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HÉLLEN BATISTA CARVALHO, GISLAINE VALÉRIO DE LIMA TEDESCO

No documento Arqueologia urbana em centros históricos (páginas 139-143)

urbano da Cidade de Goiás, Goiás, Brasil – Patrimônio Mundial

HÉLLEN BATISTA CARVALHO, GISLAINE VALÉRIO DE LIMA TEDESCO

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agricultura de abastecimento da área urbana. As principais ruas do atual centro histórico preserva‑ ram o mesmo traçado das vias públicas do antigo arraial o que favoreceu a preservação das camadas arqueológicas do sítio. Além das vias públicas foram escavados 83 (oitenta e três) quintais onde a rede de esgoto foi implantada.

A comunidade vilaboense, durante os primeiros contatos com as escavações, nem sempre reagiu de maneira favorável. Muitas reclamações foram direcionadas à equipe de arqueologia que estava diariamente em campo, nas ruas, em meio às obras. As reclamações eram de diversas ordens, sobre os transtornos nas ruas, nos quintais, sobre a demora na conclusão das intervenções, da inutilidade de investimentos de recursos financeiros na coleta do lixo que estava enterrado, ou, na melhor das hipóteses, a população fiscalizava o trabalho da arqueologia para evitar que os forasteiros levassem novamente embora mais ouro que por ventura fosse encontrado nas escavações.

Inicialmente essa hostilidade foi atribuída à falta de conhecimento sobre a importância da preservação do patrimônio arqueológico, mas a convivência com as reclamações da comunidade nas ruas revelou uma ausência de empatia com a preservação também em relação aos bens tombados, na medida em que a população se sentia obrigada a assentir aos desejos preservacionistas de uma pequena parcela da comunidade e as limitações de um patrimônio imposto pelo Estado, em detrimento aos interesses e necessidades cotidianas dos moradores. Essa relação conflituosa pré ‑estabelecida agiu negativamente sobre a pesquisa na cidade, sendo essa encarada como mais uma imposição da legislação. Estas dificuldades, a forma como a equipe têm buscado superá ‑las e o processo de apro‑ priação do patrimônio arqueológico na cidade são objetos de discussão deste artigo.

D E A R Q U EO LO G I A D E S CO N H EC I DA E I N D E S E JA DA À A R Q U EO LO G I A N EC E SSÁ R I A

A postura hostil da comunidade em relação à pesquisa arqueológica nos primeiros meses de escavação na cidade tornou necessário o estabelecimento de uma estratégia de mediação desses conflitos e aproximação com a comunidade. Por orientação da consultora do projeto Dra. Irmhild Wust decidiu ‑se que era a hora de mostrar resultados que respondessem às questões colocadas pela comu‑ nidade, tais como: Qual a razão para a pesquisa arqueológica nas obras de infraestrutura da cidade? Qual a importância em se recolher tantos cacos de louça, cerâmica, vidro e outros materiais pelas ruas? Por que o governo estava investindo tantos recursos nessa atividade? A quais interesses a pesquisa atendia?

Ações de esclarecimento já haviam ocorrido no início das obras, mas nesse momento era neces‑ sário mostrar resultados, abrir o diálogo, revelar a comunidade elementos de seu próprio patrimônio. Assim, se iniciaram as primeiras ações diretas com a comunidade, não mediadas por interlocutores das empresas estatais de saneamento, energia elétrica e telefonia ou pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), bem como, sem usar o argumento impositivo da legislação.

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A primeira ação foi estabelecer uma aproximação com os agentes locais defensores do patri‑ mônio cultural, pois este grupo de indivíduos por atuarem ativamente em prol do patrimônio detinham o poder de fala, de gestão e até mesmo do reconhecimento do que seria ou não um patrimônio local. O patrimônio histórico da cidade de Goiás ainda não havia se expandido para o reconhecimento do patrimônio cultural como um todo. Neste momento apenas os monumentos tombados eram reconhe‑ cidos, os bens culturais imateriais, embora desde sempre percebidos pela comunidade como “cultura local” só passaram a integrar o patrimônio cultural reconhecido a partir do Decreto 3.551 publicado em agosto de 2000. Para os agentes culturais locais a arqueologia era mais um entrave burocrático e lega‑ lista para a preservação do patrimônio da cidade e para o tão almejado reconhecimento internacional deste através do título de Patrimônio Mundial. A aproximação se deu a partir de contatos diretos com esses indivíduos, com apresentação de resultados e sua inserção no processo de divulgação da impor‑ tância do acervo arqueológico.

A segunda ação buscou atingir a população vilaboense, a partir da realização de exposições do acervo encontrado nas escavações, alguns resultados parciais e possibilidades de interpretação da pesquisa. A primeira exposição montada recebeu o sugestivo título de Pesquisa arqueológica na

Cidade de Goiás ‑ Uma outra história sob os nossos pés e tinha como objetivo principal contrapor a

pecha de decadência e pobreza impingida à cidade pela historiografia do período pós minerador a partir do destaque aos objetos importados (louça e vítreo) e outros vinculados à preocupações higienistas e sociais do período do Império do Brasil representados em objetos como: recipientes de serviço e uso pessoal (escovas de dente, objetos de toucador, urinóis e escarradeiras).

Juntamente com a exposição foram elaborados cartões postais com imagens de peças mais chamativas do acervo; os postais foram distribuídos gratuitamente nas exposições e espalhados no comércio para livre distribuição ou venda. Consideramos importante que a comunidade tivesse em mãos imagens desse patrimônio material apresentado nas exposições, para mostrar aos amigos, parentes ou turistas que viessem visitar a cidade.

A historiografia regional ao longo dos anos tratou a cidade de Goiás a partir de uma perspectiva de decadência pós período minerador, essa decadência foi bastante enfatizada no discurso de transfe‑ rência da capital do Estado da “decadente Goiás Velha” para a moderna, planejada e cosmopolita cidade de Goiânia. Esse tratamento impactou negativamente a cidade e seus habitantes, desenvolvendo nos cidadãos um sentimento de perda e inferioridade frequentemente exteriorizado na desconfiança em relação às pessoas vindas de outras cidades, denominadas de forasteiros.

O título e o tema selecionados para a exposição foram escolhidos pela coordenação do projeto, com o objetivo de seduzir a comunidade para o patrimônio arqueológico e mostrar como a cultura material poderia contribuir na construção de outras versões da história local, melhorando a autoestima da comunidade, ainda abalada pelo discurso de transferência da capital, e atingindo principalmente os antigos moradores do centro histórico, que tomavam como um ataque pessoal às suas famílias o discurso de decadência.

ARQUEOLOGIA PARA QUEM? GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NO SÍTIO HISTÓRICO URBANO DA CIDADE DE GOIÁS, GOIÁS, BRASIL – PATRIMÔNIO MUNDIAL

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A reação da população a esta exposição foi sensivelmente positiva, era possível sentir nas ruas a diminuição da animosidade através dos sorrisos dos transeuntes e a demonstração de interesse por aqueles “cacos” recuperados nas escavações. Ao tratar a história local de forma mais positiva houve um aumento de autoestima coletiva e consequente a valorização e apropriação do patrimônio arque‑ ológico como uma linha de defesa da cidade. Ressalta ‑se que neste momento conflituoso a escolha do aspecto a ser enfatizado no discurso arqueológico foi intencional, os pesquisadores diante de uma situação de embates optaram por valorizar um aspecto muito favorável do acervo escavado como forma de atrair o interesse da comunidade. Muito embora estes dados da cultura material representem de fato variáveis altamente relevantes para se repensar a historiografia regional a respeito da vida cotidiana no século xix.

Outros aspectos da vida cotidiana vilaboense nos séculos xviii e xix foram também ressaltados nessa e em outras exposições que circularam pela cidade entre 2001 e 2002, incluindo questões sobre a participação ativa dos escravos não apenas na mineração, mas na vida urbana e na rotina doméstica, porém, nesse momento, estes temas não tiveram repercussão na comunidade.

O resultado desta estratégia foi uma lenta, mas visível, aproximação da comunidade com o patri‑ mônio arqueológico na cidade. Timidamente os moradores passaram a se aproximar das escavações para trazerem histórias, perguntarem sobre os objetos encontrados diariamente e para denunciar intervenções de outras obras ou empresas que não tinham acompanhamento arqueológico, o que apesar de gratificante, era bastante complicado pois a equipe não era gestora do sítio, apenas respon‑ sável por três projetos que estavam em andamento.

A C E R Â M I C A A R Q U EO LÓ G I C A D E I N F L U Ê N C I A A F R I C A N A

Com a finalização dos projetos de embutimento das fiações de energia elétrica e de telefonia, e a conclusão dos trechos de implantação da rede de esgotamento sanitário no Centro Histórico tombado, a pesquisa nas ruas já estava bastante reduzida, as escavações ocorriam nos bairros adjacentes, sendo constantemente interrompidas pela paralização da obra da rede de esgoto. Assim o contato dos pesquisadores com a população já não era cotidiano e as atividades estavam mais voltadas para o laboratório.

A curadoria e análise do acervo recolhido nas escavações trazia à tona uma enorme quantidade de recipientes cerâmicos com uma extensa variedade de decorações plásticas (pintada e incisa). Observou ‑se ao mesmo tempo uma sequência diversificada de formas e utilização de argilas e deco‑ rações específicas para cada forma. As características observadas nestas decorações apresentavam similaridade com as escarificações e pinturas corporais dos africanos trazidos como escravos para a mineração, indicando que a confecção cerâmica tivesse sido feita por negros escravizados, assim como a hipótese de que estas decorações representassem manifestações culturais de seus grupos africanos de origem. Outras pesquisas arqueológicas realizadas no Brasil e nos Estados Unidos,

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também corroboravam com a hipótese de que os utensílios cerâmicos utilizados em Vila Boa de Goiás nos séculos xviii e xix foram confeccionados por negros escravizados e/ou alforriados (Tedesco, 2012).

O artesanato da cidade de Goiás possui um forte viés ceramista, tendo várias mulheres e suas famílias vivendo dessa produção. Todavia para os vilaboenses, a tradição oleira local foi herdada dos índios “Goyases”1. Esta atribuição indígena é ensinada nas escolas e constantemente divulgada pelos

veículos de comunicação, como jornais, sites de internet, e mesmo publicações, que tratam a cerâmica indígena de Vila Boa de Goiás como uma herança cultural local repassada entre as mulheres ceramistas. Novamente a pesquisa arqueológica se contrapôs a uma imagem construída historicamente para a cidade. A revelação de uma influência africana na cerâmica arqueológica em contraposição com a tradicional cerâmica vilaboense de influência indígena e portuguesa.

Ao apresentar a cerâmica arqueológica às ceramistas da cidade e indagar se elas já haviam visto estas peças muitas rememoraram suas mães e avós trabalhando em recipientes com formas e deco‑ rações semelhantes, assim como informações sobre os locais das jazidas de argila branca observada nas peças arqueológicas para servir, cujo uso também foi abandonado na confecção da cerâmica local.

A memória das ceramistas corroborou com as evidencias arqueológicas e levantaram algu‑ mas questões importantes sobre a tradição oleira da cidade. O que levou os ceramistas vilaboenses a promoverem mudanças tão drásticas nos utensílios cerâmicos ao longo do tempo e a elaborarem um novo projeto de memória e identidade? Seriam enfrentamentos vivenciados ou interferências de outros setores da comunidade? Estas questões foram trabalhadas na tese de doutoramento de uma das coordenadoras do projeto e se encontra na bibliografia deste artigo (Tedesco, 2012).

À medida que a pesquisa avançou e os dados foram parcialmente divulgados em exposições, palestras e conversas informais na cidade, duas reações tornaram ‑se claras: por um lado o estranha‑ mento e reações contrárias à raiz africana da cerâmica arqueológica foram se consolidando, por outro, um sentimento de libertação e pertencimento foi surgindo em um grupo até então excluído do patri‑ mônio cultural vilaboense.

A cerâmica arqueológica de origem africana tomou quase que vida própria no seio da comunidade vilaboense e as discussões aconteciam à revelia da pesquisa arqueológica. De um lado os indignados com a ruptura de uma verdade, de outro os incluídos no patrimônio, passaram a debater a questão em diversos lugares. Em certo momento a equipe de arqueologia foi surpreendida pela visita da superin‑ tendente da Igualdade Racial que foi conhecer a cerâmica africana de Vila Boa de Goiás, juntamente com representantes do SEBRAE2. Em seguida realizou ‑se na cidade o I Encontro Afro ‑goiano, com

realização de oficinas de produção cerâmica nos moldes da cerâmica arqueológica dos séculos xviii e xix3. E esses indivíduos conhecedores da africanidade olhavam para o acervo arqueológico exposto

na mesa de análise do laboratório e claramente viam coisas que os arqueólogos não enxergavam. Se apropriaram desse acervo arqueológico como um patrimônio probatório de sua presença, de sua luta, de sua história e de seus direitos de participação no patrimônio cultural da cidade.

ARQUEOLOGIA PARA QUEM? GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO NO SÍTIO HISTÓRICO URBANO DA CIDADE DE GOIÁS, GOIÁS, BRASIL – PATRIMÔNIO MUNDIAL

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Muitos foram os contatos entre a comunidade afrodescendente da Cidade de Goiás e os arque‑ ólogos do Núcleo de Arqueologia de Universidade Estadual de Goiás desde esses primeiros encon‑ tros em 2002 e 2003. Um pouco atônitas, um pouco admiradas, nós arqueólogas acompanhamos a construção das narrativas desta comunidade a respeito de seu passado e sua identidade. Em teoria aprendemos que as comunidades são os destinatários dos resultados das pesquisas arqueológicas, e o efeito esperado é a apropriação local da pesquisa e sua utilização no processo de construção de narra‑ tivas históricas e identitárias. Todavia em nossa atuação prática, seja ela no licenciamento ambiental ou acadêmica, seguimos na tarefa de resguardar o patrimônio arqueológico para as futuras gerações, na certeza de que essas gerações saberão reconhecer nosso esforço e aproveitarão seus resultados.

A A P R O P R I AÇ ÃO D O S R E S U LTA D O S DA P E S Q U I SA A R Q U EO LÓ G I C A

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