• Nenhum resultado encontrado

PARTE II ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

CAPÍTULO 5 TRABALHO, PROFISSÃO E JORNALISMO

5.2 Sociologia das profissões

A divisão social do trabalho e as profissões são parte do conjunto de estratégias do Estado moderno para a organização social (NASCIMENTO, 2007) e gestão da vida (FOUCAULT, 1992). Um dos pontos altos foi o fortalecimento das universidades, no século XIII, quando “a profissão passa a ser associada ao espírito, ao intelectual, ao nobre e o ofício surge associado a mãos, braços” (ANGELIN, 2010). A classificação das modalidades de trabalho valorou positivamente o profissionalismo, ao passo que o legitimou socialmente pela prestação de serviços a serem realizados por agentes credenciados ou credenciadas. Conforme Leisson Nascimento (2007, p. 111), no seu artigo Profissionalismo: expertise e monopólio no mercado de trabalho, o profissionalismo passa a influenciar decisivamente a vida das pessoas, porque articula expertise, rede de relacionamentos, controle do mercado sobre quem pode entrar ou sair e titulação universitária. Por conta disso, alerta para que “a análise das profissões deve sempre procurar vincular profissionalismo a outros processos sociais mais amplos, que configuram características fundamentais da sociedade” (NASCIMENTO, 2007, p.112).

A sociologia das profissões vem se desenvolvendo por meio de três correntes teóricas. As funcionalistas evidenciaram o valor social das profissões a partir das suas funções na sociedade, do elevado grau de conhecimento especializado e das habilidades adquiridas pelo corpo profissional. O modelo interacionista da Escola de Chicago primou pela compreensão da divisão social do trabalho como resultante de interações e processos sociais, frisando a personalidade individual e a identidade social do sujeito. A terceira vertente é a chamada “novas teorias das profissões”, aliando a episteme das duas primeiras correntes à teoria marxista e à questão do poder e das estratégias profissionais (ANGELIN, 2010). Um dos representantes do pensamento, produzido a partir da década de 1970, é Elliot Freidson (1989), que apresenta o seu conceito de profissão:

Gostaria de começar por definir uma profissão como uma espécie de ocupação cujos membros controlam o recrutamento, a formação e o trabalho que fazem. Isto distingue explicitamente controle ocupacional de controle do trabalhador industrial ou coletivo, sendo o primeiro limitado a particulares, tarefas demarcadas, e o segundo, abrangendo a

142 organização geral de uma divisão de trabalho sem controlar tarefas especializadas 65 (1989, p. 425, tradução nossa).

Tal abordagem é importante para esta pesquisa por sinalizar os mecanismos de tomada de decisão sobre acesso, aprimoramento, execução de tarefas e mobilidade a que os e as profissionais estão submetidas nas empresas. Por sua vez, eles designam as pessoas competentes (com capacidade de fazer o que a corporação, a profissão e o próprio sujeito esperam) e lhes investem de autoridade para “limitar e controlar a entrada em uma ocupação com o objetivo de garantir ou maximizar o seu valor no mercado” (ANGELIN, 2010, p.8). Em face dos meandros de cada grupo profissional, Maria Lígia de Oliveira Barbosa (2003) salienta a relevância dos estudos focados nas profissões para o entendimento da organização de forças na sociedade:

Que é possível perceber, nos processos de profissionalização, os traços distintivos da configuração de forças sociais que constituem as profissões. Assim, se o mercado é característica comum à qual são submetidos todos os grupos sociais, as profissões conseguem estabelecer regras diferenciadas para sua presença nessa instância da vida social. Se a educação escolar é base de socialização e hierarquização nas sociedades contemporâneas, os certificados acadêmicos tornaram-se importante instrumento de distinção dos grupos profissionais. [...] sociologia das profissões se estabelece como campo legítimo, autônomo e claramente delimitado (BARBOSA, 2003, p.594).

No Brasil, a profissionalização teve início nas carreiras de medicina e engenharia. A inserção desses profissionais no mercado não era somente determinada pelo conhecimento, mas pela “situação de classe e o seu patrimônio familiar de relações sociais e políticas” (ANGELIN, 2010, p.10). No ensaio As profissões no Brasil e sua sociologia, Barbosa (2003) é incisiva em aproximar as fronteiras entre as relações sociais e a organização das profissões no País numa operação de retroalimentação, em que um fortalece o outro:

65 I start by defining a profession as a kind of occupation whose members control recruitment, training and

the work they do. This explicitly distinguishes occupational control from industrial or collective worker control, the former being limited to particular, demarcated tasks and the latter embracing the overall organization of a division of labor without controlling specialized tasks.

143 Na verdade, com o trabalho de Edmundo Coelho podemos ver com mais clareza a questão que foi o fio condutor deste ensaio: a busca da demonstração de que os grupos profissionais, no processo da construção da sua identidade e do seu lugar social, são elementos essenciais na configuração do padrão de relações sociais dominante no Brasil (BARBOSA, 2003, p. 604).

Em consonância com o objeto desta pesquisa – o jornalismo como profissão nas dimensões de raça e gênero, partindo das vozes discursivas de profissionais –, tem-se um arcabouço teórico e epistemológico coeso como demanda o marco referencial metodológico da hermenêutica de profundidade. De modo geral, estruturas de desigualdade influenciam a conformação das profissões. No Brasil, o racismo e o sexismo são eliminadores e obstáculos reais da força de trabalho negra e feminina. Somadas ao biopoder, a divisão social do trabalho e a profissionalização intervêm sobremaneira, como expus com dados demográficos e socioeconômicos, no desenvolvimento da população afro-brasileira. Nas palavras de Nascimento (2007, p.114), “uma profissão é seu corpo de conhecimento e suas qualificações, porém, para poder exercer monopólio sobre uma área no mercado de trabalho, é necessária a ação legitimadora do Estado. O Estado garantiria assim a autonomia (ou não) do campo profissional”.

José Durand (1975), no artigo A serviço da coletividade – crítica à sociologia das profissões, reflete sobre o fator multiplicador de oportunidades decorrente da articulação entre rede de relacionamentos, capital cultural e social. Tais aspectos são atribuídos à competência, à superação individual e à meritocracia.

Esse aspecto é salientado por Mick e Lima (2013a):

Quanto ao acesso às oportunidades de trabalho, parecem ter se ampliado os processos de seleção baseados em algum tipo de aferição da competência, hoje tão expressivos quanto as estratégias de ingresso que privilegiam as redes de relacionamento. A principal forma de ingresso no trabalho jornalístico apontada pelos respondentes foi processo seletivo realizado pelo contratante (23,3%) (MICK; LIMA, 2013a, p. 43).

Na sociedade racializada e sexista, esses elementos não bastariam, por si sós, para explicar o recrutamento e a distribuição da força de trabalho. Pois desconsiderariam o pacote de desvantagens carregado por aqueles e aquelas que arcam com o fardo do racismo e do sexismo sem a devida distribuição entre os grupos investidos de vantagens

144

e a eliminação desses fenômenos, para que possam, aí sim, competir em condições de igualdade.