAB BABA

CBAB BABA DBDB, e a última estrofe interpolada em BDDB. Segue abaixo o esquema

81 O Cante Alentejano pode ter tido suas origens em músicas gregorianas e eclesiásticas ou também ter tido influência árabe, visto que a região do Alentejo foi ocupada pelos mouros por cinco séculos. Essa região é vasta e está situada entre o Tejo e o Algarve, é predominantemente rural, e com uma população com uma quantidade bem limitada. Este canto tem como principal característica o canto polifônico, ou seja, há um coro de vozes sendo guiado por um cantor central. Geralmente não há instrumentos e os versos costumam ser invertidos nas estrofes seguintes, usando o último verso como o primeiro do seguinte, para facilitar a memorização. Os temas mais utilizados no cantar alentejano são: vida rural, natureza, amor, religião e mudanças no contexto social e cultural. Esse tipo de música é entoado desde o início do século XX durante a lavoura nos campos e os operários costumavam cantar em coro enquanto trabalhavam, e esse ato ajudava uns aos outros em termos de solidariedade, e serviam de estímulo, pois conseguiam passar pelo sofrimento físico (GUERREIRO; LEMAÎTRE, 2014). Ressalta-se que durante o desenvolvimento dessa pesquisa, o

Cante Alentejano foi inserido como patrimônio Cultural da UNESCO, em novembro de 2014, fato mencionado também pelo Francisco Fanhais, durante entrevista concedida à pesquisadora em dezembro de 2014. Registrado no website na UNESCO, disponível em: http://www.unesco.org/culture/ich/en/RL/cante-alentejano-polyphonic-singing-from-alentejo-southern-portugal-01007

82 Entrevista de José Mário Branco à RTP, divulgado em 10 de maio de 2012. Disponível [em áudio] em:

utilizado na canção em cada uma das estrofes, com uma numeração correspondente em cada verso para facilitar na visualização da ordem da estrofe inversa:

Grândola, vila morena 1 Terra da fraternidade 2

O povo é quem mais ordena 3

Dentro de ti, ó cidade 4

4 Dentro de ti, ó cidade

3 O povo é quem mais ordena

2 Terra da fraternidade 1 Grândola, vila morena

Ao cantar a segunda estrofe, os versos são exatamente os mesmos da primeira, porém com a ordem distinta. Nesse caso, a segunda estrofe é precisamente inversa à primeira, dando uma ideia de “espelho”, e nenhum verso igual (de nenhuma outra estrofe) se encontra numa mesma posição, como se vê no esquema a seguir:

Em cada esquina um amigo Em cada rosto igualdade 1 Grândola, vila morena 2 Terra da fraternidade 3

3 Terra da fraternidade 2 Grândola, vila morena 1 Em cada rosto igualdade

O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira 1

Que já não sabia a idade 2

Jurei ter por companheira 3

Grândola a tua vontade 4

4 Grândola a tua vontade

3 Jurei ter por companheira

1 À sombra duma azinheira

2 Que já não sabia a idade

Seguindo a tradição alentejana, os últimos versos do primeiro, terceiro e quinto quartetos se transformaram em primeiros versos da segunda, quarta e sexta estrofes respectivamente, e, como já mencionado, sem repetir a posição.

O verso Grândola Vila Morena, por exemplo, aparece nas quatro primeiras

estrofes nas seguintes posições: 1, 4, 3, 2; e o mesmo ocorre com o verso Terra da

Fraternidade, que aparece nas posições 2, 3, 4, 1 também das quatro primeiras estrofes. Com essa repetição em ordens aleatórias, a impressão é de que a canção não tem uma ordem correta, podendo os versos serem utilizados em ordens aleatórias, sem indicação de começo, meio e fim, mostrando um movimento cíclico. Nessa mesma esfera, este movimento cíclico caracteriza essa canção considerada atemporal, pois com teor político, que prega a “liberdade, igualdade e fraternidade” – ideais da Revolução Francesa, valores contrários aos do regime – mostra claramente o clamor do povo pela democracia e pelos mesmos direitos, princípios que são pregados sempre em qualquer parte do mundo, em

qualquer época, assim como vimos recentemente em lugares como Espanha e Bélgica, além de Portugal. E pelo fato de os versos poderem ser utilizados em qualquer ordem –

com exceção dos versos A sombra duma azinheira/ Que já não sabia a idade – a letra da

canção torna-se difícil de ser memorizada na ordem correta da gravação, como mencionado por cantores em algumas obras, pois qualquer uma delas confere sentido ao que foi dito no verso anterior. Ao mesmo tempo, essa dificuldade com o conteúdo da canção é superada pela escolha da estrutura que facilita sua memorização.

Ressalta-se que a letra dessa canção não foi proibida pelo regime, talvez pela falta de compreensão da ideia real da mensagem, e, consequentemente, a divulgação da letra e o valor que ela traz tiveram uma dimensão ainda maior, por poder ser entoada entre a população, mesmo partindo de um cantor perseguido pela PIDE.

A canção foi gravada a quatro vozes - Zeca Afonso, Francisco Fanhais, José Mário Branco e Carlos Correia - e todos fizeram o movimento dos passos que davam o ritmo à canção, sendo ora mais fracos, ora mais fortes. Esses passos, como diz José Mário Branco

numa entrevista à RTP83, não era alusão à marcha militar, mas uma simulação dos passos

que os alentejanos dão quando caminham abraçados, cantando – por isso, também, os quatro cantores fizeram esses passos abraçados, ditando o ritmo da canção. Ao se aproximar a entrada da voz, os passos ficam mais fortes, e, em seguida, voltam a enfraquecer. A gravação da voz de Zeca Afonso, ocorrida posteriormente, foi feita em cima dos passos gravados, e o cantor começa a canção sozinho. Já o coro entra a partir da

segunda estrofe, no segundo verso: O povo é quem mais ordena, procurando representar,

justamente, a força que o povo tem sobre o poder, ordenando a democracia. O coro somente canta os segundos, terceiros e quartos versos das segunda, quarta, e sexta estrofes – das que já são a repetição da anterior.

A canção pretende mostrar que os ideais imaginados para Portugal seriam os mesmos encontrados na cidade de Grândola, numa espécie de relação metonímica, da parte pelo todo. A canção serve como um apelo da população para que tais características possam ser estendidas ao país todo – especialmente por ver que naquela cidade havia pessoas engajadas na luta contra o regime. A canção é um apelo à igualdade para todos

83 Entrevista de José Mário Branco à RTP, em 2012. Disponível em: http://www.rtp.pt/noticias/cultura/jose-mario-branco-recorda-composicao-de-grandola-vila-morena_a552408. Acesso em fevereiro de 2016.

os portugueses e à união. A música é utilizada como uma crítica ao governo, daquilo que se gostaria de se ver em Portugal, mas que ainda não existia:

Terra da fraternidade

O povo é quem mais ordena (democracia, liberdade)

Grândola

Em cada esquina um amigo (confiança nas pessoas)

Em cada rosto, igualdade

Não há fraternidade, há a maldade, a brutalidade

Portugal Não há liberdade, há a censura, a ditadura

Não há confiança: há a desconfiança por parte do governo

Não há igualdade, e sim a desarmonia, a desigualdade.

Substituindo-se Grândola por Portugal, como a referida metonímia, tem-se:

Em Portugal

O povo é quem mais ordena:

(O que o povo ordena? O que o povo quer ver?)

-Terra da fraternidade (um lugar harmonioso, livre)

-Em cada esquina um amigo (um lugar no qual se pode confiar nas pessoas, fazendo alusão à desconfiança que os portugueses – e, principalmente, os cantores – sentiam no regime, naqueles que estão a favor da censura e que os podem delatar à PIDE, e também à própria PIDE que estava em todo lugar).

-Em cada rosto igualdade (um lugar no qual todas as pessoas sejam iguais e em que o povo possa ter os direitos comuns de cidadãos, e que tenham voz e poder para fazer suas mudanças, diretos existentes em um país democrático).

Nos dois últimos versos acima há uma elipse, a omissão do verbo “haver” ou “ver”, mas

que não interfere na significação. Poderiam estar assim escritos:

Em cada esquina há um amigo Em cada rosto há igualdade

Do ponto de vista rítmico, mesmo que houvesse a palavra “há”, a contagem silábica não mudaria nos versos; embora soaria estranho no segundo verso devido à sucessão de diferentes sons vocálicos:

Em/ca/da es/qui/na_há_um/ a/mi/go Em/ca/da/ros/to_há_i/gual/da/de

Para manter um paralelismo sintático, o cantautor optou por deixar sem o verbo nos dois versos.

Nas duas últimas estrofes, o poema revela a vontade do povo português de ser como Grândola, de ter como ideal aquilo que é a vontade de Grândola. O povo admite ter como “ideal, companheira”, a vontade de Grândola, todos esses ideais descritos no decorrer do poema. A palavra “azinheira”, que aparece no primeiro verso da quinta quadra e se repete no penúltimo verso do poema, refere-se a uma árvore típica da região do Alentejo e de alguns lugares na Europa e na África, que pode ser baixa de estatura, mas por ser muitas vezes bem frondosa, dispõe de uma sombra, que pode dar conotações diferentes.

Por um lado, a azinheira pode denotar o regime, no qual Portugal já vivia há muito

tempo, e as pessoas estariam abaixo dessa sombra “que já não sabia a idade”, revelando uma duração muito longa do regime. Essa ideia é reforçada com a definição simbológica de azinheira encontrada em Cirlot (1984), pois, de acordo com a mitologia romana, essa

era a árvore que consagrava Júpiter e Cibele, e era o símbolo da força e duração – tal

qual se mostrava o regime. Ao mesmo tempo, a “azinheira” pode trazer o sentido de

“liberdade”, posto que árvore, simbolicamente traz a ideia de vida, crescimento de alguém

ou de um povo – e, nesse contexto, poderia revelar o crescimento do povo português como um povo unido, e que essa união seria capaz de trazer uma esperança maior para a população, e a liberdade tão sonhada frente ao regime opressor. Observe-se, ainda, que

azinheira é uma árvore símbolo de Fátima: foi justamente nela onde ocorreram, segundo a tradição do catolicismo português, as aparições de Nossa Senhora de Fátima aos três pastorinhos, em 1917. As crianças rezavam o terço à sombra de uma azinheira, de onde esperaram e viram as seis aparições, uma vez por mês – e tal árvore é mantida até hoje na cidade de Fátima, como símbolo sagrado do local. Associando a “azinheira” de Zeca Afonso à de Fátima, pode-se perceber que em ambas, aqueles que estão à sombra dessa azinheira esperam o milagre – as crianças de uma aparição da Nossa Senhora e de seus milagres, e o povo português, que espera o milagre do término do regime opressor.

No documento CANTO DE INTERVENÇÃO EM PORTUGAL: (páginas 154-162)