Histórias marcadas pela imagem de Carmen Miranda

Inicialmente tratamos das percepções e conhecimentos que influenciam na análise de uma imagem. Em seguida, abordamos a imagem de Carmen Miranda no cinema. Temas sobre o esquema, imagem visual e representação do próprio corpo humano foram estudados por Freitas (2008), que percebeu possibilidades de processos complexos e implícitos na cognição e na exposição de interações sociais importantes. A primeira análise, sendo a imagem verificada no âmbito da visão humana, responde às interações com o meio, além da importância dos gestos e elementos que são formadores da imagem corporal. Hábitos e experiências pessoais podem variar de um indivíduo para outro. De forma geral, os efeitos visuais e os efeitos das excitações sensoriais geram consequências no corpo do indivíduo, em seguida, o comportamento deste sujeito, evolui para a representação visual, mediada que vem do próprio corpo.

De certa forma, essas imagens ao serem expostas são associadas aos gestos e informações inseridas em seu contexto. Freitas (2008) considerou que o comportamento do sujeito pode ser influenciado, depende da sua compreensão. “A partir do conhecimento verbal e da história de uma pessoa, o corpo atuante pode instituir-se como um corpo transformador e, assim, transformar-se no verdadeiro instrumento criador e de apoio à consciência” (p. 323). O corpo atuante a partir do conhecimento da história do indivíduo e da informação verbal pode transforma-se em um instrumento criador e de apoio à consciência. Sensações, percepções e simbolizações contribuem para conceituar a imagem. Conceitos como processos sociais, culturais e interações com o outro estão incluídos na percepção final dessa imagem.

Agora, se trabalharmos esses hábitos e exposições culturais marcadas por uma imagem, podemos buscar a figura artística de Carmen Miranda no cinema, até mesmo retratada dentro desse quadro da imagem representada pelo corpo. Para tratarmos essa representação, buscamos o longa-metragem de animação Você já foi à Bahia? (fig. 136-137), de 1944. Produzido por Walt Disney Pictures, tem como tema o folclore; trilha sonora de Ary Barroso97 _{com Os Quindins de Iaiá (fig. 136-137) e Na baixa do sapateiro (fig.142). Nesse}

97 _{Neste mesmo ano, Disney vem ao Brasil. Por detrás da sua vinda estava Nelson Rockfeller proprietário da} rádio RKO. "Era o esforço - conjunto de guerra, responsável pela ida de Ary Barroso a Hollywood, compondo música para diversos filmes, assim pela de Carmem Miranda e pela vinda de um técnico (experimentado nas artes marciais) e de uma gigantesca agência de propaganda arquitetada por Nelson Rockfeller, no seu formidável esforço de derrubar os Países integrantes do Eixo, em luta contra o mundo Democrático, e tentar restabelecer a liberdade dos povos contra qualquer opressão [...]". É nesta visita, que posteriormente, desenvolveria o personagem Zé Carioca nos filmes “Salutos Amigos” (Alô Amigos), em 1943, e “The Three Caballeros” (Você já

foi à Bahia?), em 1944. Podemos ter uma demonstração significativa da política de boa vizinhança adotada na

época assim como a participação do Brasil. "Falando à imprensa carioca, à sua chegada monumental, teve oportunidade de se referir ao grande prestígio que gozava o Brasil na América do Norte, não só entre o povo, mas também nos circuitos da imprensa, rádio, cinema nos meios artísticos e culturais decorrentes não só de um entendimento, como também pela posição ocupada pelo nosso país na defesa da democracia contra a agressão totalitária, evidenciada pela valorização das coisas brasileiras. Na “verdade o front econômico se movimentava

filme, também iremos tratar do imaginário produzido na população brasileira e das intenções dos estúdios da Disney.

Figuras 131-134 – Cenas do episódio Os três Caballeros

Fonte: Os Três Caballeros (2011).

Figura 135 – Foto do episódio Os Quindins de Iaiá.

Fonte: Longa-metragem Você já foi à Bahia? (2011).

Ocorrem três segmentos nesse filme musical Aves raras, Você já foi a Bahia? e por último Os três Caballeros, por este motivo o longa é conhecido por “Caixinha de Surpresas”. Na cena inicial, aparece Pato Donald – personagem americano – no estúdio onde mostram uma máquina filmadora (fig.131), nos passando a impressão de estar sendo transmitido um filme. Na sequência, surge uma luz muito forte dentro de uma caixa que estava no estúdio. Pato Donald corre desesperado e, ao pegar a caixa de presente (fig.132) iluminada por uma luz, fica impressionado ao abri-la, devido a um livro que tem em destaque o nome do Brasil (fig.133). Assim, conotativamente a luz desperta em Donald o interesse pelo Brasil. Na produção, buscam a mata real do país e a transformam em um conto de desenho animado da Disney98_.

A caixa que aparece é um presente oferecido pelo Brasil. Na história, o personagem brasileiro Zé Carioca (fig.134) aparece sambando acompanhado do ritmo da música brasileira

para assegurar o acesso às matérias primas estratégicas”. É ainda neste ano que os EUA entram oficialmente na Guerra. Walt passou, então, a ser requisitado pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica a colaborar no esforço da Guerra com desenhos patriotas, como por exemplo, desenhos ensinando a reconhecer um navio amigo de um inimigo. Quando a guerra acabou em 1945, os irmãos Disney deviam cinco milhões aos bancos. Saíram da crise novamente em 1950 com Cinderela. (p.15). (FILHO & MACHADO, 2011).

(o samba), destacando novamente o Brasil em um mapa de fundo azul (fig.134), onde o país tem todo o seu espaço geográfico em cor preta. Essa cor preta logo nos faz levar os olhos no personagem Zé Carioca que usa seu guarda-chuva como uma flauta, acompanhado pelo som da música brasileira. A cor vermelha sinaliza algumas cidades do Brasil, em evidência está o Estado da Bahia e o próprio nome Brasil no meio do mapa. Ao associarmos o mapa do Brasil às cores nacionais (bandeira do Brasil), o vermelho nos faz afastar do Brasil e aproximar dos EUA (Pato Donald), já que a cor vermelha faz parte da nacionalidade norte-americana. A calda de cor vermelha (fig.134) não existe nas espécies de papagaio do Brasil, mas aparece porque o vermelho é marca da bandeira dos EUA.

As frases associadas à música e a imagem nos influenciam a representar o corpo mostrado nas cenas. A população brasileira associa a dança de Zé Carioca ao samba, o que mostra o reconhecimento e a curiosidade pelo Pato Donald ao rever o amigo brasileiro. Em seguida, aparece em destaque a imagem das maravilhas da Bahia que vão sendo narradas em inglês e português pelo personagem brasileiro, afirmando interação e conhecimentos dos brasileiros pela língua americana.

Durante a estadia no Brasil dos representantes da Walt Disney, conseguiram criar o verdadeiro personagem que poderia representar o brasileiro – Zé Carioca. Para Castro (2005), estavam vastamente informados pela importância do papagaio. O brasileiro se identificava com a ave, com centenas de anedotas, que “podia ser pobre, folgado, preguiçoso, vagabundo e sem caráter, mas era esperto, feliz, sabia se virar e aprendia tudo com facilidade, inclusive a enrolar os gringos.” (p.342) A gravatinha borboleta, o colarinho duro, guarda-chuva, o fraque e chapéu de palhinha foram sugestões dos desenhistas J. Carlos e Luiz Sá.

Assim, Zé Carioca convida Pato Donald para conhecer a Bahia, fala das belezas, hábitos e comidas típicas da cidade. O personagem americano responde em português, Zé carioca fala inglês e português intercalado. Dessa maneira, é criado um imaginário brasileiro de estar apreciando sua cidade junto com o amigo americano. Mostram que o americano sabe a língua nativa e é íntimo do país brasileiro, por mais que tenha dificuldade em falar o idioma nacional, ele se esforça.

O filme mostra a imagem de uma floresta (fig. 137), o que remete novamente ao brasileiro, é o imaginário de reconhecimento ao mostrar sua cidade ao americano. O cidadão americano exibe suas ideias sobre uma cidade atrasada, mas curiosa e bela, pois tudo é novidade, não existem mais em seu país toda esta fauna e flora. Ao longo do desenho, várias imagens nos fazem buscar conhecimentos individuais acerca da imagem de Carmen Miranda,

na primeira imagem aparece a figura multiplicada em quatro do Zé Carioca vestido de baiana (fig. 136).

Figuras 136-137 – Fotos tiradas longa-metragem Você já foi à Bahia?

Fonte vídeo: Você já foi a Bahia? (2011). Figuras 138-140 – Fotos episódio Os Quindins de Iaiá.

Fonte: Os Quindis de Iaiá (2011).

Essas várias imagens do personagem com chapéu dando destaque às bananas, como o fazia Carmen Miranda, convidam o amigo a conhecer a cultura baiana.

Na verdade, a Miranda que Disney queria era Carmen. Sua ideia era untar, num esquete intitulado “Blame it on the samba”, Carmen e a organista Ethel Smith, com duas figuras animadas: O Pato Donald e um novo personagem criado a partir de sua experiência brasileira, o papagaio José Carioca – no Brasil, Zé Carioca. Mas, para ter Carmen, Disney teria de passar pela Fox, e Zanuck – ainda convalescendo do cheque de 60 mil dólares que assinara para tomar Carmen de Shubert – nunca cederia sua nova estrela para um concorrente. (p.341)

Alô, amigos, filme da Disney, de acordo com Castro (2005), “era uma coletânea de desenhos curtos, tendo em comum apenas o cenário: um passeio por várias regiões da América do Sul... todos os povos retratados gostaram de se ver nos olhos de Disney.” (p.342). Diferente dos dois primeiros filmes realizados por Hollywood com a presença de Carmen Miranda que deixou o público irritado pela má representação da população. Aurora faz um teste para o filme Você já foi a Bahia? da qual é contratada, fica presa a Disney por 18 anos.

Na segunda imagem surge cantando Aurora Miranda (fig.139), que é irmã da atriz. Primeiro aparece apenas uma sombra (fig. 138) com formato corporal de uma baiana, a população brasileira logo busca processos sociais já ocorridos no seu conhecimento e tende a

imaginar Carmen Miranda. A mulher vestida de baiana (fig. 139-140) no filme é interpretada por Aurora Miranda, porém várias pessoas quando comentam o filme citam Carmen Miranda como sendo a intérprete, até mesmo em estudos acadêmicos. A mulher vestida de baiana virou um símbolo brasileiro associado à pessoa de Carmen Miranda. Somente a sombra de uma mulher dançando remete em nosso imaginário a imagem corporal de Carmen Miranda com suas vestes de baiana e com seus balangandãs. Castro (2005:484) afirma que existia uma diferença entre as irmãs, “Carmen já nascera uma estrela. Aurora era, talvez, a mais privilegiada das mortais”. Aurora até pedia autógrafos, timidamente, como para Greta Garbo, que responde: “obrigada, mas não concedo autógrafos”. Carmen se comportava como famosa, como no dia que estava distraída em Manhattan, com o Bando da Lua, quando Greta Garbo a cumprimenta “Carmen, querida!” e Carmen no mesmo ton: “Miss Garbo!”.

Os gestos, os movimentos e a trilha sonora nos fazem buscar nosso conhecimento verbal da história sobre o corpo atuante sambando, em seguida temos percepções e símbolos que conceituam um corpo real buscado pelas lembranças. Esses conceitos sociais, ativados por aqueles que conhecem sua imagem real, logo procuram um corpo de pele branca, mesmo que a sombra represente, no filme, a cor negra da baiana brasileira. Além de ser a mulher de um país subdesenvolvido onde dançam para alegrar. Pato Donald representa os EUA em uma visita à Bahia, ao país brasileiro que marca essa percepção final da imagem americana junto ao brasileiro em uma dança tipicamente brasileira.

A imagem de baiana induz à busca da memória de um registro situado em um período do tempo: a atriz Carmen Miranda vestida de baiana nos filmes norte-americanos. Zé Carioca suspira apresentando-a ao Pato Donald com a frase “como a baianinha é tão bonita” conhecida por seus “quindins de Iaiá”, explica ao amigo que os quindins são uma comida típica brasileira, como os biscoitos – cookies – para os americanos. Donald fica “deslumbrado” suspirando com a beleza da baiana (fig.139). Na cena, destacam o brasileiro e o americano juntos, “arrebatados” com a beleza da mulher brasileira.

No filme existe uma mistura de personagens, tanto de seres humanos (a mulher baiana e homens cantores) como personagens de desenho animado (Zé Carioca e Pato Donald). Mostram a disputa entre esses personagens de desenho animado pela atenção da baiana real. Em seguida, surge a banda com personagens também humanos, homens99

99 _{O filme teve a parte musical com o Bando da Lua acompanhado de grande orquestra, grupo de apoio de} Carmen Miranda, a qual o autor se refere por Pequena Notável, como também era referenciada na época. O líder do conjunto, Aloysio de Oliveira, surge como um dos personagens dançando capoeira no filme, em luta contra Billy Daniels que era o americano dançarino. Fonte: CASTRO, Ruy. Carmen uma biografia. São Paulo: Cia das Letras, 2005.

vestidos com trajes típicos das roupas usados no samba de época. Cantam o samba junto com a baiana. A seguir, Pato Donald “enciumado” pergunta “quem é esse cara?” (fig. 140). Zé Carioca responde: “Oh, ele é um malandro, Donald”. Dessa maneira, reafirmam novamente o personagem americano como sério (Pato Donald) e o personagem brasileiro cantor e dançarino como um “espertalhão”.

Entretanto, conseguem fazer de uma forma que não ofende o brasileiro, pois nesse caso, Pato Donald é “atrapalhado”, o desenho também foca este lado do personagem, enquanto o “esperto” da história é o Zé Carioca. Toda a dança e a música, mesmo não sendo Carmen Miranda a baiana que dança e canta, nos fazem lembrá-la, como nos filmes Você já foi a Bahia; Os Quindins de Iaiá; e Na baixa do sapateiro, que não houve participação de Carmen Miranda. Abaixo (fig. 141-144), os cartazes anunciando os filmes. Tendemos a fazer uma associação, ainda que não tenhamos vivenciado a época. Até hoje Carmen Miranda e a Banda (fig.145) estão nas mídias como fato histórico, principalmente na internet (blogs, estudos, vendas de produtos e etc.).

Figuras 141-142 – Cartaz do filme Você já foi à Bahia? Figura 143 – cartaz do filme Os Quindins de Iaiá100

Figura 144 – Cartaz do

filme Na baixa do

Sapateiro101

Figura 145 – Carmen Miranda e seu conjunto musical Bando da Lua

100 _{Interpretadas por Aurora Miranda.} 101 _{Interpretadas por Aurora Miranda.}

Fonte: Carmen Miranda Homepage (2011).

O samba cantado e dançado junto à figura baiana nos faz buscar a imagem de Carmen Miranda em seu comportamento espojado e carismático. Todo o filme nos faz procurar algo do nosso conhecimento para analisar a imagem baiana, mesmo que tenhamos o mínimo de informação sobre a história da brasileira. Outra cena que remete ao Brasil é quando homens dançam como se estivessem brigando – virando galo de briga (fig. 135) – pela conquista da moça, o que nos faz associar esta imagem à capoeira. Ademais, o intuito também era mostrar a disputa entre amigos – brasileiro e americano – pela garota baiana, que só podia ser uma brasileira. Já que o objetivo do desenho é agradar à população brasileira.

O curta-metragem A culpa é do samba, nas figuras 146 e 147 abaixo, envolve personagens e espectadores com o samba. Tropicalismo que sugere as coisas boas que existem no Brasil, desde a natureza (matas), mulheres e ao samba, por exemplo.

Figuras 146-147 – Curta-metragem A culpa é do samba

É o mesmo objetivo do filme Você já foi à Bahia?. Buscam tratar do samba, música que faz parte da cultura latino-americana, e a amizade entre países é destacada com personagens latinos e americanos.