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CAPÍTULO III ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1. MIGRAÇÕES, PARTICIPAÇÃO E CIDADANIA

1.3. Modelos de análise da participação cívica e política

Deve-se a Verba, Schlozman e Brady uma atenção sistemática e integrada às mani- festações de participação cívica e política da sociedade norte-americana, que resul- tou na elaboração de um “modelo de voluntarismo cívico” (Verba et al. 1995). A este modelo está subjacente um esforço para compreender e explicar as razões e moti- vações dos indivíduos que aderem, de forma voluntária, a organizações da sociedade civil e que se envolvem em atividades políticas, entendidas num sentido lato.

Os autores abordam a participação política com base numa conceção abrangente, definindo-a como qualquer atividade que vise ou tenha como consequência, por via direta ou indireta, influenciar a ação governativa (idem: 9)41. Trata-se de um modelo que contempla diferentes formas de ativismo, seja o exercício de votar, o simples contributo em campanhas públicas, até à intervenção regular e continuada em or- ganizações da sociedade civil. Não sendo um modelo delineado exclusivamente para analisar a situação específica dos grupos de imigrantes, a pesquisa que lhe serviu de base envolveu cidadãos americanos de origens étnicas diferenciadas.

41. “Voluntary activity comes in many guises. Part of our intellectual project is to understand the many forms of voluntary activity (…). At this point is sufficient to say that political participation is activity that is intended to or has the consequence of affecting, either directly or indirectly, government action” (Verba et al. 1995: 8-9).

A motivação para o ativismo e a capacidade dos indivíduos se envolverem na vida po- lítica são as balizas mediante as quais estes autores entendem o processo de partici- pação. Alertam para o facto de não ser suficiente existir uma vontade nesse sentido, é necessário ter-se acesso às condições que propiciem e tornem assim possível o envolvimento. Como os próprios referem:

“A citizen must want to be active. (…) However, the choice to take part in a par- ticular way is a constrained one. Various forms of participation impose their own requirements – the time to volunteer in a campaign, the money to cover a check to a political cause, the verbal skills to compose a convincing letter. Thus, those who wish to take part also need the resources that provide the wherewithal to participate. We consider a third factor as well. Those who have both the motivation and the capacity to become active are more likely to do so if they are asked. Therefore, we consider the networks of recruitment through which requests for political activity are mediated” (Verba et al. 1995: 3; subli- nhado nosso).

De forma breve, o modelo de voluntarismo cívico integra três tipos de fatores expli- cativos, a partir de uma articulação entre aspetos de natureza individual e aspetos estruturais intervenientes neste processo (idem: 269-273):

– recursos, que abrangem competências cívicas – tais como o nível edu- cacional e as habilidades de comunicação – o tempo e o dinheiro que os indivíduos têm disponível;

– envolvimento psicológico na esfera política, traduzido nomeadamente em valores que enfatizam o papel do indivíduo no esforço coletivo de realiza- ção de bem-estar, em sentimentos subjetivos de gratificação por partici- par e na manifestação de interesse pela política;

– redes de recrutamento, ou seja, existência de pessoas nas instituições que convidam outros indivíduos, a quem reconhecem determinadas com- petências, para desenvolver tarefas de cariz comunitário ou para assumir posições de liderança, o que funciona como mecanismo de autosseleção por parte das instituições.

A investigação demonstrou existir uma interdependência entre os diferentes aspe- tos, ou seja, a participação resulta da posse de recursos (isto é, da capacidade do indivíduo participar) e da existência de algum tipo de envolvimento político (isto é, da motivação), mas as redes de recrutamento surgem como uma variável fundamen-

tal no conjunto do processo, na medida em que funcionam como “catalisadores da participação” para aqueles indivíduos que têm a propensão e o desejo de assumirem algum ativismo (op. cit.: 16).

Os resultados salientam ainda que é a posse de recursos – tempo, dinheiro e compe- tências cívicas – que se encontra na primeira linha da cadeia causal deste processo, enquanto que o envolvimento psicológico pode constituir um fator potenciador da participação mas ser também o resultado da existência de recursos.

Confirmando resultados de outros estudos, o modelo de voluntarismo cívico permite verificar que os indivíduos com elevado estatuto socioeconómico (traduzido no nível de escolaridade, no rendimentos e na ocupação) são aqueles com maior pendor para a participação política. No entanto, Verba, Schlozman e Brady desenvolveram uma análise mais “fina” deste fator e puderam observar que o estatuto socioeconó- mico exerce uma influência variável consoante o tipo de atividade cívica analisada (ibidem: 19).

Assim, no caso do voto, conclui-se que este é influenciado pelo nível de escolaridade, mas para participar em campanhas que exigem donativos é necessário acrescentar a existência de rendimentos que possibilitem aos indivíduos contribuir e, deste modo, exercer uma atividade cívica. Um outro exemplo da influência do estatuto socioeco- nómico é-nos dado pela análise do contexto familiar. Os investigadores observaram que o estímulo à participação pode ser fruto de um eventual contacto com o ativismo político dos pais ou da discussão de assuntos desta natureza em casa, em idades jovens. O nível de escolaridade dos indivíduos está também relacionado com o dos pais e este elemento está, por sua vez, associado a outros fatores explicativos da pre- disposição de participar, tais como o interesse na política e o rendimento familiar.42 Daí que os autores chamem a atenção para o facto de que embora alguns fatores possam ser considerados como individuais, devem ser analisados no contexto da estrutura de oportunidades, pois a sua distribuição é condicionada pela estratifica- ção social, na qual se inclui a intersecção entre género, classe e etnicidade (idem: 332-333).

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42. A importância da transmissão intergeracional nas atitudes relacionadas com a participação foi anteriormente demonstrada na análise de Almond e Verba (1963). No modelo de cultura cívica elaborado por estes autores salienta-se que é por via da socialização e aprendizagens partilhadas entre gerações que os indivíduos adquirem atitudes recetivas ao sistema político democrático (vd. ponto 2.2. deste capítulo)

O modelo que Verba e coautores nos propõem é, portanto, um instrumento analítico valioso para abordar a relação entre a ação individual ou coletiva e a influência exer- cida pelo contexto estrutural.

A tentativa de compreender os mecanismos conducentes à participação cívica ou política beneficia, por outro lado, dos trabalhos que Putnam (1993, 2000) tem desen- volvido para analisar o capital social e explicar as razões do declínio do envolvimento cívico nos Estados Unidos da América. A sua reflexão incide sobre as relações sociais e enfatiza o papel das associações no reforço das interações entre membros de uma dada comunidade e, em consequência, na construção de capital social.

Putnam (1993: 86-89) defende que a construção de uma comunidade cívica exige um compromisso dos indivíduos através da participação ativa nos assuntos públicos; a igualdade política, traduzida em direitos e deveres iguais para todos os cidadãos; a solidariedade, a confiança e a tolerância entre eles, mesmo que tenham divergências e conflitos; e a existência de associações, que entende serem “estruturas sociais de cooperação”. Nas suas palavras:

“Such a community is bound together by horizontal relations of reciprocity and cooperation, not by vertical relations of authority and dependency. Citi- zens interact as equals, not as patrons and clients nor as governors and pe- titioners” (idem: 88).

Na sua obra “Bowling alone” (2000), após fazer o percurso diacrónico do envolvimento cívico nos Estados Unidos, apresenta vários fatores que, conjugados, resultam numa tentativa de explicação para o decréscimo do voluntarismo e, consequentemente, do enfraquecimento da comunidade cívica. Identifica os seguintes aspetos:

– as pressões de tempo e de dinheiro, resultantes da mudança da estrutura familiar, na medida em que as pressões da dupla carreira do homem e da mulher nas famílias com filhos diminui o tempo para atividades exte- riores à organização da vida doméstica; por outro lado, o trabalho ocupa mais espaço, conduzindo à redução das atividades cívicas, e não obstan- te permitir um eventual aumento de rendimento, que, segundo Putnam, oferece mais oportunidades de participação, sobretudo para as mulheres (idem: 189-202);

– a organização das cidades, na medida em que a expansão da malha ur- bana e a mudança das famílias para residências em subúrbios implica a multiplicação de movimentos pendulares casa-trabalho e um maior dis-

pêndio de tempo nessa atividade e “no automóvel”, à custa de tempo que poderia ser utilizado para contactos entre vizinhos e, assim, se entretece- rem e consolidarem redes intracomunitárias (op. cit.: 204-215);

– a tecnologia e os meios de comunicação social, sobretudo a televisão, que proporciona formas de entretenimento que os indivíduos usufruem de modo isolado, sem necessidade de contactos ou interações sociais (op. cit.: 216-246);

– as mudanças de geração: Putnam argumenta que as gerações de mea- dos do Século XX foram muito ativas e enfrentaram convulsões sociais e políticas que marcaram pela positiva o seu voluntarismo e compromisso cívico (por exemplo, as guerras mundiais, a guerra do Vietname, as lutas pelos direitos civis), enquanto que os filhos e netos dessas gerações, nas- cidos no último quartel do século estão menos envolvidos na vida comu- nitária (op. cit.: 247-276).

Putnam, contudo, tem o cuidado de referir que todos os fatores que avança na sua exposição detêm a sua quota-parte na tentativa de explicar o decréscimo do envolvi- mento cívico, mas que não esgotam os possíveis fatores intervenientes na evolução verificada na sociedade americana (op. cit.: 284)43.

Mais recentemente, um estudo sobre participação cívica ativa dos imigrantes na União Europeia (Vogel 2006; Triandafyllidou, Vogel 2005) muniu-se dos contributos analíticos de Verba, Schlozman e Brady, bem como da reflexão de Putnam, articulan- do-os com os resultados de pesquisas focalizadas na participação dos imigrantes. Daí resultou a elaboração de um modelo de análise do “processo de ativação” dos imigrantes não comunitários de primeira geração. O foco de interesse desta equipa de investigação recai sobre a compreensão do processo de mudança que conduz um “potencial cidadão ativo” a tornar-se um “imigrante ativista” (Triandafyllidou, Vogel 2005: 26).

O “processo de ativação” é concebido como o resultado da conjugação entre fatores individuais e fatores estruturais, tendo sido selecionados para análise os seguintes aspetos (Vogel 2006: 15; Triandafyllidou, Vogel 2005: 19-23):

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43. “Work, sprawl, TV, and generational change are all important parts of the story, but important elements in our mystery remain unresolved” (Putnam 1993: 284)

- os recursos individuais, que abrangem o tempo, o rendimento, o nível de

escolaridade, as experiências no país de origem, o estatuto jurídico, o ca- pital social (entendido como as redes sociais em que o imigrante está inserido);

- a estrutura de oportunidades da sociedade, como as características da

sociedade recetora e os padrões migratórios;

- a motivação, expressa por uma predisposição para participar ou pela ava-

liação feita individualmente de que a participação é vantajosa e dela se retiram benefícios.

O modo como os diferentes elementos inerentes aos recursos individuais e aos fato- res estruturais se conjugam e se influenciam reciprocamente vai condicionar a mo- tivação individual para a participação. O processo de ativação consiste na passagem de uma situação em que já existe motivação individual para o ativismo cívico, sendo apresentado como um processo “altamente individualizado” e “social e politicamen- te contingente” (Triandafyllidou, Vogel 2005: 23).

As análises apresentadas proporcionam uma visão complementar sobre os meca- nismos intervenientes na participação cívica ou política. A reflexão de Putnam desen- volve-se num sentido inverso ao do modelo de voluntarismo cívico e ao do processo de ativação, na medida em que, ao invés de indagar sobre as razões propiciadoras do envolvimento cívico, centra-se nos fatores que dificultam a participação, buscando compreender as razões do não-ativismo. No entanto, parece-nos pertinente consta- tar que as diferentes explicações fazem notar o peso de fatores societais, que tanto podem derivar da organização do tempo e das condições de vida das sociedades modernas como dos padrões migratórios e das condições de acolhimento dos imi- grantes, interferindo nos modos de tecer relações interindividuais, intra e interco- munitárias.

Importa, por fim, ter em conta que os vários autores salientam a multidimensionali- dade e a complexidade inerentes a qualquer tentativa de explicação das razões e dos mecanismos mediante os quais os indivíduos assumem e exercem uma cidadania ativa. Os vários autores descrevem o processo de participação cívica ou política como um sistema dinâmico fortemente influenciado por aspetos individuais e condições estruturais, que se influenciam reciprocamente e que apenas se podem analisar no contexto social e político concreto onde se desenrola a ação.

2. ASSOCIATIVISMO, CAPITAL SOCIAL E MOBILIDADE

2.1. Associativismo e capital social: uma abordagem a partir das redes sociais em

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