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Vale destacar que boa parte dos poetas da geração “marginal” (se não todos) compreendeu uma importante tese de Heidegger para a aproximação compreensiva com a poesia, a de que a poesia é quem confere ao homem o seu habitar no mundo5. Se a poesia desta geração foi de extrema sensibilidade (MONTEIRO, 2007), é porque soube potencializar aquilo em Heidegger que, nas pistas de Benedito Nunes, podemos chamar de Dasein poético6. Quanto a este habitar, Leminski tão bem o compreendeu porque foi um homem a serviço da poesia e leva a poesia para as outras atividades em que se envolve (ou a máxima: leva a poesia para a vida). E não apenas: um guerreiro que blanchotianamente esgotou-se em sua obra, atingindo o grau zero de sua escritura. O próprio Leminski vale-se da figura de guerreiro: guerreiro zen nas duras cordas da vida, como diz a carta-poema ao poeta Régis Bonvicino (LEMINSKI, 1999, p. 95): “eu sou um guerreiro / um dia serei um mestre / mas agora estou em idade guerreira / afoito”. Se tudo iria virar poesia em Leminski, era porque o próprio seria uma espécie de guerreiro da linguagem, tese principal da comentadora Solange Rebuzzi (2003). Ora, Leminski aprende a ser um guerreiro da linguagem, bem como aprende a diluir-se na obra num movimento blanchotiano7, com um escritor nipônico chamado Yukio Mishima. É lá que Leminski extrai a tese de autor-guerreiro, tendo em vista o autor-samurai que foi Mishima, um escritor que escrevia com a espada e levou às últimas consequências a vida como resistência8.

Esse ato leminskiano é revelador não só da presença mishimiana em sua obra, como será da presença de Heidegger. Nesta primeira parte o nosso interesse é sublinhar o lugar de Heidegger na poesia de Leminski, ou o Heidegger que Leminski leu. Para isso, tomaremos um dos primeiros poemas que abre o livro póstumo La vie en close, chamado “Limites ao léu”, em que o poeta define poesia a partir de uma série de nomes (poetas, críticos, filósofos, ensaístas, músicos). Esses nomes, que parecem desconectados entre si, mais funcionam como uma órbita no poema, girando em torno da poesia, formando a constelação-Leminski.

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Veja-se a conferência “... poeticamente o homem habita...” (HEIDEGGER, 2010, p. 165-181).

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Veja-se a seguinte citação de Benedito Nunes, em Hermenêutica e poesia (1999, p. 158): “o próprio Dasein é considerado poético [...]”.

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Fazemos referência à obra O espaço literário (2011), do crítico e ensaísta francês Maurice Blanchot, em que ele coloca que a obra só é obra quando o escritor destruir sua vida e, nas malhas da linguagem, esgotar-se na obra.

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Leminski, inclusive, irá traduzir um romance de Yukio Mishima, Sol e Aço (1986), sendo responsável, portanto, por apresentar ao público brasileiro este singular escritor japonês.

POESIA: “words set to music” (Dante via Pound), “uma viagem ao

desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra Pound), “a fala do infalável” (Goethe), “linguagem voltada para a sua própria materialidade” (Jákobson), “permanente hesitação entre som e sentido” (Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz com palavras, não com idéias” (Mallarmé), “música que se faz com idéias” (Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), “um fingimento deveras” (Fernando Pessoa), “criticism of life” (Mathew Arnold), “palavra-coisa” (Sartre), “linguagem em estado de pureza selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire” (Bob Dylan), “design de linguagem” (Décio Pignatari), “lo imposible hecho posible” (Garcia Lorca), “aquilo que se perde na tradução” (Robert Frost), “a liberdade da minha linguagem” (Paulo Leminski)... (LEMINSKI, 1994, p. 10).

A citação a Heidegger conduzirá nossa leitura. De todas as citações, a de Heidegger é a que toca naquilo que é essencial ao homem: a palavra (essa tese de Heidegger parece mesmo ter muito a dialogar com Leminski). Quando Heidegger toma o poeta Hölderlin para dizer que o homem se funda na palavra, quer chegar naquilo que ele chama de “essência da Poesia: que é a Poesia fundação do Ser pela palavra”9 (HEIDEGGER, 1994, p. 30). Mesmo refletindo sobre a poesia, essa reflexão continua ligada à questão central de toda sua filosofia: a questão do Ser. O que nos interessa deste Heidegger é: chegar ao Ser pela poesia. A poesia como abertura ao Nada originário. Poesia que é “na maior parte do seu tempo escuta” (HEIDEGGER, 2003, p. 59), já que somos sempre diálogo, “dialogação”, e estamos sempre ouvindo uns aos outros.

Esse é o Heidegger que Leminski lê, um filósofo preocupado com a linguagem e com o poder que a poesia tem de garantir sentido no mundo. Ora, quando Heidegger, em seu primado ontológico, investiga o ser-no-mundo, principalmente em sua obra capital Ser e

tempo (2011a), está investigando uma espécie de laço de familiaridade que todo Dasein (ser-

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aí) estabelece com o mundo em sua espacialidade do aí10. Esse laço de familiaridade é tão somente a corda do sentido que todos nós precisamos e tanto buscamos. Quando Heidegger pensa na “quebra” desta familiaridade é a partir do momento em que uma “disposição” começa a atuar no ser: a angústia. Em Ser e tempo, a angústia será a tonalidade responsável por abrir o ser-aí para o Nada, mas não um nada como sinônimo de vazio. E sim o Nada primordial, originário de todo Dasein e revelador de todo ente. O Nada que tudo é, como um fundo sem fundo. Em outra preleção, de 1929 intitulada Que é metafísica? (1989, p. 39), Heidegger nos mostra como o Dasein está suspenso no Nada: “estamos suspensos na angústia”. Esse Nada que a metafísica tanto levou à exaustão dá-se, nas páginas de Heidegger, como uma experiência de ser, por isso o Nada será o véu do ser para Heidegger (idem, p. 51), ou o ponto de liberdade do ser-aí. Por isso, ainda, esse Nada heideggeriano está muito próximo da experiência Zen-budista de vacuidade (sunyata).

O lugar de Heidegger, aqui, é o de sua referencialidade (référencialité). Termo caro à teoria da literatura e aos estudos comparatistas, a referencialidade vem nos mostrar que a obra literária é um organismo vivo e passível de todo tipo de interação textual. Muito menos queremos recorrer e valer-se da angústia da influência, de um Harold Bloom (2002), mas algo além: valer-se do próprio movimento de cruzamento de textos. É desse cruzamento com o pensamento de Heidegger que a poesia de Leminski vai se imbuir de um bloco de tonalidades afetivas em direção ao Nada.