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TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO FEMININO EM NELSON

RODRIGUES

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Rosana Trevisol Seibt (IFAL)

A obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues compõe-se de dezessete peças, escritas entre os anos quarenta e setenta do século passado, época em que o Brasil vivia (e ainda vive) um machismo exacerbado, fundado nos valores da família patriarcal. E assim, admirado por alguns e execrado por outros devido a, por um lado, o caráter inovador de seu teatro e, por outro, o tema, considerado agressivo, posto que inspirado na sexualidade humana.

Embora Nelson Rodrigues seja também fruto dessa tradição machista, foi um dos primeiros autores brasileiros a expor, a abrir espaço para a imagem da mulher e o desejo feminino acima das convenções sociais falocêntricas. Esse dado de certo já seja o sinal de crise, de diluição de valores, de uma sociedade que se abre a novos saberes.

Toda nudez será castigada, décima quinta peça de Nelson Rodrigues, escrita em 1965,

estreou no mesmo ano, no Teatro Serrador do Rio de Janeiro, com direção de Ziembinski e desempenho de Cleyde Yáconis no papel da protagonista Geni, que várias atrizes tiveram receio de desempenhar (conforme Sábato Magaldi, em RODRIGUES, 1990, p.28). Esta peça quase que encerra a obra cênica de Nelson Rodrigues, pois o dramaturgo só voltaria a escrever nove anos mais tarde. Por isso, alguns críticos consideram-na a exacerbação das características do dramaturgo.

Com relação a esse fato, o título da peça também se apresenta bastante sugestivo, no sentido de tentar revelar uma verdade do seu autor que sofreu ataques e comentários negativos do público e da crítica, e também a censura do Estado. Seria uma espécie de título/síntese da nudez que toda sua obra revela e que será sempre castigada enquanto a sociedade continuar presa aos mesmos padrões moralistas em que apoia seu pensamento. ‘Toda nudez’ significa mais a nudez subjetiva do desejo humano do que a nudez concreta dos corpos, já que a peça não explora o nu como foco temático de seu enredo. As poucas cenas de nudez física de Geni,

por exemplo, servem apenas para configurar sua personalidade, uma mulher sem medo de viver sua sexualidade.

Na base dos conflitos explorados pela dramaturgia rodrigueana reside o tema da sexualidade explorado em diversos tipos de situações arrebatadoras que fizeram com que vários casais abandonassem a plateia no meio do espetáculo se sentindo moralmente ofendidos ao verem expostas suas mais íntimas e inconfessas verdades.

Entretanto, mesmo tendo sido acusado de agressivo por alguns na exposição teatral de conflitos ligados à vida sexual, Nelson Rodrigues apresenta personagens como vítimas do poder que têm os discursos de violentar as pessoas. Os personagens que traduzem em seus comportamentos algum tipo de exposição contrária à moral sexual instituída são, em algum ponto do enredo, levados à morte, ao suicídio, como forma de castigo.

Importante ressaltar que esse desnudamento das mais íntimas abjeções humanas que o enredo apresenta, e que fora consumado com alguma forma de castigo, provoca a plateia e consequentemente a leva à reflexão. Aí reside a essência do texto ficcional, ou seja, a representação que contribui para a transformação e evolução cultural da sociedade.

A obra do dramaturgo possui claras demonstrações de como se constitui a balança aprovação/reprovação da consciência crítica do homem brasileiro e, talvez, universal. Posto que toda obra artística, ficcional, representa mais ou menos estilisticamente a realidade cultural.

Nelson trabalhou desde muito cedo na página policial, nos jornais de seu pai. Preocupado com a solidão do indivíduo e a problemática de sua relação com o meio em que vive e compilando material entre os arquivos da reportagem policial e as ruas do Rio de Janeiro por onde gostava de andar, Nelson produziu uma obra teatral densa e repleta de terríveis realidades cotidianas de famílias de classe média. Em entrevista a Edla Van Steen (1982), o autor revela que "a reportagem policial vai transformar-se para sempre num dos elementos básicos de minha visão de vida". Nesse sentido, em seu teatro sedimenta-se o filão mais rico de nossa dramaturgia, ou seja, o ser humano representado em sua profunda psicologia.

Em A tecnologia do gênero, Teresa de Lauretis (1994, p.221-2) expõe uma interessante análise do cinema como uma tecnologia de gênero, já que a teoria do aparelho cinematográfico leva em conta “não apenas o modo pelo qual a representação de gênero é construída pela tecnologia específica, mas também como ela é subjetivamente absorvida por cada pessoa a que se dirige”. Nesse sentido, concede especial destaque ao “conceito de plateia”, ou seja, “as maneiras pelas quais cada pessoa é interpelada pelo filme e as maneiras

pelas quais sua identificação é solicitada e estruturada no filme específico estão íntima e intencionalmente relacionadas ao gênero do espectador.”

Gênero aqui entendido como uma forma de indicar “construções culturais”, conforme Joan Scott (1995, p.75-6), ou seja, “a criação social de ideias sobre os papéis sexuais adequados aos homens e às mulheres” e também como “um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas não determinado pelo sexo, nem determinando diretamente a sexualidade”.

A maioria das peças teatrais rodrigueanas foi levada ao cinema, mas também se crê possível comparar a linguagem cinematográfica, em alguns pontos, com a linguagem do teatro, no sentido de ambas levarem em conta o conceito de plateia, o olhar voyeurista do espectador, e, assim, também um meio artístico por onde circulam ideologias. As técnicas cinematográficas e os códigos cinemáticos são, com o teatro, bastante semelhantes. A linguagem do cinema e a do teatro possuem recursos em comum, como iluminação, vestimentas, diálogos, cenário, etc, construindo ambas imagens de gênero e a decodificação intencionalmente dirigida para a recepção da plateia.

Entretanto, o teatro, com relação à ideia de plateia, ganha especial destaque e maior ênfase por ser ao vivo. A presença viva do ator em cena torna a relação texto/espectador muito mais dinâmica e visceral, daí os incontáveis casos de pessoas se retirarem da plateia em meio ao espetáculo, em particular nas encenações de textos rodrigueanos, sentindo-se agredidas e moralmente ofendidas.

Nelson Rodrigues retrata o perfil da família brasileira de sua época, a degradação da instituição familiar. Sendo a família o microcosmo da sociedade, é justamente dentro desse espaço que o autor localiza suas tramas, pois ali está inserida a identidade cultural de toda a sociedade. Os procedimentos morais em relação à sexualidade são daí depreendidos, os conflitos familiares oriundos do choque entre a preservação dos interditos e as inevitáveis transgressões. E nesse cenário, vislumbra-se especial destaque à imagem da mulher, para a ascensão ou para o ocaso de toda a família e, por extensão, da sociedade. Vemos essa atribuição e submissão feminina na distribuição de papéis sociais de gênero já desde os gregos, segundo as pesquisas de Foucault (1984, p.131-2), onde consta que para eles as mulheres, enquanto esposas, eram de fato circunscritas por seu status jurídico e social e toda a sua atividade sexual deveria se situar no interior da relação conjugal e seu marido ser o parceiro exclusivo, pois “elas se encontram sob seu poder”. Ao passo que para o marido ter relações sexuais a não ser com sua esposa legítima não fazia parte, de modo algum, de suas obrigações, pois “se a mulher pertence ao marido, este só pertence a si mesmo.”

O teatro, nesse sentido, e como uma tecnologia de gênero, oferece uma visão de mundo e das relações humanas. O envolvimento do público, inserido na noção de realidade e sua visão de mundo, é que dará significação ao conteúdo representado. Assim, o espectador faz parte da trama, pelo que a obra desperta a partir de seu conteúdo capaz de encontrar sempre ressonância significativa.

Nelson Rodrigues, atento a todo tipo de informação no exercício do jornalismo, e sabendo, por isso, distinguir qual tipo de assunto promove maior impacto junto ao público, incorporou ao seu teatro vários tópicos que suscitam a curiosidade mórbida da plateia classe média brasileira, ou seja, trouxe a público assuntos restritos ao ambiente privado.

Embora a literatura de autoria feminina seja considerada o lugar potencialmente privilegiado para a experiência social feminina, conforme afirma Heloisa Buarque de Holanda (1994, p.11), quando se discute e se denuncia a arbitrariedade e a manipulação das representações da imagem feminina na tradição literária de autoria masculina, é possível perceber que no texto teatral de Nelson Rodrigues ocorre justamente o contrário daquilo que comumente se vê em textos de autoria masculina, quer seja, a valorização da mulher, do desejo feminino e a imagem da mulher projetada para uma plateia a rever seus valores. O teatro rodrigueano concede à mulher o poder de expor seus sentimentos, angústias e desejos, que se desdobra em vários níveis, no social, no público e privado, nas manifestações de gênero, de desejo, de sexualidade. Talvez por isso ele, o autor, tenha sido criticado pela sociedade conservadora da época, atribuindo-lhe alcunhas como “o tarado de suspensórios”, “o anjo pornográfico”, “flor de obsessão”, entre outros.

Além de ser um leitor voraz, Nelson recebia em sua casa o psicanalista Helio Pellegrino, o sociólogo Gilberto Freyre e o acadêmico Otto Lara Rezende em conversas que se estendiam até a madrugada. Dessas conversas gerou a inspiração para a composição de inúmeros personagens (conforme reportagem da Revista Veja, de 12/03/80). Também nos anos quarenta estavam sendo amplamente discutidas no Brasil a teoria psicanalítica e a pansexualidade de Freud, que Nelson chamava de “o tarado oficial”, como também as teorias sobre fluxo de consciência e duração real de Henri Bergson. O assunto do momento eram as ainda novas descobertas das psicociências que exploravam o universo interior do ser humano, suas frustrações, seus desejos, suas ambições, contidas ou desesperadas. Também fazem parte desse contexto as discussões sobre o voto feminino, os direitos trabalhistas para ambos os sexos, entre outras. A publicação revolucionária de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, por exemplo, é contemporânea à produção teatral de Nelson Rodrigues. E é inegável que todas essas discussões tenham influenciado em sua criação de temas e personagens.

Nelson Rodrigues, um artista de vanguarda, reservou espaço especial para as mulheres em sua arte. Seu teatro focaliza a mulher sob vários ângulos, desenhou inúmeras personalidades femininas. Como todos os seus personagens, a mulher classe média carioca foi retratada e inserida na sua lógica cotidiana. E, desse modo, a mulher esposa, a amante, a prostituta, a moça de família, a mãe, a filha, a tia, a sogra, a cunhada, enfim, várias formas de representar a mulher e sua posição na sociedade são exploradas pelo teatro de Nelson Rodrigues. Mas nunca a mulher isolada ou alheia aos acontecimentos, como um objeto decorativo do lar, pelo contrário, toda a mulher rodrigueana encontra-se ativamente inserida no contexto conflituoso, reagindo cada uma à sua maneira ante o choque entre a conduta moral e as práticas sexuais interditas, cuja posição e pensamento são cruciais para o desfecho da situação.

Essa participação feminina se dá na forma de um poder que ela tem de, não só apaziguar, mas fomentar conflitos, que mais fortalece seu perfil psicológico tão profundamente retratado pelo dramaturgo brasileiro dentro de cada trama.

O fato de seu irmão ter sido assassinado por uma mulher considerada simpatizante do movimento feminista, e, no dia do julgamento da acusada, o tribunal de júri ficar repleto de mulheres empunhando faixas e cartazes com alusão ao movimento e com dizeres do tipo "morte ao tarado", não isentou Nelson de trazer à cena dramática heroínas revolucionárias quanto à posição feminina na sociedade. Certo é que a morte do irmão marcou profundamente sua vida e marcou também sua obra, repleta que é de assassinatos e mortes violentas, mas não gerou nem uma forma de apagamento de ações que enfatizem a condição feminina.

Após as manifestações mais radicais e públicas do movimento feminista, iniciaram-se diversas polêmicas sobre o assunto que passou a fazer parte das rodas de intelectuais. Ainda hoje, vivemos numa sociedade masculina e a luta pela emancipação feminina continua em alta. E homens bem informados como Nelson Rodrigues já percebiam que o que as vozes femininas, ecoadas principalmente pelas feministas, traziam para discussão ou rediscussão objetivava melhoras de vida para toda a sociedade.

Ao longo de suas dezessete peças, Nelson Rodrigues manteve-se fiel à tônica cruel do seu texto, explorando em diferentes situações o tema do conflito entre a sexualidade e a moral repressora da sociedade. Este conflito abissal dramatizado no palco proporciona também ao espectador desenredar seus possíveis conflitos íntimos. Desse processo que começa no palco e se estende à intimidade do espectador, Antonin Artaud (1993, p.25) denominou “teatro da crueldade”, comparando os efeitos do teatro ao da peste, pois “através da peste, e

coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social é vazado; e, assim, como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente”.

A peça Toda nudez será castigada inicia com a notícia de uma morte. Herculano chega em casa de uma viagem e a empregada lhe dá um embrulho. É uma gravação com a voz da mulher, Geni, que àquela hora já se matou. Partindo do presente, toda a ação se resume em um grande flash-back, pois a partir dessa curta cena inicial apagam-se as luzes e acendem-se em outro canto do palco, para daí iniciar o desenrolar da trama, ou seja, como tudo começou e como e por que Geni se matou. Geni era uma prostituta, que foi apresentada a Herculano, viúvo casto, por seu irmão Patrício. Após o primeiro contato íntimo com Geni, que durou três dias de intensa lua-de-mel, Herculano e Geni se apaixonam.

A temática do homem em conflito com sua realidade é explorada na forma de uma denúncia dos valores morais que impedem a felicidade do indivíduo. Entretanto, nesta peça, contrariamente à maior parte de sua obra, não é a opinião pública que gera pressão sobre a vida privada do indivíduo, mas ele próprio, no caso a personagem Geni, sente o peso de uma pressão engendrada pelo sentimento de culpa que parte de dentro de si mesmo. Desse modo, a trama vem a servir como um exemplo do que Nietzsche (1988), em suas pesquisas genealógicas chamou de 'moral recalcante', ou seja, os conceitos morais estariam inscritos na profundidade do inconsciente, sobre o qual a opinião pública funciona mais como reforçadora do que prescritora dessa moralidade. Trata-se, então, de como certas convenções morais estão internalizadas individualmente por meio de um recalcamento que já pode dispensar a pressão exterior da sociedade para que o indivíduo considere-se culpado e se estabeleça seu castigo.

Pelo contrário, o próprio indivíduo, aceitando e internalizando regras sociais que nem mesmo ele próprio sabe como se tornaram verdades, promove sua própria culpa tratando, consequentemente, de se autocastigar. Este é o caso de Geni, a heroína desta peça, que consegue trocar o bordel pela casa de família. Entretanto, Geni não consegue livrar-se do estigma de prostituta que a acompanha e, sentindo-se culpada por não conseguir refrear seus impulsos sexuais, vê no suicídio a única forma de acabar com o mal que ela representa. Nesta peça, Nelson Rodrigues levou às últimas consequências o conflito gerado pelos preconceitos morais sobre o indivíduo, principalmente aqueles referentes à conduta feminina. Por isso talvez, a presença do final trágico, revelando que a luta pela modificação de certos valores sociais é bastante lenta e, embora apresente alguns progressos, pode levar séculos para que se verifique alguma alteração considerável.

O teatro da denúncia dos preconceitos sociais projetados principalmente sobre o universo feminino já garantia popularidade ao seu autor. Esta popularidade se dá tanto pelo

fato de comporem as mulheres o público majoritário que frequentava as casas de espetáculos teatrais, como também, e principalmente, pelo fato de serem as mulheres as principais vítimas dos preconceitos que regimentam as posturas comportamentais moralmente aceitas pela sociedade.

Este último fato encontra-se insistentemente retomado no teatro rodrigueano, podendo ser considerado como uma opinião pessoal do autor devido ao exacerbamento com que revela a fragilidade moral de suas heroínas. Aproveitando a popularidade desta temática por conta da curiosidade que ela promove e à sua inerente complexidade, uma vez que, ainda em nossos dias, ao debruçar-se sobre a problemática feminina corre-se o risco de cair na mesma teia dos moralismos sociais que se pretende retratar, Nelson Rodrigues desenvolve-a de maneira conflituosa e abissal, exacerbando este conflito às raias da tragédia.

Na história do teatro brasileiro, Nelson Rodrigues figura como um dos mais perseguidos. Segundo seu biógrafo Ruy Castro (1992), a esquerda, a direita, a censura, os críticos, os católicos e, muitas vezes, as plateias, todos em algum momento viram nele "o anjo do mal, um câncer a ser extirpado da sociedade brasileira".

Dentre os principais personagens rodrigueanos, cuja alma é constantemente atordoada pelo sentimento de culpa, figura Geni, de Toda Nudez..., que sofre a presença espectral de um câncer no seio profetizado por sua mãe. Não tem e nem chegará a ter tal moléstia, mas a profecia materna gera sua angústia e obsessão. Geni está marcada pela frustração desde que a mãe a amaldiçoou. A obsessão pelo câncer, que nunca chega a concretizar-se, remete ao fato de ela mesma considerar-se um mal, por ser prostituta, um câncer a ser extirpado da sociedade.

Geni, neste caso, seria ela própria um câncer social, numa linguagem metafórica de o autor purgar a crítica social por ele sofrida. A condição de prostituta estigmatiza-a como pária social e nem o casamento posterior com o milionário Herculano lhe cura as feridas da vida inteira. Herculano tem um filho e ambos defendem a castidade como forma de fidelidade à esposa e mãe falecida. Sua chegada na família conservadora desencadeia uma progressiva mudança de costumes, Herculano passa a ter vida sexual ativa, até Serginho, o filho, fugir com um homem, revelando-se homossexual. Geni, cuja vida miserável de prostituta da baixa periferia, tem seus sentimentos confundidos e o amor materno que deveria dedicar ao enteado transforma-se em instinto sexual. Ao frustrar mais este sentimento e vendo sua vida completamente desequilibrada, suicida-se como única forma de dar fim à sucessão de malogros. Este episódio lembra a máxima de Simone de Beauvoir (1967): “todos os problemas vivos encontram na morte uma solução silenciosa”.

A alusão ao câncer de Geni propõe vários significados. O fato de ser no seio, parte do corpo exclusivamente feminino; o câncer, enquanto moléstia biológica pode ser comparado ao que as pessoas chamam de ‘câncer social’, como metáfora de algo ruim e que não tem cura, cujo fim inexorável seria a morte. Um câncer no seio também representa para a mulher o flagelo de sua marca corporal feminina ao ser extirpado todo o seio em cirurgia. Os seios femininos podem ser símbolo tanto de sexo, erotismo e sedução quanto de maternidade, por isso o câncer no seio seria a própria nudez, o uso do seio apenas para o sexo e não para o amor. Geni é a mulher como representação. O câncer que ela supõe ter no seio pode ser comparado à subjetividade de sua relação semiótica com o mundo exterior. É a partir da sujeição à norma que cria a subjetividade, ou seja, o sujeito só existe na sujeição. O suposto câncer no seio de Geni, a prostituta que recebe uma espécie de concessão a fazer parte de uma família, pode ser entendido como a representação metafórica do corpo apresentado como superfície e cenário de uma inscrição cultural.

Apoiando-se nos estudos genealógicos de Foucault e Nietzsche, Judith Butler (2010, p.187) aponta que, para estes teóricos, “o corpo é a superfície inscrita dos acontecimentos” e “os valores culturais surgem como resultado de uma inscrição no corpo, o qual é compreendido como um meio, uma página em branco; entretanto, para que essa inscrição confira um sentido, o próprio meio tem de ser destruído”. Para Foucault, segundo Butler (p.186) “o corpo é apresentado como superfície e cenário de uma inscrição cultural”. Com isso, e entendendo o corpo como significação social, vê-se exposta a metáfora de Geni como representação social, a venalidade de sua sexualidade a ser extirpada da sociedade, como um