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O PERÍODO ROMANO

No documento Arqueologia urbana em centros históricos (páginas 101-111)

em Mértola (Portugal) Uma perspetiva integrada

CLÁUDIO FIGUEIREDO TORRES, MARIA DE FÁTIMA PALMA, MIGUEL REIMÃO COSTA, SUSANA GÓMEZ MARTÍNEZ, VIRGÍLIO LOPES

1.2. O PERÍODO ROMANO

Para caraterizar a topografia histórica referente a este período, são poucos os elementos seguros de que dispomos, o que se deve, sobre‑ tudo, ao facto de só pontualmente terem sido escavados níveis roma‑ nos. A monumental cintura de muralhas que atualmente envolve o casco antigo de Mértola seria a mesma de época romana, que foi certamente refeita em épocas posteriores. Em qualquer caso, somente a muralha junto da Torre do Rio, parece preservar estruturas datáveis desta altura

[FIG. 4.2.]. No que concerne ao traçado das ruas, os dados arqueológicos são quase inexistentes. Apenas são conhecidas, com alguma segurança, a porta do forum, que faria a ligação da cidade com as zonas a Norte, e a Porta da Ribeira, que ligava a cidade ao rio e à zona portuária.

As escavações arqueológicas recentemente levadas a cabo na

designada Casa Cor ‑de ‑Rosa [FIG. 4.3.] abrem novas perspectivas para a compreensão do urbanismo romano. Os trabalhos arqueológicos ainda não foram concluídos, mas os dados até ao momento conhe‑ cidos apontam para que se esteja em presença de uma estrutura monumental, de carácter público, possivelmente um templo [FIG. 5]. Estruturas encontradas em 2006 ‑2007, no acompanhamento da obra de recuperação da Casa Fagulha, relativamente próxima, parecem situar ‑se no mesmo alinha‑ mento destas, pelo que poderão constituir, eventualmente, o prolongamento deste edifício até esse FIG. 3 Estruturas da Idade

do Ferro das escavações da Biblioteca Municipal de Mértola (foto Maria de Fátima Palma).

FIG. 4 Mértola no período romano.

1. Muralha da Idade do Ferro. 2. Muralha da Vila – Estruturas

junto da Torre do Rio. 3. Casa Cor ‑de ‑Rosa. 4. Casa Romana –

Câmara Municipal. 5. Depósito/armazém na

Rua Serrão Martins 7B. 6. Depósito/armazém

na hospedaria Beira Rio. 7. Depósito/armazém de

Além ‑Rio. 8. Necrópole romana

do Rossio do Carmo. 9. Necrópole romana da

Achada de São Sebastião. 10. Necrópole romana da

Rua Alves Redol. 11. Biblioteca Municipal. 12. Acrópole

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outro imóvel. Estas estruturas monumentais estariam, possi‑ velmente, integradas numa praça do tipo forum, constituído por plataformas, e coroado por um templo. Com ela ser relacionaria a descoberta no século xvi, no torreão que deu lugar à Igreja da Misericórdia, de seis ou oito estátuas às quais viriam a juntar ‑se, no final de 2017, mais quatro exemplares exumados no âmbito da intervenção na Casa Cor ‑de ‑Rosa [FIG. 6].

Quanto à arquitetura doméstica de Myrtilis, os dados disponíveis resumem ‑se apenas a uma “casa romana” (Lopes, 2012a), escavada na década de oitenta do século xx no subsolo do edifício da Câmara Municipal (onde hoje está instalado o núcleo museológico correspondente, FIG. 4.4. e

FIG. 7) e, entre 1994 e 2004, na intervenção arqueológica reali‑ zada no edifício contíguo a poente, dita “Casa do Lanternim”. A escavação arqueológica nos Paços do Concelho não permitiu esclarecer muitas questões, dada a impossibilidade de prosseguir sob as construções vizinhas. No entanto, conseguimos determi‑ nar que esta casa teve dois níveis distintos de ocupação: um mais antigo, possivelmente de época imperial, e um outro, posterior ao século iii d.C. Um impluvium mais antigo foi completamente reco‑ berto por um opus signinum compacto, ainda hoje visível, com o

objetivo de o adaptar a tanque ou lago interior. Os vários compartimentos da habitação organizavam‑ ‑se em volta de um pátio, embora a leitura funcional deste espaço suscite algumas dúvidas, sobretudo nas aberturas ao exterior que nunca foram encontradas. Tudo faz supor que os vestígios encontrados na Casa do Lanternim possam constituir o limite poente da referida habitação, embora a rua que separa

FIG. 5 Estruturas de edifício público romano na Casa Cor ‑de ‑Rosa (foto Virgílio Lopes). FIG. 6 Estátuas encontradas durante as escavações da Casa Cor ‑de ‑Rosa (foto Virgílio Lopes). FIG. 7 Núcleo museológico da Casa Romana – Câmara Municipal de Mértola (foto Jorge Branco).

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as duas edificações nunca tenha sido alvo de intervenção arqueológica. A confirmar ‑se esta hipótese, os dois conjuntos de estruturas pertenceriam a um edifício com cerca de 500 m2, constituindo uma

métrica muito próxima das casas romanas de Mérida (Alba, 2005: 125). Certamente, a parte frontal do edifício, virada à rua e ao rio, seria ocupada por tabernae (lojas). A julgar pelo número e a área dos compartimentos, as técnicas construtivas e o espólio associado, não se trataria de uma casa luxuosa. Pela sua implantação ao longo da rua principal da cidade, teria servido de habitação a um dos muitos comerciantes que durante vários séculos justificaram a importância económica deste porto fluvial.

O espaço exterior às muralhas, para o lado Norte, encontrava ‑se ocupado por armazéns e outros espaços ligados ao comércio e à indústria, bem como, por necrópoles. Duas escavações documenta‑ ram a atividade comercial. Por um lado, nos trabalhos de acompanhamento da obra de remodelação de uma casa situada na Rua Serrão Martins em 1999 [FIG. 4.5], foi detetado um conjunto de ânforas do período romano (séculos i ‑iv d.C.), que aparentemente, fariam parte de um depósito/armazém de uma casa romana. Por outro lado, os níveis inferiores da intervenção arqueológica levada a cabo em 2008 na hospedaria Beira Rio [FIG.4.6.] forneceram estruturas e materiais com cronologia do séculos v–vi (Lopes, 2012b). Idênticas estruturas existiam na margem esquerda do Guadiana, onde hoje se localiza o núcleo populacional de Além ‑Rio (Sá, 1905; FIG. 4.7.).

No que respeita ao mundo dos mortos, até ao momento foram identificadas na cidade de Myrtilis três necrópoles: uma nas encostas do Rossio do Carmo [FIG. 4.8]; outra na Achada de São Sebastião

[FIG. 4.9.]; e uma terceira na Rua Alves Redol [FIG. 4.10]. Da primeira, são poucas as informações arque‑ ológicas de que dispomos, para além da referência a uma dezena de sepulturas escavadas na rocha nos anos 70 do século xx, aquando do alargamento da rua, e a uma lucerna com um enquadramento datável dos fins do século i e ii d.C.

Na segunda, foram escavadas aproximadamente três centenas de sepulturas, com crono‑ logia entre o século i e o v d.C., que se estendiam por uma vasta área de terrenos xistosos, junto à margem direita do rio Guadiana. Foram encontrados 269 enterramentos, dos quais ainda se conservam 87 sepulturas, escavadas na rocha, na área musealizada junto à ermida de São Sebastião, no interior da Escola EB2 ‑3ES de Mértola. Na maior parte dos casos, as sepulturas de inumação estão escavadas no afloramento, sendo cobertas com lajes de xisto e terra. Nestas duas necrópoles, o espólio referente ao período romano é extremamente escasso. Pensamos que estas necrópoles tenham tido uma longa utilização, tendo sido aí seguidos rituais pagãos e, posteriormente, cristãos (Lopes, 1999: 95).

As obras de remodelação do eixo comercial realizadas em 2008/2009, na rua Alves Redol, puse‑ ram a descoberto parte de uma importante necrópole de incineração até então completamente desco‑ nhecida, cujo espólio associado aponta para uma cronologia do século i d.C. Trata ‑se de 26 estruturas funerárias que albergavam incinerações, na sua maior parte depositadas em urnas, e 3 enterramentos de inumação. No limite oeste desta necrópole, duas sepulturas de inumação ladeiam uma de incine‑ ração. À semelhança de outras cidades romanas como Mérida ou Córdova (Vaquerizo, 2002: 156), também em Mértola parecem conviver os dois tipos de enterramento, incineração e inumação.

Ar queolo gia Urbana em C entr os Hist óric os 104 1.3. A ANTIGUIDADE TARDIA

A parede exterior do criptopórtico [FIG. 8.1.] é o único troço do amuralhamento que podemos enquadrar com relativa segurança no período tardo ‑romano, a julgar pelo tipo de aparelho construtivo e a estratigrafia associada àquela estrutura na área intramuros. No entanto, tudo aponta para que o perímetro do conjunto da muralha seja o mesmo que foi conservado até hoje, acrescentando ‑se, na Antiguidade Tardia, a Torre do Rio, destinada à defesa e controlo do porto e da porta de acesso ao mesmo (Gómez & Lopes, 2008, FIG. 8.2.).

Carecemos de informação estratigráfica sobre os acessos e os arruamentos no interior da muralha, mas é de supor que as constantes do período anterior se mantivessem. Do mesmo modo, é escassa a informação de que dispomos sobre os espaços domésticos, resumindo ‑se a já referida

domus descoberta nas escavações dos Paços do

Concelho e da Casa do Lanternim [FIG. 8.3.]. Os mate‑ riais encontrados, apesar de serem em parte reutili‑ zados nas construções posteriores, apontam para uma ocupação daquele espaço na Antiguidade Tardia.

No que se refere à arquitetura religiosa, durante os séculos v ‑vi d.C., na zona da antiga acrópole

[FIG. 8.4.], as construções do possível forum foram remodeladas e adaptadas às novas necessidades criadas com a introdução do Cristianismo tendo sido erguido, na parte oeste da plataforma, um complexo de edifícios para albergar dois monumentais batisté‑ rios. Para além das sumptuosas piscinas batismais, chegaram até aos nossos dias vestígios dos pavi‑ mentos adornados com painéis de mosaicos, onde

não faltava a policromia dada pelas tesselas de vidro ou pelos vestígios dos frescos que chegaram até nós. No suburbium, fora de portas, procedeu ‑se à construção das basílicas paleocristãs do Rossio do Carmo [FIG. 8.5.], do Cineteatro [FIG. 8.6.] e do Mausoléu [FIG. 8.7.].

Na acrópole, o complexo religioso assenta sobre uma construção subterrânea designada por criptopórtico/cisterna. Esta construção é referida por Duarte de Armas, no início do século xvi, que anota: “aqui esta huã abobada atopida muyto boa” (Almeida, 1943). Trata ‑se duma galeria com um papel essencialmente estrutural, de contenção e suporte da plataforma de implantação do forum (Torres & Silva, 1989: 31; Torres & Oliveira, 1987: 618).

O complexo religioso era constituído pela sala do batistério, um compartimento anexo situ‑ ado a norte, uma passagem em cotovelo e um espaço que ladeia a abside; a sul e a norte é delimitado por um compartimento de planta basilical e uma galeria porticada, respetivamente. Este edifício de planta retangular continha no seu interior um batistério octogonal, implantado no centro de um tanque

FIG. 8 Mértola na Antiguidade Tardia. 1. Muralha junto ao criptopórtico. 2. Torre do Rio. 3. Casa Romana – Câmara Municipal. 4. Acrópole – Complexo religioso paleocristão. 5. Basílica do Rossio do Carmo.

6. Basílica do Cine ‑Teatro Marques Duque. 7. Mausoléu paleocristão. 8. Igreja Matriz. 9. Casa Cor ‑de ‑Rosa. 10. Hospedaria Beira Rio. 11. Necrópole da Achada

de São Sebastião (elaboração CAM).

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ou piscina e rodeado por um deambulatório, no qual se abria a leste uma abside de planta em arco ultrapassado. O pavimento da galeria porticada e o deambulatório estavam cobertos por um significativo conjunto musivo, do qual realçamos, no deambulatório do batistério, Belerofonte cavalgando o Pégaso para matar a Quimera e, no longo corredor porticado, dois leões afrontados e várias cenas de caça com um cavaleiro empunhando um falcão (Lopes, 2003). Se a falta de paralelos bem datados inviabiliza uma cronologia segura, leituras estratigráficas e traços estilísticos permitem atribuir esta obra à primeira metade do século vi d.C.

Os trabalhos arqueológicos do verão de 2013, na encosta do Castelo de Mértola, puseram a descoberto parte de um edifício, onde se insere uma segunda estrutura batismal de forma octogonal. Nos derrubes assen‑ tes sobre o seu pavimento, foi encontrada uma grande quantidade de fragmentos de fresco dum programa pictórico o qual, apesar de estar

longe de ser compreensível na sua totalidade, os restos identificáveis parecem assemelhar ‑se aos programas pictóricos das pinturas das catacumbas de Roma (Bourguet 1965; Nicolai, Bisconti & Mazzoleni, 2000).

No sector oriental da plataforma, as escavações realizadas no adro da Igreja Matriz [FIG. 8.8.], a antiga Mesquita, revelaram uma estrutura monumental, anterior à construção da mesquita, consti‑ tuída por silharia de granito reaproveitada, com cerca de 2 m de altura e da qual sobressaia um corpo retangular que foi interpretado como sendo uma abside (Gómez, 2011: 103; FIG. 9). Com os dados de que dispomos colocamos a hipótese de se tratar do limite nascente de um edifício, de planta simples, com uma abside retangular. Da análise dos materiais epigráficos e arquitetónicos, provenientes das várias obras feitas no edifício e nas imediações, pode inferir ‑se a existência de vários momentos construti‑ vos. Um primeiro edifício, possivelmente um templo dedicado ao culto imperial atendendo à epigrafia a e aos elementos arquitetónicos aí encontrados, poderá ter estado em funções até aos inícios do século iv. Contudo, a descoberta, no local, de algumas impostas e um cimácio leva a considerar a exis‑ tência de um templo cristão no século vi ‑vii naquele local (Lopes, 2014).

No suburvium, bastante afastado das muralhas da cidade, foi construído um mausoléu nesta época. Nos anos de 2008 e 2009, as intervenções arqueológicas levadas a cabo na Rua Afonso Costa, revelaram as criptas dum edifício, com vestígios do arranque de duas abóbadas de berço e, a nível dos pavimentos, quatro sepulturas de contornos retangulares, com uma orientação nascente ‑poente

[FIG. 10]. Elementos de arquitetura decorativa de grandes dimensões, como um cimácio e um frag‑ mento de coluna, bem como a considerável dimensão das estruturas, levam a colocar a hipótese de que, pudesse haver um segundo piso. A epigrafia encontrada no sítio (um epitáfio em grego e outro em latim) aponta para uma ocupação do espaço situada pelo menos entre os anos 522 (?) e 566 (Dias, Gaspar, Lopes, 2013: 247 ‑267; Lopes, 2014).

FIG. 9 Estruturas da Antiguidade Tardia sob a antiga mesquita, actual Igreja Matriz

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A sul deste mausoléu, as campanhas de escavação arqueológica no Cineteatro Marques Duque e na Rua Dr. Afonso Costa, permitiram identificar uma basílica paleocristã que já tinha sido indiciada por Estácio da Veiga no século xix (Veiga, 1983: 117). Tratava ‑se de um edifício de três naves, possivel‑ mente com dupla abside, tendo a nave central, mais larga, outra abside interior. Dentro e em redor da basílica, foi encontrada uma necrópole que se estendia pela rua Serrão Martins. A epigrafia associada ao sítio remete para um intervalo cronológico entre 465 e 518, tornando admissível que a construção da basílica se iniciasse em meados do século v, prolongando ‑se a sua utilização às centúrias seguintes. Também desde o século xix se conhece a existência duma outra Basílica Paleocristã no Rossio do Carmo. Supomos ter existido nesta zona uma área cemiterial desde o século iv a.C., hipótese susten‑ tada por uma lápide funerária com “escrita do Sudoeste”, que estava a ser reutilizada numa sepultura paleocristã. Já foi referida a existência de uma necrópole de inumação a partir do final do século i d. C. neste mesmo local que antecedeu à construção da basílica funerária, composta de três naves, com sete tramos separados por colunas e com duas absides semicirculares contrapostas destacadas em relação ao corpo do edifício (Macias, 1993: 39). Esta igreja revelou uma dimensão funerária em quase todo o espaço interior, bem como nas áreas adjacentes, onde se localizam sepulturas em fossa, esca‑ vadas na rocha e, em alguns casos, identificadas com uma lápide funerária. A epigrafia associada à necrópole permite atestar uma ocupação contínua entre, pelo menos, os anos 462 e 729 d.C. (Dias & Gaspar, 2006: 135).

FIG. 10 Mausoléu da Antiguidade Tardia (foto Virgílio Lopes).

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107 1.4. A CIDADE ISLÂMICA

A continuidade até a atualidade de alguns troços de muralha datados de época romana e da Antiguidade Tardia permite sustentar a ideia de manutenção do recinto fortificado do Centro Histórico no período islâmico, durante o qual foi beneficiando de obras de manutenção e reforço, nem sempre passíveis de serem datadas com exatidão. Do mesmo modo, os eixos viários principais terão mantido a mesma orientação, ao longo das curvas de nível, ainda que tenham sofrido, durante deste período, alterações decorrentes de mudanças na configuração das estruturas habitacionais. Estas alterações são confirmadas pelo saneamento urbano. É o que ocorre, por exemplo, na Casa Romana musealizada na cave dos Paços do Concelho [FIG. 11.1.], onde uma fossa séptica, certamente situada numa rua, foi escavada no interior dos compartimentos roma‑

nos, destruindo parte dos seus muros. Uma outra evidência destas alterações foi encontrada nas escavações da Biblioteca Municipal [FIG. 11.3.] onde, sob os pavimentos duma casa almóada, foi encon‑ trada uma fossa séptica, desativada em inícios do século xi, pertencente a uma habitação califal da qual não se conservaram quaisquer outros vestí‑ gios (Palma & Gómez, 2010: 713).

No espaço intramuros, a primeira grande transformação estrutural em época emiral é evidente no Castelo [FIG. 11.4]. Desconhecemos a que época exata remonta a ocupação nesta área da cidade, embora alguns indícios apontem para uma estrutura fortificada, pelo menos, desde a Idade do Ferro (Palma & Gómez, 2013). A primeira referên‑

cia clara nas fontes escritas data do século ix quando ’Abd al ‑Mālik Abī l ‑Ğawwād, seguidor de ’Abd al ‑Rah.mān Ibn Marwān al ‑Ğillīqī, o Galego, tomou Mértola e reforçou as defesas do seu castelo (Coelho, 1989: vol. II p. 159; Picard, 2000: 206). A planta que hoje conhecemos da fortificação terá, certamente, origem no período omíada, tendo sido modificada sucessivamente, consoante as necessi‑ dades defensivas e habitacionais, até à conquista cristã em 1238. Será desta primeira fase de ocupação islâmica, séculos ix ‑x, a forma trapeziforme do Castelo, que ainda hoje figura, adaptada à topografia do terreno, com torres de planta quadrada nos seus ângulos (Palma & Gómez, 2013).

Nesta primeira fase de construção islâmica, a entrada na fortificação teria um acesso direto e simples, com dois torreões quadrangulares compostos por grandes silhares a flanquear a mesma. Vestígios desta primeira estrutura da porta são visíveis na sua primeira fiada de silhares que marcam os cantos dos dois torreões e que, em época almóada, seriam absorvidos pela construção duma porta em cotovelo. Obras de reconstrução da porta, no século xx, deixaram à vista parte da face de um dos FIG. 11 Mértola islâmica:

1. Casa Romana – Câmara Municipal. 2. Casa Cor ‑de ‑Rosa. 3. Biblioteca Municipal. 4. Castelo de Mértola. 5. Acrópole/Alcáçova. 6. Antiga Mesquita/ Igreja Matriz. 7. Antemuro. 8. Mausoléu paleocristão. 9. Necrópole islâmica. 10. Arrabalde ribeirinho. 11. Forno de produção cerâmica. (elaboração CAM).

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torreões (Palma e Gómez, 2013). No exterior virado a Norte, alinhado com estes dois torreões, ainda é observável um outro torreão, de planta quadrada (Torres et alii, 1991: 16; Macias, 2006: II, 112).

As obras no interior do Castelo do século ix foram acompanhadas de um conjunto de infraes‑ truturas habitacionais e de saneamento urbano (Palma & Gómez, 2013). Embora as intervenções arqueológicas realizadas no interior do monu‑ mento tenham sido parciais, não permitindo ainda a compreensão, no seu conjunto, das sucessivas estruturas ali conservadas, foram registadas várias fossas sépticas e canalizações associadas a habi‑ tações, cujas desativações foram acontecendo entre os finais do século x e os finais do século xii, indicando uma preocupação pela salubridade no interior do recinto fortificado [FIG. 12].

Sabemos que o complexo religioso paleocristão, situado aos pés do Castelo [FIG. 11.5.], conti‑ nuou a manter as suas funções religiosas, pelo menos até uma fase adiantada do século ix. Durante os períodos califal e taifa foi perdendo a sua vigência e, nos inícios do século xii, apenas possuía um uso marginal, como o demostram as fogueiras que se realizaram sobre os mosaicos, as toscas reparações que estes foram sofrendo, ou as lascas deixadas pela sistemática reutilização dos mármores do batis‑ tério (Gómez, 2015).

Possivelmente, um dos templos deste grande complexo religioso paleocristão, situado sob os alicerces da atual Igreja Matriz [FIG. 11.6.], foi partilhado pelas duas comunidades religiosas no início da presença islâmica no território, como foi hábito um pouco por todo al ‑Ândalus. Desconhecemos que alterações poderá ter sofrido esta igreja paleocristã para a sua adaptação ao culto muçulmano. É possível que a sua transformação para uma mesquita com as dimensões aproximadas do templo

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