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Segunda Vertente: O Verbal e o Icônico nas Dimensões do Labirinto

4 A RELAÇÃO DO CORPO-GRÁFICO DO JORNAL COMO OS ROMANCES CALEIDOSCÓPICOS LATINO-AMERICANOS

4.2 Segunda Vertente: O Verbal e o Icônico nas Dimensões do Labirinto

Passamos agora a considerar a segunda vertente. Em 1969 Cortázar publica um livro jornal, Último round. Ali estão pichações de muro, poemas, fotografias, palavras de ordem

escritas nos muros e banheiros públicos em Maio de 68 na França, e outras séries de coisas com desenhos e ensaios. Se bem que Último round não é um romance, digamos que ele traz o jornal para o livro. Deixa de ser apenas livro para ser outra coisa como diz Pinheiro (2006), “algo entre livro e jornal”. Ou como diz Arrigucci Jr. (1973) como “objeto concreto passa a fazer parte do jogo expressivo com uma série de recursos pansemióticos”. Último round amplia os ambientes midiáticos. Discute não só a questão dos gêneros dentro dos livros; discute o estatuto do próprio livro. Editado em dois andares: andar de cima e andar de baixo, o livro propõem uma relação tátil diferenciada com o leitor. Ao segurá-lo nas mãos e abri-lo de pé, na forma tradicional, o leitor precisa deitá-lo para ler as letras que estão escritas no sentido horizontal das páginas e não no vertical. È já uma proposta para desautomatizar o leitor. Pode- se folhear a parte de cima ou a parte de baixo e intercalar páginas de um andar com páginas do outro. Às vezes coincidem textos de uma com imagens de outras e logra-se um sentido. Outras vezes não se vê coerência nenhuma nesse jogo. O livro tende sempre a desmoronar nas mãos do leitor. Talvez por isso a partir da segunda edição, a cargo da editora Siglo Veinte uno, o livro passou a ser editado em dois volumes. Andar de baixo um volume e andar de cima outro volume. A edição em dois volumes perdeu muito da proposta de jogo. Arrugucci Jr. (1973) mostra como o jazz é uma constante lúdica na obra de Cortázar, e aponta como o jogo é seu outro leimotiv.

Figura 18 – Foto da primeira edição de Último round. Volume único com andar de cima e andar de baixo.39

Figura 19 – Foto de Último round. Ao centro volume único, acrescido de espiral. Nos extremos, a edição posterior com andar de baixo e andar de cima em volumes separados.

Último round serviu de mediação para aquele que seria o livro-imprensa, por

excelência de Cortázar, Libro de Manuel, publicado em 1973, traduzido no Brasil como O

Livro de Manuel. Nele, outra vez um grupo de jovens argentinos acompanhados de outros sul-

americanos, como acontece em Rayuela, se encontra em Paris, cenário do romance. Eles têm a tarefa de educar um bebê, enquanto vão discutindo sobre política e traduzindo noticiários de jornais. As manchetes de jornal vão sendo coladas nas páginas e a transcrição da tradução oral das notícias são diagramadas no espaço lateral, o qual deve ser dividido com as outras falas dos personagens.

A ligação da obra com o engajamento político foi muito apontada em vários estudos. Andrés Fava é um dos personagens do livro, e faz parte de um grupo de latino-americanos exilados na Europa, com forte atuação política. O grupo de jovens se autodenomina “Joda”e organiza o sequestro de um diplomata a fim de barganhar a liberação de presos políticos e atingir os governos latino-americanos. Cortázar teria escrito a obra como uma defesa do socialismo latino-americano.40 O próprio Cortázar (2002)41 fala que haveria escrito a obra como resposta política aos intelectuais de esquerda que o acusavam de alienação em relação à America Latina, e devido ao espírito revolucionário que haveria adquirido em contato com o povo cubano. O espírito revolucionário de Cortázar não mantém compromisso com nenhuma revolução que chega ao poder e se revela autoritária. O seu espírito é libertário no mais fiel sentido da palavra, e pregava uma revolução constante, assim como um surrealismo constante, integrado à vida das pessoas, e não um surrealismo determinado por movimentos fabricados. Logo, a grande maioria dos críticos marxistas se desencantaria com ele.42

Passado o contexto de ditaduras latino-americanas e do relaxamento das tensões entre direita e esquerda, o livro continua oferecendo outras leituras. Além da possível leitura de objeto situado no entre lugar “livro-jornal”, vemos, através da fala de Andrés, que os membros da “Joda” não se entendiam. Um grupo de militantes que não se entendem parece mais uma paródia de grupos militantes. Pereira e Faria chegam a questionar sobre a perenidade do livro, dando argumentos do próprio Cortázar:

Onde é então que reside a perenidade do Libro de Manuel, uma vez que a

atualidade do livro, segundo afirma seu autor (...) deveria ser autônoma, mas não o foi? De fato, é a malha textual em si, passível de receber novas apreciações críticas. Como Cortázar afirmou a Ernesto González Bermejo, as leituras do Libro de Manuel que lhe interessavam eram apenas as que

40 David Viñas, crítico de esquerda, foi um dos que viu nessa obra uma defesa malograda do

socialismo latino-americano. Não faltam críticas negativas ao fato de Cortázar haver se mudado para Paris, cidade da enunciação de suas futuras obras, e não mais Buenos Aires, como nas do princípio da carreira (VIÑAS, 1972).

41 Ver a entrevista de Cortázar a Ernesto González Bermejo (2002).

42 Ángel Rama, crítico de esquerda, viu na publicação do Libro de Manuel uma atitude mais voltada

entendiam as intenções básicas do livro, aquelas que compreendiam que “não se trata de um livro revolucionário às secas”, mas que coloca em jogo “todo o trabalho interno de reflexão e de crítica das condutas revolucionárias” (BERMEJO, 2002, p. 102), já que advoga em favor do humor e do erotismo como vias necessárias para que o socialismo “latino- americano” consiga sua vitória definitiva. Deparamo-nos, mais uma vez, assim como em Rayuela, com a perturbadora questão dos métodos com que buscamos atingir uma existência mais humanizada (PEREIRA; FARIA, 2008, p. 7).

Não faltaram críticas que vissem no Libro de Manuel um livro menor de Cortázar, uma defesa malograda do socialismo ou um livro voltado em atenção ao apelo comercial, como vimos, e até a recriminação de que seria uma massagem no mass media. Para essa visão crítica faltou incorporar a possibilidade da colagem como uma mediação de um veículo por outro, dos usos e das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008), que modificam os próprios meios. Ver a transmigração do corpo-gráfico do jornal para o livro, onde um não exclui o outro, criando um dialogismo.43 Enfim, faltou considerar as possibilidades de leituras que se abriam pelas chaves da paródia, do humor e do erotismo, que liga a obra com a tradição cultural latino-americana. Tradição esta combatida pela crítica mais sisuda, principalmente da esquerda latino-americana, que absorveu os conceitos dos países centrais sobre “literatura” e “subliteratura”, “alta” e “baixa” cultura, dentro de um processo de escalada alpinista no qual o povo deveria sair da “subliteratura” e atingir a “alta literatura”, a “alta cultura”. Felizmente, o caleidoscópio formado por fragmentos de narrativas verbais e narrativas icônicas pôde ser lido e entendido pelos olhos de outros leitores mais aparelhados e aptos à sua leitura.

Na incorporação de elementos da mídia, um dos livros mais radicais é sem duvida

Tres tristes tigres, do cubano Guillermo Cabrera Infante. Desde que foi lançado, em 1967,

vem causando espanto, no sentido positivo e negativo também. Foi proibido em Cuba, lançado com cortes. Só mais tarde, foi lançado na Espanha, sem cortes. Manuseamos a edição venezuelana, feita a partir da edição espanhola, com os acréscimos e correções que o autor foi fazendo ao longo dos anos. É um livro que sempre foi refeito ou recriado. Ele fazia parte de outro romance, Vista do Amanhecer no Trópico, vencedor do prêmio Biblioteca Breve, da Espanha, em 1964. Mesmo com o prêmio, o escritor decidiu dividir a obra em duas. Transformou o título original em uma visão ficcional da história de Cuba, da chegada de Colombo ao primeiro período pós-Revolução de 1959. Em Tres Tristes Tigres ele aproveitou e acentuou a parte que tratava da boêmia em Havana no final dos anos 1950.

43 Entendemos dialogismo no sentido que Bakhtin define como o processo de interação entre textos

que ocorre na polifonia; tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos.

Figura 20 – Página 107 do Libro de Manuel.

Na obra o autor trabalha a linguagem, com as características linguísticas acentuadas de cada personagem, tratando de recriar metaforicamente as particularidades que a língua espanhola ganhou na ilha. Há uma forte convergência do verbal com o icônico, seja com letras formando figuras, ultrapassando a mensagem verbal, seja com figuras dadas por traços não verbais, como o gestual, por exemplo.

Os personagens principais são três amigos – Códac, Silvestre e Arsenio –, boêmios que passam as noites entrando e saindo dos cabarés, e se embriagando. Um quarto mosqueteiro é o personagem Bustrofédon, que troca a ordem das sílabas, faz trocadilhos o tempo todo.

Cabrera Infante usou no romance, além do trava-língua do título, que vem das brincadeiras de Bustrófedon, versos, diálogos em forma de peça teatral, desenhos geométricos, lista de nomes diagramados em duas colunas, anúncios publicitários, e a introdução, ou prólogo feito por um mestre cerimônias, trazendo o music hall para dentro do livro. O leitor começa a ler o livro e de repente se depara com uma página toda negra, como um fundo de tela de cinema querendo indicar a passagem de cena. No capítulo Algumas

revelações, há várias páginas em branco, como fazem as capas de jornal quando querem

protestar ou calar por algum motivo. No final desse capítulo apresenta uma página com letras invertidas. O leitor precisará de um espelho para lê-la. Além da presença da música popular, do rádio, da vitrola, do music hall, do cinema, outra relação com a mídia, ou a mídia como matéria da ficção literária são a crônicas de estilo jornalístico que ele escreve sobre a morte de Trotski. Textos apócrifos, cuja autoria é atribuída a vários escritores cubanos, imitando o estilo de cada um desses autores. Um dos mais engenhosos é o texto barroco, de enumeração excessiva, atribuído ao Alejo Carpentier. O leitor se pergunta, teria José Martí, Virgilio Piñera, Nicolás Guillén, Alejo Carpentier, escritores assíduos da imprensa, escrito e publicado tais textos sobre a morte de Trotski nos jornais?

Em Tres Tristes Tigres o movimento de ligação da obra literária com as “séries vizinhas” é constante. De repente, nos damos conta de que não só Havana, mas Cuba inteira habita dentro de um livro. Mosaico, labirinto, caleidoscópio são nomes que ligam esses romances com o hipertexto das páginas digitais. Vejamos essa relação no próximo e último capítulo.

5 O INTERTEXTO DA COMPOSIÇÃO EM MOSAICO DAS PÁGINAS