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4 A RELAÇÃO DO CORPO-GRÁFICO DO JORNAL COMO OS ROMANCES CALEIDOSCÓPICOS LATINO-AMERICANOS

4.1 Primeira Vertente: O Jogo Verbal do Labirinto

Temos de atuar sempre a partir de uma seleção, feita com critérios de modo que as obras escolhidas possam ser representativas das outras tantas que ficaram de fora do trabalho. No Brasil, destacamos para a primeira vertente, já querendo escapar para a segunda, o Serafim

Ponte Grande, de Oswald de Andrade, publicado em 1933, em pleno Modernismo. O livro

incorpora telegramas, bilhetes, pequenos poemas, anotações diversas, notícias de jornal retrabalhadas e tantas outras coisas, que de tão fragmentário o crítico Antonio Candido o classificou como “fragmento de um grande livro”, lamentando que Oswald não tivesse seguido a inteireza de seu livro anterior, Memórias sentimentais de João Miramar. Haroldo de Campos criticou a visão de Antonio Candido, afirmando que o Serafim era sim um grande livro, formado por fragmentos. Mais tarde, Antonio Candido reconsiderou sua valorização dos aspectos de composição do livro e refez sua crítica dos anos 40, dizendo:

Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicional da unidade de composição, o princípio estabelecido por Aristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor de formas ainda mais drásticas de

descontinuidade estilística. Aceito o reparo de Haroldo de Campos, bem aparelhado para ver estas coisas, e reconsidero meu juízo. A leitura de

Serafim não permite dizer que é inferior a Miramar ou, como me parecia, um

“fragmento de grande livro”. É um grande livro em toda a sua força, mais radical do que Miramar, levando ao máximo as qualidades de escrita e visão do real que fazem de Oswald um supremo renovador (CANDIDO, 1989, p. 201).

Esta polêmica é paradigmática de tantas outras, que nem sempre terminaram assim, de maneira bem resolvida. O livro fragmento, mosaico, de veia neobarroca, tende a incorporar outros elementos, do dentro e do fora, do antes e do depois. Elementos às vezes contraditórios, mas que se complementam e não se excluem. Isto tem sido feito desde as crônicas dos descobrimentos, textos da cultura que cobram a sua existência como documento de informação, e também como peças literárias. A constante paródia, ou colagem mesmo de trechos dessas crônicas em grandes obras da literatura, como Macunaíma, na qual Mário de Andrade admite haver copiado passagens inteiras da Carta de Caminha, cobra daqueles que negam a existência de literatura para o período, o direito de existir como tal. Serafim Ponte

Grande e Macunaíma são romances caleidoscópicos antes de qualquer tentativa de definição

de estilo. Faz parte da tipologia deles essa realidade corpo-gráfica.

É interessante notar como muitos desses romances poderiam ser exemplos de análises no capítulo dedicado ao romance-folhetim, ou neste dedicado ao caleidoscópio, ou ainda no primeiro, dedicada à releitura das crônicas dos descobrimentos. Isso ocorre justamente pelo caráter múltiplo dessas obras, devido à incorporação dos vários discursos. E no aproveitamento de vários discursos, que dão voz a várias vozes, inclusive às cartas dos primeiros cronistas, temos no colombiano Gabriel García Márquez, como já vimos, outro exemplo emblemático. Dentro da primeira vertente devemos destacar o romance El Otoño del Patriarca, escrito em 1973, um romance sem apelo ao ícone, mas totalmente caleidoscópico.

Nele, García Márquez recria uma Macondo que, metaforizada como um pequeno país latino- americano, cheira a goiaba, a almíscar, a úmido, a Caribe e a Selva. A trama situada num tempo não muito distante do presente permite que o leitor contemporâneo da obra reconheça fatos históricos ligados à sua existência recriados na forma de ficção. O tempo oscilante entre o presente do leitor, o tempo da obra, recua até o tempo do descobrimento. Esse deslocamento temporal não é linear para trás ou para frente, eles se cruzam a qualquer momento da narrativa, sem aviso prévio do narrador. Isso faz com que o leitor se mova dentro do labirinto sem relógio para controlar o tempo. Já nos referimos à cena em que o Patriarca abre a janela e vê as três caravelas de Colombo ancoradas na Bahia do mar do Caribe de seu país. A conjunção de vários tempos na obra de García Márquez constitui uma das características do

estilo narrativo que ficou conhecido como realismo mágico. O que importa dizer é que esse tipo de escritura que mescla a realidade com a ficção, na qual se narram cenas que fundem o urbano com o rural, o moderno com o arcaico, constitui um tipo de narrativa latino-americana que os críticos tentam desesperadamente nomear.

Em El Otoño del Patriarca já vimos como comparecem duas das instâncias da Carta

de Las Casas, ou de Colombo: a ignorância e a ingenuidade. O próprio patriarca é um ser ingênuo e ignorante que não sabia ler até bem entrada idade. Quando começa a aprender a ler e sai soletrando as sílabas do alfabeto em voz alta pela residência presidencial, é como se estive lendo a lição de João Miramar: a, e, i, o, u, que Oswald chamou de “a perda da inocência”. As palavras e as frases retiradas da Carta de Colombo: “y el jueves menos pensado le poníamos a uno las condecoraciones prendidas con alfileres en la última casa” (MÁRQUEZ, 1991, p. 34), constroem discursos fragmentários dentro da narrativa. São fragmentos que não deixam de remeter como cifras a algo que está fora do texto, mas que ganham significados na relação com o todo. A insistência em relatar fatos e datas passadas, misturando-as com ocorrências do tempo presente faz com que nos sintamos diante de um jornal no qual o editor resolveu mesclar notícias atuais com notícias velhas, e outras mais velhas ainda. Algumas delas de forma cifrada, ou com data alterada. O leitor tem de ir decifrando tudo para entrar no texto artístico. Entrar nesse labirinto verbal exige certa habilidade de leitura verbal. El Otoño del Patriarca é um livro de difícil leitura, mas uma vez dentro do labirinto a leitura é muito prazerosa e permite que nos deparemos com a instância da alegria.

Ainda dentro dessa vertente, e com características bastante parecidas ao livro de García Márquez, destacamos o romance Yo el Supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. O

Supremo é um ditador, presidente perpétuo do Paraguai, que tem inclusive o poder de inventar

palavras, criando neologismos para todas as suas necessidades linguísticas, e também de poder, evidentemente. Aliás, Roa Bastos e García Márquez haviam combinado, num encontro que tiveram na Europa com a presença de Carlos Fuentes, escrever, cada um deles, um romance sobre os ditadores latino-americanos. Daí uma explicação para o fato de Yo el

Supremo ser um romance irmão gêmeo de El Otoño del Patriarca, guardando as diferenças de

cada um, obviamente.

Yo el Supremo abre com um breve texto, o pasquim que apareceu pregado na porta

da catedral, anunciando o que se deve fazer com o cadáver do Ditador, e com todos os seus servidores civis e militares, no dia de sua morte. Todos devem ser fuzilados. Nele anunciava- se a morte do Ditador, com uma letra parecida com a do próprio mandatário. Um plágio, um

crime que deverá ser investigado, pois o Perpétuo Presidente não deve morrer nunca. Começa-se uma investigação para encontrar o culpado. Todos os jornalistas são presos e terão a caligrafia examinada e comparada com a do pasquim. A mídia impressa é a materialidade do romance, uma vez que o próprio Supremo passa a estudar e comentar as grafias e as caligrafias, a distender linhas do pasquim pelas páginas do livro, e a dissertar sobre a imprensa e a liberdade dela dentro do país, e no mundo de modo geral.

Não é um livro fácil de ler, o labirinto verbal propõe uma vertigem constante. É um compêndio de várias coisas. O conjunto textual está composto de 43 unidades narrativas, marcadas por separação de espaços e mudanças de páginas. Também contam com várias notas de rodapé, que às vezes começam no meio da página e se estendem para as páginas seguintes. Como se fossem um romance-ensaio-científico. Em algumas passagens o Ditador está escrevendo em seus cadernos privados e, em outras, está escrevendo uma circular perpétua. O leitor sente a necessidade voltar algumas páginas para ver onde se encontra de vez em quando. Os fragmentos dessas duas grandes divisões vão se intercalando com outras tantas anotações do Ditador durante os capítulos do livro, e assim se vai levando a história adiante. As inúmeras anotações e recriações de fatos históricos devem ser entendidas como uma longa fala oral que o Ditador está tendo com o seu amanuense, quem atende e transmite todas as suas ordens. É como se estivéssemos ouvindo a gravação de um gravador, que alguém vai transcrevendo e tratando de organizar de algum modo. Não por acaso as duas últimas unidades do livro são APÊNDICE, onde se vai tratar dos restos mortais do Supremo, e NOTA FINAL DO COMPILADOR, onde o fechamento sugere que o livro é uma compilação, ou uma obra de editor e não de autor.

A dinâmica inicial da narrativa segue mais ou menos assim: “Dê-me o pasquim para estudar”, diz o Ditador. E o amanuense obedece. “Dê-me a circular que estava escrevendo”, e lhe é passada. Quando o amanuense se retira, o Ditador passa a escrever no caderno privado. No geral temos o seguinte sistema de comunicação. Há um emissor: O Ditador. Há um destinatário: o povo paraguaio. Menos no pasquim. Nele o destinatário é o mesmo, mas o emissor é uma incógnita. Deverá o Ditador, no desenrolar do enredo assumir a autoria do Pasquim, escrito em primeira pessoa e com letra parecida com a dele, para justificar tal ordem, já que ele é o Supremo da pátria para todo o sempre? O único que poderia dar uma ordem de tal importância. Instaura-se assim a instância da ingenuidade, acompanhada da alegria e do bom humor. Elementos retirados das Cartas dos cronistas do descobrimento como acontece em Serafim Ponte Grande (Caminha), e em El Otoño del Patriarca (Las Casas).

Outro aspecto que faz com que Yo el Supremo seja um livro ainda mais difícil de ser lido que El Otoño del Patriarca, é o uso de neologismos constantes. Roa Bastos segue a linha de sufixação de Guimarães Rosa, de quem ele não esconde que é admirador, colocando trechos da obra do autor brasileiro dentro do seu romance. Um dos momentos mais claros de intertextualidade é a passagem de “A terceira margem do rio”, que aparece reescrita dentro de um contexto da cosmogonia guarani. Roa Bastos também fundiu a língua espanhola com a língua guarani. Não criou uma terceira língua, o livro é lido em espanhol, mas com o esforço para entender as metáforas e as imagens proporcionadas pela aglutinação da língua guarani, sobreposta ao espanhol, e até ao latim ou ao inglês. Um exemplo seria: “Se les acabará el biguá salutis”36 (BASTOS, 2005, p. 108). Outro seria a frase: “No corras trás los pelos- hembras unicamente, según tu costumbre”37 (BASTOS, 2005, p. 108).

Em Yo el Supremo está presente toda a vida do jornal. A reprodução de tipos gráficos das manchetes, o conteúdo jornalístico, o estilo narrativo do jornal e sua fronteira ou evolução para o literário, o debate sobre a liberdade de imprensa que os jornais costumam fazer, e inclusive a representação do trabalho de editor. Enquanto livro, pensamos, é um romance caleidoscópico cuja materialidade não é outra senão o próprio jornal impresso. Enquanto suporte nos torna mais complexa a noção de mídia, é um livro que amplia os ambientes midiáticos.

Não poderia faltar um livro de Julio Cortázar nessa seleção. Conhecemos o experimentalismo de Cortázar desde sempre, e em relação à revolução que causou nos planos da narrativa desde Rayuela, publicada em 1963, traduzida no Brasil como O jogo da

amarelinha, o livro se tornou praticamente de leitura obrigatória nos cursos de Letras. A

escritura artística estruturada em mosaico tornou-se um tratado da narrativa. O romance oferece campo para muitas abordagens, seguindo várias perspectivas como a da teoria da comunicação, da teoria literária ou da filosofia. A estrutura narrativa de Rayuela ajuda o

conteúdo a se projetar para fora do livro suscitando questões ontológicas que não cabe aqui adentrar e muito menos aprofundar.38 Queremos abordar alguns aspectos da estrutura narrativa e do processo de leitura ou de recepção.

36 Biguá salutis: expressão que significa fortuna, posição invejável. Está presente também a voz

guarani “mbiguá”, pássaro pescador, ave aquática de cor negra.

37 Pelos-hembras: equivaleria ao português “pelos-fêmeas”, é uma tradução do guarani “kurá ragué”.

Não existe a expressão em espanhol, mas o estranhamento não impede o seu entendimento no novo contexto.

38 Néstor García Canclini (1968), na opinião de Davi Arrigucci Jr., teria feito a melhor interpretação

do todo da obra de Cortázar, analisando-a por um de seus ângulos: o das articulações com a problemática existencial.

Em Rayuela encontramos dificuldade para delimitar a temática – é preciso dizer sempre que o livro é sobre isso e/ou aquilo. Com um esforço de concentração é possível dizer que Cortázar narra a trajetória metafísica do argentino Horacio de Oliveira, considerado por muitos como um duplo do autor. No índice do romance podemos ver que ele está dividido em quatro partes: 1) Tablero de dirección. 2) Del lado de Allá. 3) Del lado de acá. 4) De otros lados. O jogo começa logo na introdução, ou melhor, no “tablero de dirección”, no qual são

propostas ao leitor duas possibilidades de leitura: uma linear, tradicional, e outra que atravessa os capítulos através de uma sequência sugerida, em movimento semelhante ao jogo da amarelinha. Diz o narrador:

A su manera este libro es muchos, pero sobre todo es dos libros. El lector queda invitado a elegir una de las dos posibilidades siguientes: El primer libro se deja leer en la forma corriente, y termina en el capítulo 56, al pie del cual hay tres vistosas estrellitas que equivalen a la palabra Fin. El segundo

libro se deja leer empezando por el capítulo 73 y siguiendo luego en el orden que se indica al pie de cada capítulo (CORTÁZAR, 1987, p. 7).

O capítulo 73 começa com um Sí (Sim), no qual o leitor precisa demonstrar que está

de acordo com a leitura em saltos. Pereira e Faria fazem a seguinte leitura dessa estratégia de leitura, que ao nosso parecer também implica a escritura conjunta do romance:

O leitor, aceitando o “sim” que inicia o capítulo, concorda não apenas com o desafio de empreender o arranjo dos fragmentos propostos pelo autor; na verdade, ele dá o passo que, tropeçando em uma vírgula, converte-se na queda de um mundo em que não se busca um desfecho, mas uma existência ao mesmo tempo fraturada e plena – um mundo que é o salto para fora dos limites da “Gran Costumbre”. Como viver neste mundo?, eis a questão proposta pelo narrador, que afirma: “Nuestra verdad posible tiene que ser invención, es decir escritura, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas las turas de este mundo. Los valores, turas, la santidad, una tura, la soledad, una tura, el amor, pura tura, la belleza, tura de turas” (CORTÁZAR apud PEREIRA; FARIA, 2008, p. 3).

Temos uma narrativa que caminha dando voltas, fazendo curvas, na qual o leitor volta sempre ao início, para recomeçar outra vez a busca de um possível fim. Arrigucci Jr. chamou “presente de grego” a esse jogo narrativo de Cortázar:

Esta espécie de presente de grego, que nos remete sempre a uma outra caixa para nos deixar, no final, com o nada do início, esta progressão que não avança, circunvoluções no labirinto, acaba por fazer reverter a busca sobre si mesma, numa auto-indagação da possibilidade de prosseguir. Rumando o movimento indagador para si mesma, ela já não é uma narrativa apenas de herói problemático, mas uma narrativa problemática. Não é somente o herói que não consegue alcançar os valores autênticos ao fim da busca; ela própria, enquanto linguagem da busca, titubeia quanto ao modo de indagar esses

valores adequadamente, ou pelo menos, apresenta como crítica essa investigação. Incorpora, por isso, a hesitação ambígua à sua técnica de construção: defrontando-se consigo mesma, encaracola-se, volta-se contra si própria. A linguagem criadora é minada pela metalinguagem. O projeto para construir transforma-se, paradoxalmente, num projeto para destruir. A poética da busca faz uma poética da destruição (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 22).

No trecho citado acima, Arrigucci Jr. não está se referindo somente a Rayuela, mas a toda a narrativa de Cortázar. A metalinguagem destrói uma das possibilidades narrativa, mas cria outras tantas possibilidades e planos, cria duplos, e faz com que o texto se reverbere para

os outros lados:

É como se a narrativa se deparasse, então, com um sósia, com um duplo a ela ligado por uma relação destrutiva. Um dos procedimentos centrais utilizados na demolição é a paródia: mecanizam-se certos recursos estilísticos, enrijecendo-os e produzindo o efeito cômico. Desnudam-se, por outro lado, procedimentos técnicos por alusão direta no próprio texto ficcional, provocando o efeito de estranhamento que quebra a ilusão realista e desmascara o laboratório literário, convidando o leitor a participar do jogo da ficção, a passar de mero consumidor passivo a consumidor ativo do texto. Emprega-se o efeito de dissonância que reduz cenas de alta tensão dramática a uma farsa. Fragmenta-se a sintaxe da frase, e, sobretudo, a do texto inteiro, exigindo do leitor uma leitura-montagem dos segmentos justapostos, que ele deve conciliar dentro do leque ambíguo das múltiplas possibilidades combinatórias (ARRIGUCCI JR., 1973 p. 22-23).

A colagem de outros textos, a instância da ironia, a atitude paródica são elementos compartilhados nos romances de Oswald de Andrade, García Márquez, Cortázar, Roa Bastos e Cabrera Infante aqui evocados. O que diz Arrigucci Jr. da fragmentação em Cortázar serve praticamente para a obra de todos esses autores:

Fragmenta-se também a palavra, freqüentemente se remontando os destroços em neologismos. Chega-se à fragmentação do próprio livro: o objeto concreto passa a fazer parte do jogo expressivo com uma série de recursos pansemióticos, como sinais tipográficos, fotos, ilustrações, etc. A colagem de textos alheios é, da mesma forma, usual; desde recortes de jornal até trechos de livros científicos, uma grande variedade de textos é anexada à obra, combinando-se aos textos básicos, como num caleidoscópio, que, graça à montagem, projeta enorme halo significativo, além do corte irônico que em geral acompanha os fragmentos. Na verdade, a ironia dá o tom constante do narrador, que, em certos momentos, se desdobra num narrador sósia, interferindo no processo narrativo, ao formular, aos retalhos, uma poética da destruição, o projeto de uma contra-narrativa, paródica irônica da narrativa que se está construindo e na qual se interpõe lúdica e zombeteiramente. É assim que surge Morelli em Rayuela, esse autor sósia, misto de Mallarmé,

Joyce e Macedonio Fernández, um velho mestre para o público restrito, que medita a impossibilidade da obra diante do absoluto a que aspira (ARRIGUCCI JR., 1973, p. 23).

Vemos, assim, que o duplo de Cortázar em Rayuela não é somente Horacio Oliveira, mas também Morelli, narrador joyciano que se converte em sósia de Cortázar. Em relação aos elementos pansemióticos a que Arrigucci Jr. se refere precisamos observar que a colagem de fotos não ocorre em Rayuela, nem em El Otoño del Patriarca, nem em Yo el Supremo, como já vimos. Essa presença icônica, no caso de Cortázar, se dá no Libro de Manuel e principalmente em Último round, entre outros.

Figura 15 – “Tablero” de direção de Rayuela, início do romance. Página 7 da da edição de 1987 da Alianza Editorial.

Figura 16 – Complementação do “Tablero” de direção de Rayuela. Página 8. Editorial Alianza, Madrid, 1987.

O que Rayuela propõe é uma conexão com as séries culturais que tradicionalmente estariam fora do livro. Entendemos séries culturais no sentido que Yuri Tynianov (1968) usou para definir os elementos que estão fora do livro, mas participam dele como as suas “séries vizinhas”, conceito ampliado na América Latina por Amálio Pinheiro:

Uma transformação lenta e importante nas tendências do conhecimento artístico é aquela que desloca as leituras das formas fechadas, feitas para a