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PARTE II ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

CAPÍTULO 5 TRABALHO, PROFISSÃO E JORNALISMO

5.1 Sociologia do trabalho

Em Tratado de Sociologia do Trabalho, Georges Friedman (1973, p.19) conceitua trabalho como “denominador comum e uma condição de toda a vida humana em sociedade”, sendo “ação quando exprime as tendências profundas da personalidade e a ajuda a realizar-se” (FRIEDMAN, 1973, p.23). Dessa forma, o trabalho é atividade decisiva para a afirmação e a autonomia de homens e mulheres na própria existência, viabilidade de autogestão financeiro-econômica de suas próprias vidas e realização

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pessoal e coletiva. Friedman chama a atenção para os efeitos do trabalho na vida de trabalhadores e trabalhadoras, uma vez que “todo e qualquer trabalho mal escolhido, inadaptado ao indivíduo, acarreta para estes efeitos nocivos. Todo trabalho sentido como algo estranho para o seu executante, no próprio sentido do termo, é um trabalho ‘alienado’” (FRIEDMAN, 1973, p.24).

Na contramão disso, o trabalhador e a trabalhadora têm de aproveitar as condições favoráveis em termos de técnica, fisiologia e psicologia. No entanto, o acesso a essas condições não está sob a gestão da força de trabalho. Segue a organização do mundo do trabalho e da conformação do mercado, além de estar submetido ao acesso às oportunidades de formação, aprendizagens e qualificações (NAVILLE, 1973) de profissões, ofícios e empregos.

Na distribuição da mão-de-obra, o status econômico é reconhecido com mais frequência pela sociedade e pelo mercado devido à geração de recursos auferidos na relação salário/empresa. Contudo, “as características de mobilidade parecem figurar entre os fenômenos mais importantes da definição dos ofícios e dos empregos. Mas deve ser entendida em múltiplos fatores” (NAVILLE, 1973, p.269), como os incorporados nesta pesquisa para aproximações das dimensões de raça e de gênero na identidade profissional de jornalistas. Estas influenciam o acesso, a mobilidade, a permanência e o expurgo de profissionais negros e brancos, homens e mulheres das Redações jornalísticas. E desencadeiam uma série de práticas – presentes no mercado de trabalho brasileiro e incidente em outras profissões – que estabelecem trajetórias de sucesso ou de fracasso profissionais, inclusive, por intervenção do racismo e do sexismo. Tais não podem, portanto, ser somente explicadas pelas habilidades e pelo domínio das técnicas jornalísticas, porque não são unicamente os elementos de observação no desempenho de profissionais numa sociedade racializada – com notáveis, embora pouco reconhecidos, privilégios cristalizados ao componente racial branco – e com práticas patriarcais e sexistas arraigadas.

Entre as distintas categorias de mobilidade, Naville (1973) elenca cinco: mudança de ofício (mudança de profissão), ofícios múltiplos (ocupação alternada), mudança de lugar (transferência de muitas pessoas), mudanças de lugar ligadas ao exercício da

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atividade profissional (multiplicação de profissões de uma mesma área) e mobilidade hierárquica. Destaco este aspecto para a abordagem do objeto de pesquisa, uma vez que

essa forma de mobilidade é uma das razões mais profundas das distinções entre formas de emprego; explica, até certo ponto, a diferença que se faz entre um posto ou um ofício e uma profissão ou status; entre um simples emprego e uma carreira. A elevação na hierarquia supõe a continuidade na passagem de atividades técnicas elementares a atividades dirigentes de organização e controle. Todo posto de autoridade participa menos do conteúdo técnico de uma profissão do que do seu conteúdo social. Poderíamos quase dizer que tanto mais passamos do emprego e do ofício à profissão quanto mais nos elevamos da ação sobre as coisas à ação sobre os homens (NAVILLE, 1973, p.271).

Insisto, portanto, sobre a reflexão acerca das intervenções do racismo, do patriarcado e do sexismo sobre a vida profissional de trabalhadores negros e brancos, homens e mulheres no Brasil. A segmentação racial (BENTO, 1995) pode ser compreendida pelo confinamento da força de trabalho negra em profissões com atividades em áreas importantes, porém com pouca valoração social, a exemplo do trabalho doméstico, em condições de precariedade (instrumentos e cuidados com a saúde física e emocional) e baixa remuneração. Vinculados ao biopoder, esses fatores compõem-se no racismo, o qual – quando não elimina – restringe as possibilidades de mobilidade negra no mercado de trabalho. Outro termo proposto é a segregação racial, a qual se refere à incorporação da força de trabalho negra em redutos profissionais em que negros e negras serão minoria em decorrência da realidade socioeconômica. Quando ingressam em carreiras médias ou de prestígio, trabalhadores e trabalhadoras negras enfrentam adversidades de ordem racial em termos de ascensão e de reconhecimento (CARNEIRO, 1995). Pois lugares de negros e brancos (GONZALEZ, 1980) estão demarcados na sociedade e se reproduzem deliberadamente no mercado de trabalho e nas empresas.

Com relação a gênero, diversos trabalhos produzidos por pesquisadoras feministas têm exposto a divisão sexual como prática sistemática e incidente na trajetória das trabalhadoras. Todavia, a crítica do feminismo negro (BENTO, 1995; BAIRROS, 1995 e 2008; CARNEIRO, 1995, 2002a, 2003a e 2003b) tem apontado a exclusão sistemática da variável raça. Como afirma Sueli Carneiro (2003a, 120), “a consciência de que a

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identidade de gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero”. Ao focarem num grupo racial (branco) e ao eliminarem o outro (negro), as respostas das pesquisas feministas são parciais e as soluções se tornam irreais, tendo em vista a abordagem parcial dos problemas no mercado de trabalho no Brasil na perspectiva das mulheres.

De modo geral, o fato de ser mulher traz, à trabalhadora, desafios reais na conciliação de trabalho e família, porque os cuidados recaem sobre ela, abstendo companheiro, família, empresa e Estado da responsabilidade sobre o trabalho reprodutivo. Porém, numa sociedade com pluralidade étnicorracial, mas racializada, como a brasileira, a variável raça/cor é mister em todas as análises científicas. Mesmo assim, há um conjunto de especificidades que devem ser consideradas nos estudos, tendo em vista que a trajetória das mulheres brancas – como exposto ao longo deste trabalho – por si só não dá conta da questão de gênero e das experiências da maior parte delas.

Ao estudarem a situação das trabalhadoras francesas na agricultura, na indústria, no comércio e em profissões liberais, Madeleine Guilbert e Viviane Isambert-Jamati (1973) depararam-se com a complexidade da dimensão de gênero em decorrência do trabalho produtivo e reprodutivo e das relações sociais:

As diferenças de estrutura, distribuição e evolução, cujas linhas gerais tentamos destacar, suscitam certo número de problemas, que tornaremos a encontrar tôdas vêzes em que se focalizar o trabalho feminino. [...] Observamos, mais de uma vez, que as tarefas assumidas pelas mulheres no interior das famílias atuam manifesta e consideravelmente sobretudo na determinação da estrutura da mão-de- obra feminina e das relações que ela mantém com a população feminina tomada em conjunto (GUILBERT; ISAMBERT-JAMATI, 1973, p.304).

Tal sobrecarga com os cuidados limita e, na grande maioria, impossibilita o pleno desenvolvimento da mulher no trabalho produtivo. No relatório sobre o desenvolvimento mundial intitulado Igualdade de Gênero e Desenvolvimento64, de 2012, o presidente do

64 De forma robusta, a publicação fortalece o posicionamento do Banco Mundial, que voltou sua atenção

para a questão de gênero a partir de 2008, expandindo a inserção da temática em área central das Nações Unidas e do setor econômico. Faz parte do esforço empreendido pelos movimentos feminista e de mulheres

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Banco Mundial, Robert Zoellick, aponta impactos das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas e as barreiras de raça, gênero, entre outras, para a humanidade e a economia:

As vidas de meninas e mulheres mudaram radicalmente no último quarto de século. Hoje, há mais meninas e mulheres alfabetizadas do que nunca e em um terço dos países em desenvolvimento há mais meninas na escola do que meninos. As mulheres hoje representam mais de 40% da força de trabalho mundial. Além disso, as mulheres vivem mais do que os homens em todas as regiões do mundo. O ritmo da mudança tem sido surpreendente — na realidade, em muitos países em desenvolvimento essas mudanças têm sido mais rápidas do que as mudanças equivalentes nos países desenvolvidos: O que os Estados Unidos levaram 40 anos para alcançar em termos de aumento da taxa de matrícula das meninas, o Marrocos levou apenas uma década. Em algumas áreas, entretanto, o progresso para alcançar a igualdade de gênero tem sido limitado — mesmo nos países desenvolvidos. As mulheres e meninas que são pobres vivem em áreas remotas, são deficientes ou que pertencem a grupos minoritários continuam a ficar para trás (BANCO MUNDIAL, 2011, p.2).

Na obra A divisão do trabalho social, Émile Durkheim (1977, p.45) aponta que o meio social pode explicar a divisão do trabalho na sociedade. Observa que há sociedades “ em que as ocupações dos dois sexos são sensivelmente as mesmas”, abrindo margem para a compreensão de capacidades semelhantes de trabalho entre o gênero feminino e o masculino.

Se a organização social e as relações sociais vêm demarcando as áreas de atuação de determinados grupos, são fatores incidentes na sociedade – tais como o racismo, o patriarcado e o sexismo – que devem ser analisados para a compreensão de como o trabalho vem sendo uma extensão dos aspectos prévios de funcionamento da sociedade. Novamente, não apenas a categoria de classe social explica a vida profissional de trabalhadores e trabalhadoras, porque não é somente a classe que organiza e provoca dinâmicas na vida das pessoas. No que tange ao objeto desta pesquisa – o jornalismo como profissão nas dimensões de raça e gênero –, Durkheim fornece os elementos que

e pela ONU desde a década de 1970 para a incorporação dos direitos das mulheres na agenda multilateral dos Estados-membros da ONU (CARNEIRO, 2003b).

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colaboram para as reflexões sobre as operações que organizam a força de trabalho nessa profissão, porque

a variedade dos meios em que os indivíduos estão situados produz neles diferentes aptidões, que determinam a sua especialização em sentidos divergentes e, se esta especialização aumenta com as dimensões da sociedade, é porque estas diferenças externas se multiplicam simultaneamente (DURKHEIM, 1977, p.44).

O autor é categórico ao afirmar que, se determinadas “diferenças tornam possível a divisão do trabalho, elas não a exigem. Do fato de serem dadas, não se segue forçosamente que sejam utilizadas” (DURKHEIM, 1977, p.46). Ou seja, a divisão social do trabalho não precisa basear-se em situações de desigualdade, e sim de coesão social e solidariedade.

A divisão social do trabalho apenas produz solidariedade quando é espontânea e na medida em que é espontânea. Mas por espontaneidade deve entender-se a ausência, não simplesmente de toda a violência expressa e formal, mas de tudo o que pode entravar, mesmo indirectamente, o livre desenvolvimento da força social que cada um traz em si. Ela supõe não apenas que os indivíduos não são relegados pela força para funções determinadas, mas ainda que nenhum obstáculo de qualquer natureza os impede de ocupar, nos quadros sociais, o lugar adequado às suas faculdades. [...] A espontaneidade perfeita não é, portanto, senão uma consequência e uma outra forma deste outro facto: a absoluta igualdade nas condições exteriores de luta (DURKHEIM, 1977, p.173).

Seriam, assim, a moralidade e as regras de convívio em sociedade os parâmetros para a partilha do trabalho em prol da viabilidade da sociedade, em que cada ente (trabalhador e trabalhadora e setor produtivo) é posto em xeque de acordo com a sua pertença racial e/ou de gênero. São elas – moralidade e convivência – cruciais para a viabilidade da existência humana e a dinâmica do viver.

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