• Nenhum resultado encontrado

Antes de sua morte, Leminski organizou uma obra, que só viria a ser publicada posteriormente, em 1991. O destino de La vie en close já estava traçado. Esta obra póstuma é, certamente, a mais densa de Leminski, quer dizer, é uma obra de muitos poemas com certa coloração existencial. Se a década de 1970 foi de grande efervescência para a sua produção poética, a década seguinte seria de grandes ondulações. Numa consulta na biografia do poeta pode-se constatar que Leminski perdeu, em períodos curtos, alguns ícones de sua vida. Como em 1978, ao perder a mãe (o pai já havia morrido em 1973), e no ano seguinte assistir a morte do filho de dez anos, Miguel. Ainda em 1986 recebe a notícia de suicídio do irmão, Pedro Leminski. Já nos últimos anos de vida, Leminski enfrenta uma onda de grande depressão e

10

Cf. especialmente a preleção Introdução à filosofia (2009, p. 144) onde Heidegger expõe melhor a espacialidade do “aí” do ser-aí nosso, usando a expressão “círculo de manifestação” onde os entes giram e se manifestam.

total entrega ao álcool (o álcool foi uma parceira da vida de Leminski)11. Antes que desabemos em um velho abismo de justificar a poesia pela vida do autor (e antes que uma patrulha estruturalista se manifeste, para a qual a vida do autor nada interessa ou tenha a contribuir), preferimos partir da vida do autor para a obra, até porque Leminski opera com a junção vida/obra. O que temos em La vie en close são poemas tempestuosos.

Tomemos o poema “Dor elegante”, um dos mais expressivos da obra e um dos poemas mais conhecidos do poeta curitibano12:

Um homem com uma dor É muito mais elegante Caminha assim de lado Com se chegando atrasado Chegasse mais adiante Carrega o peso da dor Como se portasse medalhas Uma coroa, um milhão de dólares Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos Não me toquem nesse dor Ela é tudo o que me sobra Sofrer vai ser a minha última obra (LEMINSKI, 1994, p. 74).

Que dor é essa, que se carrega como medalhas e que vai ser a última obra? Será a dor de um estar-no-mundo? A dor de uma inconformidade com o presente? A dor, aquela dor, que serve de mola propulsora para a criação literária? Ou a dor de um angustiar-se? Que angustiar-se? Esse homem caminhante com uma dor, hiperbolicamente elegante (não a dor física, a enfermidade) e que pode ser qualquer um de nós, carrega seu fardo: o imenso

tormento que é a dor. Uma dor muito próxima do sentido fenomenológico-existencial de dor

como tormento infinito, ou, como vemos no verbete “dor” do Abécédaire de Martin

Heidegger (2008, p. 67), organizado por Alain Beaulieu e traduzido por Márcia Sá Cavalcante

Schuback e Emmanuel Carneiro Leão: “a dor refletida como fundo da vida”. Essa dor parece pouco ter a ver com a dor “estado d’alma” dos românticos do século XIX, os desesperados, inconformados, pessimistas, ironistas, que usavam a dor como escapismo para o sonho, para a fuga (abulia). E tem mais a ver com algo que é mesmo originário do ser, que faz parte dele, desde seu nascimento. Quando o eu lírico diz, na última estrofe (três últimos versos), que não lhe toquem nessa dor que será a sua obra final, ele está se auto coroando com a dor para fazê-

11

Cf. a biografia de Leminski feita por Toninho Vaz, O bandido que sabia latim (2001, p. 208ss.)

12

Este poema, inclusive, foi magistralmente musicado por Itamar Assumpção. Outros cantores como Zélia Duncan também o interpretam.

la de matéria prima para a criação poética. Outro poema em La vie en close, intitulado “Lápide”, parece ser complementar a este poema, a esta coroação da dor pelo eu lírico. A “Lápide 2 – epitáfio para a alma” assim diz:

Aqui jaz um artista Mestre em desastres Viver

Com a intensidade da arte Levou-o ao infarte Deus tenha pena Dos seus disfarces (Op. cit., p. 83).

Viver carregando dores é viver de desastres – em Heidegger, nos Conceitos

fundamentais da metafísica (2011b, p. 213), temos uma palavra próxima a esta ideia que é

“penúria”, as misérias singulares. O que a lápide quer dizer é: na relação dor/arte o poeta, a partir de suas experiências na vida como um singular desastre, vai ao grau zero – através dos seus inúmeros disfarces, eis a lição pessoana – para compor sua obra. Vários outros poemas de La vie en close vão perseguir a questão da dor. Citemos o poema intitulado “Luto por mim mesmo”:

a luz se põe

em cada átomo do universo noite absoluta

desse mal a gente adoece como se cada átomo doesse como se fosse esta a última luta o estilo desta dor

é clássico

dói nos lugares certos sem deixar rastos dói longe dói perto sem deixar restos

dói nos himalaias, nos interstícios e nos países baixos

uma dor que goza como se doer fosse poesia já que tudo mais é prosa (Op. cit., p. 92).

O título do poema já é curioso pelo uso da palavra “luto” (do verbo lutar, ou poderia ser o substantivo luto), lutar por si é buscar-se, tentar encontrar o sentido da vida. A primeira estrofe aborda as pequenas mortes diárias que acomete ao homem, afinal, morremos aos

poucos a cada dia – este, talvez, seja o melhor exemplo para o que Heidegger fala da “quebra” do ser-aí na finitude. Essa dor, por ser originária ao ser, é posta pelo eu lírico como algo deslizante, derramada na vida, isto é, tudo é dor (“dói longe dói perto”). Essa dor que goza é, então, nada mais que a dor como abertura para o angustiar-se, para o ser tocado pela Angústia. Com Heidegger, podemos identificar este eu lírico como o ser-aí angustiado, tocado pela disposição e flutuando na suspensão (do Nada).

Leminski também persegue o tema da dor nos haikais, subvertendo o gênero poético nipônico, ironizando slogans da ditadura, uma dor mais refletida nas agruras do momento histórico brasileiro13. No entanto, com os poemas aqui selecionados podemos averiguar como este eu lírico configura um esgotamento ao centralizar a dor. Em termos heideggerianos, este eu lírico apresenta um profundo tédio (Stimmung) – o que, para Heidegger, só quando esse tédio é despertado (que está dormindo em nós) o ser-aí atinge o ponto de liberdade em seu deixar-ser enquanto tal. Os poemas apresentados nos dão esse despertar das tonalidades

afetivas (veja-se o verso “dói nos lugares certos” do poema “Luto por mim mesmo”).

A poesia de Leminski, quando afinada ao tédio e à angústia, não apenas está despertando tais tonalidades para a liberação do ser-aí no ponto vertiginoso da liberdade, mas também está revelando a sua onticidade. Portanto, da aproximação compreensiva entre Heidegger e a poesia de Leminski da obra La vie en close resulta uma poesia que podemos chamar de “poesia existenciária”, pelo seu caráter ontológico no horizonte da analítica existencial heideggeriana.

Conclusão

Com os poemas aqui trazidos, podemos inferir que viver é sofrer, que a vida é ser constantemente tocado pela disposição da angústia, que ver é ver o nada, que ser no mundo é estar em constante inquietação, suspenso. A poesia de Leminski e grande parte da poesia da geração “marginal” têm um ponto em comum: a manifestação de um tédio profundo. De modo geral, toda grande poesia pós-Rimbaud mergulhou numa espécie de despersonalização do eu (Eu é um outro, resumia Rimbaud), num mergulho na angústia, tendo as tonalidades afetivas uma função de invólucro. Inconformada com as agruras da vida (e mais uma vez, a poesia sempre brotará dessas inconformações), a poesia brasileira deste momento histórico- cultural experienciou o gozo, a rebeldia e o sofrimento, três características basilares de sua

13

Em outro trabalho, já investigamos o cariz mais “social” de Leminski nos haikais pelo viés da dor e do testemunho (cf. ARAUJO, 2013).

produção. Em todas as obras de Paulo Leminski é possível ver poemas (mesmo que esparsos) de coloração existencial, o que chamamos de poesia existenciária. Mas é só em La vie en

close que essa onticidade poética atinge seu momento de apoteose no horizonte ontológico.

Uma poesia entre o inconformismo e o desajuste.

Referências

ARAUJO, Rodrigo Michell dos Santos. Haikai do mundo haikai de mim: o nada na poesia de Paulo Leminski. São Cristóvão: UFS, 2014, 119 f. Dissertação de mestrado. Programa de Pós- graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2014.

__________. Uma página gritante, uma poesia porosa: o teor testemunhal da escritura de Paulo Leminski. Anais do XIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de

Literatura Comparada (ABRALIC), Campina Grande, v. 1, nº 2, p. 1-10, 2013.

BEAULIEU, Alain. Abécédaire de Martin Heidegger. Bélgica: Les Éditions Sils Maria, 2008.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Trad. Marcos Santarrita. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

HEIDEGGER, Martin. “Que é metafísica?” In: ___________. Conferência e escritos

filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, p. 33-44, 1989 (Os Pensadores).

___________. Hölderlin y la esencia de la poesía. Trad. Juan David García Bacca. Barcelona: Anthropos, 1994.

___________. A caminho da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003.

___________. Introdução à filosofia. 2ª Ed. Trad. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

___________. Ensaios e Conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. 6ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

___________. Ser e tempo. 5ª Ed. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2011a.

___________. Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão. 2ª Ed. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011b.

LEMINSKI, Paulo. Matsuó Bashô. São Paulo: Brasiliense, 1983.

__________. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. Org. Régis Bonvicino. São Paulo: Ed. 34, 1999.

__________. “O boom da poesia fácil”. In: __________. Ensaios e anseios crípticos. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2011, p. 59-65.

LOPARIC, Zeljko. Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papirus, 1990.

MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MISHIMA, Yukio. Sol e aço. Trad. Paulo Leminski. 4ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. MONTEIRO, André. A sensibilidade poética dos anos 70: lições extemporâneas. In: FARIA, Alexandre (Org.). Poesia e vida: anos 70. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2007. p. 25-42.

NUNES, Benedito. No tempo do niilismo e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1993.

__________. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Org. Maria José Campos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

REBUZZI, Solange. Leminski, guerreiro da linguagem: uma leitura das cartas-poemas de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.

CULTURA DIGITAL E ENSINO