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PARTE II ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

CAPÍTULO 5 TRABALHO, PROFISSÃO E JORNALISMO

5.4 Sociologia do jornalismo

Em Sociologia do Jornalismo, Érik Neveu (2006) organiza a genealogia da profissão na França com o propósito de reunir as condições elementares para analisar as relações da instituição imprensa, a dinâmica da profissão, espaços, poderes e crises do jornalismo. Ao enunciar os preceitos do seu trabalho, Neveu elenca alguns obstáculos epistemológicos, os quais agrego aqui face ao objeto da pesquisa: jornalismo como peça para a democracia, mitologia profissional, visão encantada do jornalismo, prevalência de

68 Leite (2003) reconstitui a origem da imprensa feminista brasileira, recuperando as trajetórias do Brasil

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estrelas da profissão dentre os depoimentos, ambiguidade das relações entre jornalistas e professores universitários. Outro aspecto revelante para o Neveu (2006, p.16) é a menção ao jornalismo no plural – jornalismos – em face das “hierarquias próprias do jornalismo e às empresas de comunicação, as relações com as fontes, com os poderes sociais e com os públicos”.

Neveu (2006) evoca a sociologia funcionalista para dimensionar quatro determinantes para uma profissão: i) monopólio da atividade por meio de certificação, ii) cultura e ética, iii) condições de acesso à atividade, e iv) comunidade real. O critério mais controverso, na visão de Neveu (2006), é a comunidade real devido à dispersão a que jornalistas estão submetidos pela

divisão de funções, das mídias, das especialidades, dos lugares e tempos de trabalho compreendidos dentro de uma mesma empresa, tende, apesar disso, a desenvolver uma fragmentação do mundo jornalístico e a sugerir que o sentimento de pertencimento a uma comunidade funcione de modo antes de tudo reativo, em face da “crítica” que vem de intelectuais, de juízes, de políticos (NEVEU, 2006, p. 37).

A despeito de um contexto específico, no caso o francês, essa é uma característica reconhecida no Brasil, em que se verifica mais apreço ao individualismo do que à pertença coletiva. Neveu (2006, p. 39) lança mão de Dennis Ruellan para situar as e os jornalistas numa “faixa móvel” em meio à noção de “profissão de fronteira”, mais flexível e destituída de um “limite balizado e controlado”.

Dentre as evoluções do jornalismo francês, cujo marcador inicial seria La Gazette de Renadout, de 1630, Neveu (2006) ressalta quatro etapas, entre 1960 e 2000. A primeira delas está situada nos anos 1980, por meio de: i) recrutamentos em escala e renovação da mão-de-obra, ii) aumento geral do nível de formação, iii) feminização do jornalismo; iv) crescimento da instabilidade dentro do jornalismo devido à redução da estabilidade empregatícia. Sobre a feminização do jornalismo na França, vale pontuar:

As mulheres representavam 15,3% dos jornalistas em 1965, 20% em 1974, e chegam a 39% em 1999. Constituem agora a metade da população dos novos titulares da carteira profissional e dos jornalistas com menos de 25 anos. Essa feminização é ambígua e diferenciada. A presença das mulheres varia segundo os meios de comunicação: 52%

152 nas revistas, 42% nos semanários informativos, 39% na imprensa cotidiana nacional, 39% nas televisões nacionais, 26% nos diários regionais. As mulheres “saem” também mais rápida e frequentemente da carreira jornalística. De uma forma previsível, as jornalistas se deparam com as dificuldades comuns às mulheres no mercado de trabalho. (...) a divisão do trabalho associa com frequência as mulheres à cobertura social e cultural, do mundo das soft news, feitas de análises das tendências sociais e dos comportamentos, de assuntos e informações utilitárias, em oposição às hard news, centradas no acontecimento, na tensão da atualidade (NEVEU, 2006, p. 44).

Ainda sobre o jornalismo como profissão na França, Neveu (2006) faz uso do termo metafórico galáxia em alusão aos universos decorrentes da fragmentação: i) revistas especializadas, ii) imprensa regional e local, iii) jornalismo nacional, iv) jornalismo audiovisual, e v) agentes (fornecedor de conteúdo para agências de notícias). Neveu (2006, p. 63) retoma o conceito de campo jornalístico, com a finalidade de fazer uso

de uma ferramenta de um pensamento duplamente racional. Ele convida a pensar o espaço do jornalismo como um universo estruturado por oposições ao mesmo tempo objetivas e subjetivas, a perceber cada jornalista dentro da rede de estratégias, de solidariedade e de lutas que o ligam a outros membros do campo. Ele chama a pensar o campo jornalístico na sua relação com outros campos sociais. Qual é sua autonomia ou, ao contrário, sua dependência em relação aos campos econômicos, políticos? (...) o foco nas estruturas não exclui em nada uma visão compreensiva das práticas e crenças dos jornalistas, de suas estratégias pessoais. Evidenciar as pressões institucionalizadas não impede de pensar a mudança estimulada pelas evoluções das relações entre campos, pelas alterações de sua morfologia, pelo afrouxamento das disposições dos profissionais em relação a seus cargos e missões (Actes, 1994, 2000) (NEVEU, 2006, p. 63).

Em consonância com o objeto desta pesquisa, as dimensões de raça e gênero pelas formas simbólicas de jornalistas sobre a profissão, é mister compreender jornalistas negras e negros, brancas e brancos, mulheres e homens, no bojo das redes de estratégias, solidariedade e luta entre as relações sociais estabelecidas no jornalismo como profissão no Brasil. Como questões estruturais, o racismo e o sexismo fariam parte das pressões institucionalizadas, situando agentes, lugares, espaços, temporalidades e caracterizações, alargando os debates e os estudos sobre jornalismo como profissão no país. Nesse sentido, incorporo o pensamento da teórica feminista negra Kimberlé Crenshaw (2004, p.10), a

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qual traz à baila o conceito interseccionalidade69 para depurar as discriminações de raça e gênero.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em que vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, frequentemente, se sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam (CRENSHAW, 2002, p. 177).

Segundo Bourdieu (2009, p. 133-134), o mundo social desencadearia “princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto de propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder neste universo”. Essas relações sociais ganham formas específicas e materiais face à posição dos agentes no campo e à maneira como se envolvem no campo político – “campo de forças e como campo das lutas” – devido aos “problemas, programas, análises, comentários, conceitos, acontecimentos” (BOURDIEU, 2009, p. 164), no qual, inclusive, é exercido o monopólio de profissionais. No Brasil, essa trama ganharia outros componentes devido ao racismo e ao sexismo por meio de discriminações de raça e gênero, que desencadeariam um conjunto de desvantagens nas carreiras de jornalistas

69 Uma das críticas ao conceito interseccionalidade (Crenshaw 2002, 2004) é feita por Daniele Kergoat

(2010), alegando a dinâmica entre relações sociais e as relações de dominação móveis, incluindo as categorias raça, gênero, classe social e outras, propondo os conceitos de consubstancialidade e coextensividade. Na crítica aos conceitos de Kergoat (2010) e Crenshaw (2002 e 2004), Helena Hirata (2014) propõe o conceito interseccionalidade de geometria variável na tentativa de captar as opressões de gênero, raça e classe social com outras formas de discriminação como substrato das lutas políticas, entre elas as percebidas na divisão social, sexual e racial no mundo do trabalho. Neste trabalho, as reflexões decorrem do pensamento de Kimberlé Crenshaw (2002, 2004)

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negras e negros e mulheres brancas face à concentração de poder entre os homens brancos.

Em Sobre a televisão, Bourdieu (1997) insere os jornalistas num campo de tensões em que as relações de poder são estabelecidas entre profissionais e estes, por sua vez, deveriam ser definidos pela sua diversidade.

O jornalista é uma entidade abstrata que não existe; o que existe são jornalistas diferentes segundo o sexo, a idade, o nível de instrução, o jornal, o meio de informação. O mundo dos jornalistas é um mundo dividido em que há conflitos, concorrências, hostilidade” (BOURDIEU, 1997, p. 32, grifo nosso).

Concernente ao tema deste estudo, a complexidade das relações raciais e de gênero exporia outros tipos de singularidades, assim como a ação que exercem e são alvo dentre as pressões institucionalizadas, conflitos, concorrências, hostilidades e estratégias no campo jornalístico.

Valendo-se de Bourdieu, Neveu (2006) agrega a noção de capitais para refletir sobre a sociologia do jornalismo: capitais, habitus e illusio. Capitais corresponderia aos “recursos econômicos, simbólicos”, os quais para jornalistas poderiam ser reconhecidos como “diploma de uma faculdade, agenda de endereços excepcional, a autoridade adquirida na descoberta de um “escândalo” (NEVEU, 2006, p.66). Habitus estaria relacionado a “sistema de disposições, matriz de esquema de julgamentos e de comportamentos, que é o mesmo que ao mesmo tempo fruto de uma socialização, (...) e um sistema organizador das práticas e das atitudes” (NEVEU, 2006, p.66) e mais associado à doxa (THOMPSON, 1995). Illusio estaria voltada “à ideia de um investimento ao mesmo tempo psíquico, intelectual e profissional nos jogos e projetos próprios a um campo” (NEVEU, 2006, p.67).

Considerando o objeto desta tese – as dimensões de raça e de gênero no jornalismo como profissão no Brasil, pretende-se colocar na centralidade o panorama da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002), tendo em vista o racismo e o sexismo como operadores da discriminação interseccional pelo habitus e a sua incidência nas trajetórias de jornalistas negras e negros, brancas e brancos, assim como as estratégias da

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interseccionalidade política (CRENSHAW, 2002) de mulheres negras e de homens negros pela consciência da suas condições interseccionais expostas pela hermenêutica das sujeitas e dos sujeitos (FOUCAULT, 2006), reveladas na parresia, e novos contornos para a illusio face à gestão interseccional de seus capitais.

Uma sociologia do jornalismo brasileiro vem sendo prenunciada por alguns estudos sobre a genealogia da profissão no país e a identidade profissional de jornalistas. Fernanda Petrarca (2008, p.1), no artigo Por uma sociologia histórica do jornalismo no Brasil, resgata algumas trajetórias de jornalistas para recompor “as condições sociais de ingresso e de desenvolvimento da carreira de jornalista no Brasil”, com o objetivo de “investigar o conjunto dos recursos associados aos princípios de entrada e exercício nessa atividade”. Observa a gestão de capitais de políticos e literatos nos primórdios da atividade de imprensa no Brasil dissociada das dimensões de raça e de gênero, embora absorva a trajetória de João do Rio70, jornalista negro, um dos nomes mais importantes da profissão no país.

No artigo Imprensa Negra: descobertas para o Jornalismo brasileiro (ROSA, 2014), situei – a partir da imprensa feita por negros e para negros – a trajetória intensa e peculiar de negras e negros, o que agregaria os elementos interseccionais à pretensão de uma sociologia do jornalismo brasileiro, incluindo a imprensa negra e a presença de jornalistas negras e negros nessa profissão.

Essa prática começou a se alterar gradativamente a partir do ingresso de pesquisadores e pesquisadoras interessados em “trabalhos acadêmicos que vislumbram, numa postura crítica, os problemas nacionais de comunicação” e inseridos num campo de análise “não necessariamente coincidente com o das classes dominantes” (MELO, 1980, p.11). Pode- se incorporar neste espectro a produção de um pensamento negro na comunicação, isto é, no contexto das epistemologias do Sul (SANTOS, 2009) e no propósito de agregar, à produção intelectual, o desmantelamento do sistema hegemônico cognitivo que vigora em detrimento da dinâmica e da realidade social, condicionando-as a um sistema de exclusões e discriminações (ROSA, 2014, p. 566).

70 Sobre o vigoroso trabalho jornalístico de João do Rio, sugere-se o artigo João do Rio e o cotidiano negro

no Rio de Janeiro da primeira República, de Thauan Bertão dos Santos. Disponível em: <http://www.erh2014.pr.anpuh.org/anais/2014/344.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2016.

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Lançando-se no debate acerca do jornalismo como profissão, Raissa dos Santos (2014, p.9) discorre, no artigo Jornalismo do século XXI: profissão identidade, papel social, desafios contemporâneos, sobre alguns efeitos transformadores, os quais estariam incidindo sobre uma “nova identidade da categoria profissional”. Todavia, não articula as dimensões de raça e de gênero no que avalia como “renascimento profissional” do jornalismo na contemporaneidade em meio aos movimentos desencadeados pela “análise das transformações e do impacto direto e indiretamente na dinâmica da sociedade democrática” (SANTOS, 2014, p.9).

No artigo A importância do conflito na configuração identitária do jornalista brasileiro, Fernanda Lopes (2009) compreende a relevância do conflito como catalisador da expressão de sentimentos, valores, representações e memórias.

No caso dos jornalistas, é possível categorizar tais heterogeneidades sob diversos aspectos, por exemplo, tomando como base seu local de atuação, o que consequentemente resultará em diferentes modos operandi, como, por exemplo, os jornalistas de rádio, os de televisão, os de imprensa escrita, entre outros. Pode-se classificá-los, ainda, segundo função laboral, por exemplo, em editores, chefes de Redação, repórteres, fotógrafos, ou segundo critérios empregatícios, se funcionários públicos, se free lancers, se trabalhadores de empresa jornalística, se assessores de comunicação. De qualquer maneira, existe um amálgama capaz de agrupar a diversidade na totalidade, fazendo com que esses profissionais sejam reunidos sob o mesmo rótulo apesar das diferenças. É interessante lembrar que mesmo essa argamassa não é feita dos mesmos elementos ao longo do tempo. Essa força coesiva não possui uma receita imutável, mas é construída nas relações inter e intragrupais (LOPES, 2009, p.97).

A despeito do espectro de variáveis acerca dos conflitos decorrentes no jornalismo como profissão, causa estranheza a invisibilidade das dimensões de raça e de gênero como vetores de confrontos de ordem racial e de gênero, prevalecendo a abordagem de classe/categoria profissional. No livro Ser jornalista no Brasil: identidade profissional e formação acadêmica, Fernanda Lopes (2013) faz nova referência aos conflitos concernentes à identidade profissional.

Aliás, o processo de construção identitária está permanentemente tensionado pelas zonas de combate que nem sempre são visíveis e audíveis. A formação de imagens, a mobilização de representações, a

157 produção de crenças, a recuperação memorialista de características e marcas, a reprodução de mitos, a incorporação de padrões do saber prático, a propagação de saberes profissionais, a origem de um sentimento de pertencimento grupal, tudo isso permeia vivências que, cotidianamente, se estabelecem dentro das empresas jornalísticas, nos cursos superiores, no mercado de trabalho, nas organizações sindicais, na mídia tradicional e no novo ambiente digital com suas possibilidades multimidiáticas (LOPES, 2013, p. 4194).

E atrela o ethos profissional com os significados construídos por membros do grupo:

Sabendo, portanto, que é impossível compreender a identidade de um sujeito fora de sua colocação social, para responder à pergunta “quem são os jornalistas” é necessário voltar os olhos para aquilo que o grupo organiza interiormente como significado e, além disso, o percurso para situá-lo num âmbito de sociabilidade, de partilha comum de significados. No caso dos jornalistas, é fácil perceber a importância da interação com o Outro para a existência desse grupo, já que a própria função que esses trabalhadores desempenham na sociedade está intrinsecamente conectada com o ato de falar do outro (LOPES, 2013, p.241)

Na tentativa de articular tais elementos da sociologia do jornalismo no contexto das dimensões de raça e de gênero, buscarei por meio das formas simbólicas de jornalistas – negras, negros, brancas e brancos – verificar a materialidade de vivências por meio de discursos acerca dessas pertenças e suas implicações no jornalismo como profissão.