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O URBANISMO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

No documento Arqueologia urbana em centros históricos (páginas 113-116)

em Mértola (Portugal) Uma perspetiva integrada

CLÁUDIO FIGUEIREDO TORRES, MARIA DE FÁTIMA PALMA, MIGUEL REIMÃO COSTA, SUSANA GÓMEZ MARTÍNEZ, VIRGÍLIO LOPES

1.6. O URBANISMO MODERNO E CONTEMPORÂNEO

As linhas definidas no período medieval dominaram a estrutura urbana dos séculos posteriores. A muralha da vila foi alvo de manutenção regular; a zona alta manteve o Castelo, a Igreja Matriz e o Cemitério isolados; e, só tardiamente, os espaços periurbanos voltaram a receber habitações e ativi‑ dades artesanais e comerciais.

No interior do Castelo [FIG. 16.1.], a introdução da artilharia resultou em mudanças significati‑ vas, com a criação de rampas de acesso à torre situada a sudoeste. Ao longo do século xvi e xvii, os edifícios que haviam sido construídos pela Ordem de Santiago vão desaparecer. Algumas trans‑ formações terão acontecido mais cedo, como a reconstrução da cisterna, que passou a ter a atual forma rectangular e que terá ocorrido entre 1510 e 1535 (Boiça & Barros, 2002: 583). As escavações e acompanhamentos arqueológicos realizados em seu redor revelaram um conjunto de canalizações FIG. 16 O urbanismo de

Mértola em época moderna e contemporânea (séculos xvi a primeira metade do século xx). 1. Castelo. 2. Igreja Matriz. 3. Rua Direita. 4. Largo da Misericórdia – Porta da Ribeira. 5. Praça da Vila

(Largo Luís de Camões). 6. Torre do Relógio. 7. Convento de São Francisco. 8. Ermida de Nossa Senhora

das Neves.

9. Igreja de Santo António dos Pescadores. 10 Igreja de Nossa Senhora

do Carmo.

11. Ermida de São Sebastião. 12. Arrabalde da Vila. 13. Além Rio.

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em cerâmica e superfícies argamassadas que estariam destinadas a conduzir, de forma eficiente, as águas da chuva para o interior do reservatório, e que seriam contemporâneas das transformações do século xvi.

É também no século xvi, por volta de 1535, que se produziram as maiores mudanças na antiga Mesquita [FIG. 16.2.] com a construção duma nova cobertura abobadada e um novo portal renascen‑ tista presididos por um programa iconográfico que cruzava o estilo manuelino com o que costuma classificar ‑se como mudéjar alentejano.

Neste período, a vila de Mértola mantinha ‑se no interior das antigas muralhas, reconfigurando as sucessivas plataformas, que o sítio de implantação impunha, à organização em ruas e travessas, com preponderância da rua Direita [FIG. 16.3.], voltada ao Guadiana, sobre o troço nascente da muralha, na ligação das portas de Beja, a norte, e da Ribeira, a sul. A importância comercial deste eixo era pontuada pelos espaços mais importantes, como o largo da Misericórdia, junto à porta da Ribeira [FIG. 16.4.], ou a praça da Vila [FIG. 16.5.], mais a norte, que constituía a zona de concentração das estruturas concelhias. A dimensão de centralidade desta praça, atual largo de Camões, era assinalada, a nível da imagem urbana, pelo modo como o edifício dos antigos Paços do Concelho se projetava, em arcaria, sobre o pano exterior da muralha, ou pela silhueta da torre do Relógio [FIG. 16.6.], construída sobre um dos torre‑ ões, a norte, já no século de seiscentos. A ocupação da vila alta constitui, em contraponto, uma zona de consolidação bem mais recente, de características mais humildes em termos espaciais e sociais. A vertente próxima ao castelo, sem qualquer edificação na representação quinhentista de Duarte de Armas, só verá as últimas casas edificadas, com o aproximar do final do século xix.

A nível da arquitetura corrente, a vila do início do período moderno confirma a importância das características “moradas de casas” (confirmadas em termos documentais em diferentes centros urbanos do sul do país), em que os diversos compartimentos da habitação se encadeavam, numa estrutura marcada pela predominância das paredes mestras e pela presença episódica de tabiques. Em termos tipológicos, confirma ‑se uma clara ruptura em relação à casa pátio almóada, escavada no bairro da Alcáçova, considerando, não apenas critérios de organização, mas também de hierarquia dos espaços e do módulo construtivo, pese embora a semelhança identificada a nível dos sistemas cons‑ trutivos (Costa, 2015: 96).

A transformação da arquitetura da habitação do núcleo intramuros, durante o Antigo Regime, acentuará as diferenças entre a vila baixa e a vila alta, sobre o cadastro e módulo construtivo do perí‑ odo pós ‑reconquista. Se os conjuntos edificados à cota mais alta confirmarão a preponderância da pequena habitação de um piso (muitas vezes, de dois compartimentos, com ou sem logradouro), à cota mais baixa, assistir ‑se ‑á ao desenvolvimento de habitações de maior dimensão através, que poderão combinar as seguintes processos: aglutinação de vários imóveis; crescimento em altura (por vezes com integração de piso nobre e águas furtadas); e, quando possível, ampliação da habitação em profundidade, com ocupação do interior da parcela (Costa, 2015: 106). Assiste ‑se assim à gene‑ ralização, em especial ao longo da rua Direita e áreas próximas, da habitação abastada de frente larga

ARQUEOLOGIA URBANA EM MÉRTOLA (PORTUGAL). UMA PERSPETIVA INTEGRADA

CLÁUDIO FIGUEIREDO TORRES, MARIA DE FÁTIMA PALMA, MIGUEL REIMÃO COSTA, SUSANA GÓMEZ MARTÍNEZ, VIRGÍLIO LOPES

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constituída por espaços comerciais e de armazenagem no piso térreo, pela residência no piso nobre e pelos espaços de serviço e para serviçais nas águas furtadas.

Entretanto, a vila retomara já a urbanização fora de muros, especialmente a partir do início da centúria de seiscentos, acentuando a importância do território natural na conformação do espaço urbano. Este novo ciclo, está associado ao desenvolvimento dos novos bairros dos arrabaldes aquém e além rio, na fundação, no início de seiscentos, do convento de São Francisco [FIG. 16.7.], a sul da ribeira de Oeiras, e na edificação dos novos templos, que acentuaram a importância simbólica associada à orografia (capela de Nossa Senhora das Neves [FIG. 16.8.] e das igrejas de Santo António dos Pescadores

[FIG. 6.9.] e de Nossa Senhora do Carmo (FIG.16.10., junto ao sítio da antiga basílica paleocristã).

O tecido urbano do Arrabalde da Vila, a norte, foi conformado pela importância do traçado da antiga estrada para Beja, marcando a orientação dos novos conjuntos edificados [FIG. 16.11.], que origi‑ nalmente constituíam um conjunto bastante indiferenciado, na sua maioria de casas térreas, como é evidente da leitura do Livro da Décima de 1765 (AMM, 1765/1834, livro1: fls 41 ‑51). Já na margem esquerda do Guadiana, o arrabalde de Além Rio [FIG. 16.12.], afirmou ‑se progressivamente como uma espécie de entreposto, com presença cada vez mais expressiva de celeiros e armazéns, registada documentalmente, no segundo quartel de oitocentos (Costa, 2015: 84). A morfologia deste arrabalde recorda os núcleos rurais da região, sendo organizado em dois núcleos autónomos, distinguidos pelos nomes de Monte de Cima (situado a sul) e Monte de Baixo (a norte, defronte da vila intramuros, entre a Torre do Rio e Praça da vila).

Após o período de estagnação que se estende de finais do setecentos ao início da segunda metade de oitocentos, Mértola será objeto de um novo surto de prosperidade, que, constituindo uma expressão local da nova conjuntura, resulta, entre outros aspetos, do reforçado papel do Guadiana enquanto via de transporte e da exploração das Minas de São Domingos a partir de 1858. As repercussões da implanta‑ ção do Liberalismo e a emergência da burguesia serão evidentes, primeiro na vila intramuros e depois na afirmação gradual do Arrabalde da Vila enquanto novo espaço de centralidade, em especial a partir do último quartel de oitocentos. A praça da vila concentrará, no primeiro caso, uma parte significativa do investimento público da transição de oitocentos para novecentos, com construção dos novos Paços do Concelho (no limite sul da praça após aquisição de armazém parcialmente demolido) e com a campanha de obras no conjunto edificado debruçado sobre a muralha, entretanto libertado (e posteriormente convertido em tribunal). A reafirmação da praça enquanto espaço de representação será assim pautada pela presença e pela imagem da casa dos Azulejos, edificada em época imediatamente anterior no limite norte da praça. Mas a construção da ponte sobre a ribeira de Oeiras, a par da reestruturação do sistema viário com a reconfiguração das estradas para o Algarve e para Beja, acabaria mesmo por ser determi‑ nante para a afirmação do Arrabalde da Vila enquanto nova centralidade, ao estabelecer os novos eixos para a expansão urbana e libertar a vila intramuros desta linha de atravessamento fundamental.

Esta mudança terá também repercussões a nível da imagem urbana e da arquitetura doméstica das classes mais abastadas, marcada gradualmente por um quadro de referências mais diversificado.

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O florescimento económico da vila e da região em época contemporânea resultou em investimentos consideráveis na arquitetura da habitação, de expressão eclética oitocentista, em clara ruptura com as antigas moradas de casas nobres da vila velha, quer a nível da imagem e da volumetria, quer a nível tipo ‑morfológico e construtivo. De facto, ainda que o espaço intramuros seja também brindado por esta arquitetura (como são exemplos as já referidas casa dos Azulejos e casa Cor‑de‑Rosa), serão fundamentalmente as ruas fora de portas que serão eleitas para a edificação das novas habitações das classes privilegiadas. O Arrabalde da Vila acabará, gradualmente, por assumir as funções da vila intra‑ muros, cada vez mais remetida a uma posição de excentricidade, que se acentuará decisivamente com a construção da ponte sobre o Guadiana no início a década de 60 do século xx.

No documento Arqueologia urbana em centros históricos (páginas 113-116)