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Identidade profissional e marcas de parresia sobre raça e gênero

PARTE II ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

CAPÍTULO 5 TRABALHO, PROFISSÃO E JORNALISMO

5.6 Identidade profissional e marcas de parresia sobre raça e gênero

Precursor dos Estudos Culturais, Stuart Hall78 (2006) fundamentou o debate sobre as distintas identidades assumidas por sujeitos ao longo de suas vidas – transitórias ou fixas –, conjecturando sobre as relações sociopolíticas na chamada pós-modernidade. Esses são elementos importantes para se pensar a articulação de raça e gênero à identidade profissional.

Hall (2006) aborda três tipos de sujeitos, caracterizados ao longo da história da humanidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. Para o primeiro, razão, consciência e ação dotavam uma pessoa humana centrada e em condições de tomar as rédeas da própria vida, algo intangível na Idade das Trevas. Ao sujeito sociológico, as transformações mundiais da era moderna lhe traziam “valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2006, p. 11), no movimento pendular interno-externo entre o mundo pessoal e público. Na contemporaneidade, a identidade do sujeito pós-moderno “é definida historicamente, e não biologicamente. Este sujeito assume identidades diferentes que não são unificadas ao redor de um “eu” corrente” (HALL, 2006, p.13).

As contradições e descontinuidades sociais ofertarão novos pertencimentos decorrentes dos processos de mudança que descentram o sujeito79 em cinco aspectos, defendidos por Hall (2006) e vinculados à análise dos discursos. O primeiro se refere ao materialismo histórico (marxismo), para o qual os sujeitos faziam suas histórias a partir de condições dadas. O segundo está vinculado à psicanálise, pelos pensamentos de Freud e Lacan sobre identidade, sexualidade, formação do eu e relação com o outro. O terceiro descentramento compreende a linguística, delineando a língua como instrumento de produção de significados num sistema de significados da cultura, ou seja, social. Segundo

78 Perfil biográfico sucinto e importante está disponível na obra de Mattelart; Neveu (2004, p.58-59). 79 Para Orlandi (2005, p. 20), o sujeito discursivo “funciona pelo inconsciente e pela ideologia”, sendo

“afetado pelo real da língua e também pelo real da História”. Refere-se à constante operação entre identidade, pertença, expressão e experimentação particular de aspectos da vida social na harmonização ou no confronto de questões políticas, sociais e culturais que lhe permitem construir, desconstruir e reconstruir a si mesmo.

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Hall (2006), não se trata somente da expressão de pensamentos individuais, mas de acionar um amálgama de significados pessoais e inseridos na cultura. O autor chama a atenção para os significados das palavras pela sua transitoriedade “numa relação um-a- um com os objetos ou eventos no mundo existente fora da língua. Os significados surgem nas relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no interior dos códigos da língua” (HALL, 2006, p.40).

O quarto descentramento decorre do pensamento foucaultiano na genealogia do sujeito moderno frente ao poder disciplinar em sua vida, atividades, sexualidade, trabalho e família por meio da “aplicação do poder e do saber que “individualiza” ainda mais o sujeito e evolve mais intensamente o seu corpo” (HALL, 2006, p. 43). O quinto e último descentramento está relacionado à emergência teórica e prática das identidades de sujeitos e demandas historicamente subalternizados pelas relações de poder, tais como o feminismo, o movimento negro, juventude, entre outros. Ao questionarem dominação, relações de força e exclusão pela consciência de sua condição, fazem emergir novas relações sociais e políticas. Isso remete ao pensamento de Avtar Brah (2006),

(...) nossas lutas sobre significado são também nossas lutas sobre diferentes modos de ser: diferentes identidades. Questões de identidade estão intimamente ligadas a questões de experiência, subjetividade e relações sociais. Identidades são inscritas através de experiências culturalmente construídas em relações sociais. A subjetividade – o lugar do processo de dar sentido a nossas relações com o mundo – é a modalidade em que a natureza precária e contraditória do sujeito-em- processo ganha significado ou é experimentada como identidade. As identidades são marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que constituem o sujeito. Portanto, a identidade não é fixa nem singular; ela é uma multiplicidade relacional em constante mudança (BRAH, 2006, p. 371).

A dinâmica deflagrada pela subjetividade traz novos atores e atrizes sociais e demandas para a sociedade, em que os sujeitos investidos nessas reivindicações se tornam protagonistas das contestações político-ideológicas, desconstroem paradigmas da ordem hegemônica e constroem modelos dissociados das opressões históricas. Hall (2006) lança mão do feminismo para explicar essa operação pós-moderna, mencionando o questionamento entre espaços privado e público, politização da subjetividade e contestação da ordem vigente em temas “desconhecidos” da sociedade: família,

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sexualidade, trabalho doméstico não remunerado, divisão sexual do trabalho, cuidado com crianças, uso do tempo, entre outros.

Como proposta de transformação das relações políticas e sociais, o feminismo ainda não absorveu as diversas demandas de inclusão das mulheres. O esgotamento de perspectiva política propiciou o surgimento de novas identidades de mulheres, entre elas negras, indígenas, rurais, trabalhadoras, lésbicas, jovens, idosas, entre outras, que redefiniram o feminismo. De acordo com Collins (2000), essa definição veio do próprio feminismo numa perspectiva teórica (acadêmica) e prática política (ativismo):

Para que o pensamento feminista negro possa operar eficazmente no feminismo negro como um só projeto social, ambos devem permanecer dinâmicos. Nem pensamento feminista negro, como uma teoria social crítica, nem a prática feminista negra podem ser estáticos; como as condições sociais mudam, assim importa que o conhecimento e as práticas concebidas por ele possam resistir80 (COLLINS, 2000, p. 39,

tradução nossa).

Tais identidades emergentes ampliaram o rol contestatório e reivindicatório, exprimindo a limitação política do grupo até então hegemônico no feminismo que hierarquizava pautas em decorrência de entendimentos políticos e relações de poder instauradas entre as mulheres, segundo as quais alguns temas eram mais estratégicos e importantes que outros. É o caso do movimento de mulheres negras, surgido devido à limitação de poder e participação das negras no movimento negro por questões de gênero e à dificuldade de abordagem da pauta racial negra no interior do movimento feminista:

[...] um feminismo negro, construído no contexto das sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino- americanas –, tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto nas relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades. (...) Esse novo olhar feminista e antirracista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra (CARNEIRO, 2003, p.51).

80 In order for Black feminist thought to operate effectively with in Black feminism as a social just project,

both must remain dynamic. Neither Black feminist thought as a critical social theory nor Black feminist practice can be static; as social conditions change, so must the knowledge and practices designed to resist them.

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Da intersecção raça e gênero, Sueli Carneiro (2003) problematiza, no artigo Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero, o posicionamento político do movimento negro, em que os homens negros atuavam de forma hegemônica e silenciavam a pauta das companheiras de ativismo, ao passo que no feminismo branco as mulheres hierarquizavam os temas de luta, reproduzindo relações racistas de subordinação política.

Hooks (2000, p.58, tradução nossa) corrobora com o argumento: “por anos eu testemunhei a relutância de pensadoras e pesquisadoras feministas brancas para reconhecer a importância da raça81”. E começa a perceber mudanças em decorrência do ativismo das mulheres negras e da revisão de posição das mulheres brancas, o que possibilita “libertar-se do pensamento de supremacia branco”82 (HOOKS, 2000, p.58, tradução nossa). Incorporo a sugestão de Avtar Brah (2006, p.331) sobre como as diferenças existentes entre os feminismos negro e branco não “devem ser vistacomo categorias essencialmente fixas e em oposição, mas, antes, como campos historicamente contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e materiais” distintas.

Em Nossos feminismos revisitados, Luiza Bairros (1995) critica o feminismo socialista por definir a opressão sexista não somente como mais importante, como dissociada do seu significado. Um dos exemplos é um dos ícones do feminismo, Sulamith Firestone, a qual entendia “o racismo como um fenômeno sexual. Analogamente ao sexismo na psique individual, podemos compreender totalmente o racismo em termos de hierarquias de poder na família” (FIRESTONE, 1976, p.128). Nos diferentes arranjos interraciais, Firestone (1976) insere o homem branco no centro das disputas estritamente sexuais entre mulheres brancas e negras e homens negros, eliminando o caráter político. Atribui poder fictício e desmedido ao homem negro, numa dependência racial à mulher branca, desconstituindo os efeitos do racismo na masculinidade negra que não pode ser

81 […] for years I witnessed the reluctance of white feminist thinkers to acknowledge the importance of

race.

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transplantada para a dimensão de gênero investida do mesmo poder do homem branco (DAVIS, 2005).

Segundo Oliveira, Meneghel e Bernardes (2009),

Para homens e mulheres negras, romper com o assujeitamento implica a ativação de poderes, incluindo o reconhecimento do pertencimento racial, a valorização da identidade e o exercício da cidadania. Isso significa sair do papel de passividade, de objeto do outro, e protagonização de suas próprias vidas (OLIVEIRA; MENEGHEL; BERNARDES, 2009, p. 271)

Na reflexão sobre as relações raciais, Luiza Bairros (1995) relativizou a masculinidade, pois a imagem de principal provedor das famílias, posição valorizada no mercado de trabalho, iniciador sexual e agressivo “não significa que a condição masculina seja de superioridade incontestável. Essas imagens cruzadas com o racismo reconfiguram totalmente a forma como os homens negros vivenciam gênero” (BAIRROS, 1995, p. 461).

No bojo dos conflitos raciais desencadeados pelo racismo e pelo sexismo brasileiro, em Gênero, raça e ascensão social, Sueli Carneiro (1995) aborda as relações intragênero masculinas, nas quais os homens negros não dispõem do mesmo poder que os homens brancos, estes sim investidos de autoridade e legitimidade de poder e decisão:

Qualquer poder que o homem negro exerça, ele o faz por delegação do homem branco de plantão, que pode destituí-lo a qualquer tempo; por isso, é consentida a mobilidade social de alguns negros, ao mesmo tempo que é controlada e reprimida a mobilidade coletiva, posto que o negro em processo de ascensão está fragilizado e sob o controle de poder do branco e uma das garantias exigidas pelo poder branco a este negro (para que ele não caia) é a sua lealdade. Portanto, o homem branco permite que alguns negros participem do poder, preferencialmente naqueles lugares que não têm importância para os brancos (CARNEIRO, 1995, p. 548).

Tais reflexões de Sueli Carneiro (1995) e Luiza Bairros (1995) colaboram para a minha suposição de que existem relações de poder diferenciadas entre jornalistas negros e brancos, mulheres e homens no Brasil. A meu ver, a identidade profissional de jornalistas brasileiros precisa ser estudada no complexo ambiente das relações raciais, nas quais as opressões de gênero possivelmente não se apresentam da forma linear e

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tradicionalmente interpretada pelo feminismo branco. Tentarei responder tal questão no decorrer da pesquisa. Este estudo se propõe a perceber a emergência ou não de aspectos da identidade profissional nas dimensões de raça e gênero até então opacos nas formações discursivas pela dinâmica das relações de poder e pelos sentimentos de consciência e de pertença.

A partir desse ponto, farei um esboço de análise parcial das enunciações de jornalistas sobre raça e gênero, com a finalidade de evidenciar a latência dessas abordagens por jornalistas brasileiros e brasileiras sobre a profissão. Embora fragmentadas e dispersas nos suportes comunicacionais, elas evidenciam realidade vivenciada sob o prisma do racismo e do sexismo no jornalismo.

Em decorrência da densidade enunciativa e das marcas no discurso sobre racismo e sexismo no jornalismo, decidi iniciar pela exposição do sujeito discursivo da raça negra/gênero masculino, cujo representante, o jornalista Tim Lopes (1985), aciona a fala franca da parresia (FOUCAULT, 2011) na sua dimensão da coragem de verdade para desvelar o retrato da imprensa em preto e branco83, à Revista da Comunicação. Em seguida, é a vez do sujeito discursivo da raça branca/gênero masculino, representado pelo jornalista Nelson Rodrigues (1970). Em seu Cadáver de preto84, ele relata o racismo

dentro e fora da Redação, quando um homem negro assassinado é novamente vítima fatal do jornal. O terceiro sujeito discursivo é da raça branca e do gênero feminino, personificado na jornalista Eliane Cantanhêde (2011), com sua autocrítica por não abordar gênero numa das principais colunas políticas do País, então no jornal Folha de S. Paulo. O quarto e último sujeito discursivo é da raça negra e do gênero feminino. Está representado pela jornalista Flávia Oliveira (2012), a qual aborda a ação do racismo no momento da escolha profissional.

Jornalista negro com notável trabalho investigativo, assassinado num dos crimes mais emblemáticos contra a atividade jornalística no País, Tim Lopes (1985) denunciou

83 Este texto foi oferecido para mim pelo jornalista Lunde Braghini Junior, quando éramos colegas da

Universidade Católica de Brasília.

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o racismo existente na imprensa. Fez uso, em 1985, da sua verve parresiástica, como demonstra a leitura interpretativa arqueológica (PORTO, 2012) da enunciação a seguir:

Não existe, em qualquer Redação de jornal, um só repórter negro, mulato, moreno claro ou cafuzo – todos negros no sangue, embora alguns sem o menor orgulho de pertencerem à raça – que, por trás da máscara da simpatia, não tenha sido, um dia, objeto de brincadeira debochada e, acima de tudo, discriminatória, com relação à etnia, pelos colegas branquinhos (LOPES, 1985, p.12).

No texto, ele recorreu a diversos jornalistas – homens e mulheres negras – para documentar as ocorrências de racismo promovido por colegas de trabalho, empresas jornalísticas e fontes. Tim Lopes não titubeou – passando à distância da retórica – e lançou mão da “fala franca” parresiástica. Tocou no cerne dos conflitos decorrentes do ser negro e branco na sociedade brasileira, que provoca vivências de desumanização para o indivíduo e a coletividade do grupo negro. Enquanto isso, indivíduo e coletividade do componente branco se colocam à margem do problema do racismo no Brasil, como se não integrassem um grupo racial.

De acordo com Cida Bento (2013),

[...] o que chama atenção nos debates, nas pesquisas, na implementação de programas institucionais de combate à desigualdade é o silêncio, a omissão e a distorção que há em torno do lugar que o branco ocupou e ocupa, de fato, nas relações raciais brasileiras. A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado. [...] Assim, o que parece interferir neste processo é uma espécie de pacto, um acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil. [...] muitos brancos progressistas que combatem a opressão e as desigualdades silenciam e mantêm seu grupo protegido das avaliações e análises. Eles reconhecem as desigualdades raciais, só que não associam essas desigualdades raciais à discriminação e isto é um dos primeiros sintomas da branquitude (BENTO, 2013, p. 2).

Face a essa realidade, o jornalista negro Tim Lopes (1985) tomou posição de risco por não falar por enigmas. Na genealogia parresiástica foucaultiana (2011), falou em seu próprio nome e ajudou jornalistas negros e brancos, mulheres e homens (comunidade

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discursiva) “em sua cegueira sobre o que são, sobre si mesmos, e não em consequência de uma estrutura ontológica, mas de algum erro, distração ou dissipação moral, consequência de uma desatenção, de uma complacência, de uma covardia” (FOUCAULT, 2011, p.16). Retirar o véu do racismo, do patriarcado e do sexismo exige coragem. Demanda reconhecer-se como sujeito em posição de subalternidade ou privilégios, assumir a identidade de grupo e romper com as estruturas de vantagem e desvantagem que hierarquizam relações e espaços sociais.

Na Revista da Comunicação, Tim Lopes (1985) caracterizou o racismo no jornalismo sob o risco de expurgo e represálias da comunidade jornalística. Firmou-se, como alertou Foucault (2011), no estreitamento dos laços com a comunidade e o espaço discursivos.

[...] A parresia é, portanto, em duas palavras, a coragem da verdade naquele que fala e assume o risco de dizer, a despeito de tudo, toda a verdade de que pensa, mas também é a coragem do interlocutor que aceita receber como verdadeira a verdade ferina que ouve” (FOUCAULT, 2011, p.13).

Em Retrato da imprensa em preto e branco, Tim Lopes (1985) evocou o deputado federal e jornalista negro Carlos Alberto de Oliveira (Caó), autor de lei que criminaliza o racismo, para quem a cor negra classifica a pessoa pelo seu tipo físico e traços negroides, ao mesmo tempo em que a desclassifica no mercado de trabalho85. Repudiou apelidos, piadas e expressões como ‘crioulo não é notícia, a não ser Pelé’ e ‘isso é coisa de negro’, ao mesmo tempo em que se solidarizou com a jornalista negra Salete Lisboa, então do jornal O Dia, que, segundo Tim Lopes (1985), não se calou diante

85 Conforme o artigo 4º da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, o preconceito de raça ou cor se configura

no emprego quando deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores, impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional e proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em: 12 maio 2014. De acordo com o artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 12 maio 2014.

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de discriminação racial conjugada com assédio moral por parte de sua chefia. Acomoda- se na figura central da genealogia da parresia, pois

(...) o dizer-a-verdade do parresiasta que sempre se aplica, questiona, aponta para indivíduos e situações a fim de dizer o que estes são na realidade, dizer aos indivíduos a verdade deles mesmos que se esconde a seus próprios olhos, revelar sua situação atual, seu caráter, seus defeitos, o valor da sua conduta e as consequências eventuais que eles viessem a tomar. O parresiasta não revela a seu interlocutor o que é. Ele desvela ou ajuda a reconhecer o que ele, interlocutor, é (FOUCAULT, 2011, p. 18-19).

Ao desnudar experiências e expandir as possibilidades de dizer (leitura interpretativa arqueológica) sobre racismo e sexismo, Tim Lopes (1985) deixou legado para a comunidade discursiva pelas corajosas verdades enunciadas e a abertura de interlocução sobre racismo e sexismo na comunidade discursiva. Ao mencionar a conversa com Luís Carlos de Oliveira, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, Tim Lopes (1985) constatou que a proliferação de faculdades de jornalismo, na década de 1970, ampliou obstáculos na atividade jornalística para homens e mulheres negras, como já preconizavam os estudos de Pereira (2001) sobre o negro no rádio de São Paulo, na década de 1950, e de Lima (1983), acerca de negros e negras na TV paulista. Enquanto as escolas de Comunicação se estruturavam, já era latente a escassa presença negra que se manteria como um padrão no jornalismo como profissão até mesmo no terceiro milênio:

Na realidade, esse afunilamento ajudou na discriminação, pela falta de condições para estudar, que marca a raça negra. Ela sempre encontrou dificuldade para se formar e, assim, disputar o mercado de trabalho (LOPES, 1990, p. 13).

Ao buscar estudo do historiador Nelson Werneck Sodré, o qual apontou que a imprensa reflete o racismo da sociedade brasileira, e o nome de jornalistas negros, entre os quais José do Patrocínio, Paulo Barreto e Irineu Marinho, Tim Lopes (1985) sentencia que a discriminação racial “velada” existente nas Redações atinge exagero nas próprias manchetes, como uma observada no jornal Folha de S. Paulo: “Polícia pega prefeito negro

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de Washington com droga em festa”. Tim dotou importante espaço discursivo de novos sentidos e significados sobre as particularidades de experiências de jornalistas negros e brancos, jornalistas mulheres e homens por suas identidades de raça e gênero. Como é peculiar à gama de ações para o enfrentamento efetivo do racismo e do sexismo, ao serem desvelados, ao jornalismo como profissão também ficaram muitas coisas a fazer. São as pegadas do parresiasta, deixadas aos montes depois de sua corajosa atitude de dizedor das verdades.

De acordo com Foucault (2011, p.16), o parresiasta “deixa àquele a quem ele se dirige a rude tarefa de ter a coragem de aceitar a verdade, de reconhecê-la e dela fazer um princípio de conduta. Deixa a tarefa moral [...]”. Segue, contudo, como apropriação,