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ASSOCIATIVISMO, CAPITAL SOCIAL E MOBILIDADE

2. A OPÇÃO PELA INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA

2.1. Histórias de vida como método de recolha de dados

Para compreender as lógicas, os mecanismos e os processos que conduziram às dinâmicas da participação associativa de descendentes de imigrantes, terá que se centrar a análise nas suas trajetórias, numa perspetiva diacrónica desde o momento do seu envolvimento até ao momento atual. Daqui resultou a opção pela recolha his- tórias de vida, na medida em que se baseiam no reconhecimento do valor sociológico do saber individual (Digneffe 1997: 210) e constituem, assim, um método privilegiado para aceder às experiências dos sujeitos e à forma como as interpretam, explicam e enquadram na vivência do quotidiano. A obra “The polish peasant in Europe and Ame- rica” (Thomas, Znaniecki 1989), tornou-se, aliás, um marco na investigação social porque a reconstrução da história de vida de um imigrante no início do século XX permitiu dar a “ver” e a “compreender” movimentos históricos que ultrapassam a singularidade da trajetória de um indivíduo (idem: 10).

Considerou-se que a recolha de histórias de vida seria o método mais adequado para a pesquisa, pois permite “observar” a ação e situá-la no contexto social onde se ma- nifesta (Bertaux 2005: 8, 13), ou seja, permite fazer a ponte entre as dinâmicas da ação individual e as dinâmicas estruturais que as condicionam, “sair da oposição entre indivíduo e sociedade” (Digneffe 1997: 206) e, assim, articular os nível micro, meso e macro das interações sociais pertinentes para a análise em curso. Estes as- petos suscitam uma exploração de dados interessante pois conduzem à observação

19. No Capítulo II, ponto 3 será analisado com mais detalhe o papel do(a) investigador(a) na pesquisa qualitativa.

das interações sociais que deram origem a “habitus” ou “disposições”, tendo em vis- ta a questão central de compreender como acontece, ou como se constrói, ou ainda como se aprende, a participação. A história de vida permite:

“captar o que escapa às estatísticas, às regularidades objectivas dominantes (…). Torna acessível o particular, o marginal, as rupturas, os interstícios e os equívocos, que são elementos fundamentais da «realidade social» e, sobre- tudo, explicam por que razão não existe apenas reprodução.” (Digneffe 1997: 209-210)

As características das histórias de vida exigem prestar atenção às narrativas dos protagonistas enquanto vozes (re)construídas:

“their experiences, and their voices must be heard in their own words (…). It’s never adequate to say their voices must be heard as voices, because none of their voices are just innocent voices, their voices are mediated through the dialogue they have with the questioner, through their own sense of what it means to represent themselves, through their own ideologies, so they are also framed voices, (…), and produced voices” (Homi Bhabha cit. in Benmayor, Skotnes 1994: 199).

A reflexão de Homi Bhabha leva-nos a destacar dois aspetos que mereceram es- pecial atenção no decurso do trabalho de campo e aquando da análise do material recolhido: o relato das trajetórias associativas está contextualizado e é mediado pela relação entre entrevistados/as e investigador/a (aspeto que merece reflexão aprofun- dada mais adiante); um segundo aspeto é que a informação transmitida pelos indiví- duos é feita sob a forma de narrativas construídas pelos próprios, estando sujeita às imperfeições implícitas nas operações da memória e aos processos de construção e/ ou representação de uma imagem pessoal e de um percurso de vida:

“As pessoas sabem muito mais acerca dele [do mundo de experiências] do que aquilo que são capazes de exprimir” (Erikson cit. in Lessard-Hébert et al. 1994: 54);

“o passado é maleável e flexível, modificando-se constantemente à medida que nossa memória reinterpreta e re-explica o que aconteceu” (Berger 1980: 68); “o narrador, ao fim e ao cabo, nem sempre sabe qual é a “sua” verdade; igno- ra, ele próprio, em que medida pode ser verdadeiramente sincero” (Poirier et al. 1999: 36);

“a representação que um sujeito faz de si próprio pode ser completamente falsa e perfeitamente sincera” (Zazzo 1966: 30).

Qualquer descrição da realidade é, na verdade, mais uma representação do que uma descrição pura dessa mesma realidade, porque está enquadrada pela perspetiva do sujeito (Silverman 2004: 283). É pelo conjunto destas razões que Bertaux prefere a ex- pressão “relato de vida” ao de “história de vida”, pois permite fazer a distinção entre a “história real” vivida pelo indivíduo e o “relato” que esse indivíduo pode fazer da sua história (Bertaux 2005: 11) e porque estes relatos são “narrativas” elaboradas pelos seus protagonistas (idem: 36)20.

Em síntese poderá dizer-se que as histórias de vida consistem, portanto, num traba- lho de anamnese, de recuperação da memória das vivências, em que os protagonis- tas se esforçam por dar uma ordem às ínfimas e múltiplas vivências do quotidiano e desocultar as opções (mais ou menos intencionais), os dilemas e constrangimentos, os significados (mais ou menos conscientes) que deram forma às suas trajetórias associativas:

“o narrador tem em si todas as respostas (mesmo se não o sabe) e o narra- tário as perguntas. O problema consiste, pois, em extrair o conteúdo do seu continente, como se extrai um mineral da sua jazida – a diferença residindo, aqui, em que a ‘mina’ é uma memória” (Poirier et al. 1999: 26).

Um dos maiores desafios do trabalho de campo realizado foi, com efeito, o de procu- rar aceder a essa “mina” de vivências imateriais e invisíveis que fazem parte do quo- tidiano de experiências pessoais e significados não totalmente conscientes para os seus protagonistas, podendo entender-se esta pesquisa empírica como um trabalho de escuta atenta e de desocultação21. A estratégia seguida foi a de colocar e recolocar questões de modo a tornar explícito o que pode apenas estar implícito nos relatos de vida e nas interpretações que os sujeitos fazem das suas experiências. Tivemos em atenção que:

20. “Le verbe «raconter» (faire le récit de vie) est ici essentiel: il signifie que la production discursive du sujet a pris la forme narrative.” (Bertaux 2005: 36)

21. Escuta atenta por oposição à distração sobre cidadãos ativos da sociedade civil, caso dos dirigentes associativos envolvidos nesta pesquisa, para desocultar uma realidade social que passa ainda despercebida ao conjunto da sociedade e onde há muito para (ou por) compreender ao nível científico.

“a história de vida constitui um ’acto’ de pesquisa, implicando não somente a pessoa do locutor, não somente a sua envolvência social, mas também a pessoa do investigador, que realiza a entrevista, e o seu próprio meio sociocul- tural. A ‘recepção’ da narrativa não é meramente passiva; o entrevistador en- contra-se inteiramente comprometido nesta empresa de criação comum. (…) Narrador e narratário são parceiros numa relação dialéctica que é a da inter- rogação socrática” (Poirier et al. 1999: 26).

Seguindo esta abordagem, Rubin e Rubin definem as entrevistas como “conversa- tional partnerships” (2005: 79) enquadradas por uma conceção dos indivíduos entre- vistados enquanto “parceiros” e não “objetos” da investigação (idem: vii). Uma vez que qualquer tipo de entrevista consiste numa atividade interativa e interpretativa, podemos entendê-la como “entrevista ativa” (Silverman 2004: 140).

Este aspeto relaciona-se, também, com o facto da transmissão de informação ser mediada, e daí condicionada, pelo contexto em que se opera o relato da trajetória individual: o contexto do tempo e do espaço físico em que a narrativa é elaborada, porque o trabalho de memória não é linear nem é passível de repetição regular e automática; e o contexto da relação estabelecida entre narrador/a e investigador/a. Como resultado desta linha de argumentação, a pesquisa empírica implicou uma mudança desta relação, na medida em que:

“o objecto não é alguém a observar, a medir, mas antes um informador e, por definição, «um informador mais bem informado do que o sociólogo que o interroga»” (Bertaux cit. in Digneffe 1997: 210).

Esta questão será aprofundada no ponto sobre pesquisa empírica e reflexividade.

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